sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

VIA CRUCIS – VIA DOLOROSA CERTIDÃO DE NARRATIVA SIMPLES


VIA CRUCIS – VIA DOLOROSA
CERTIDÃO DE NARRATIVA SIMPLES

Chamo-lhe assim, porque hoje é sexta-feira da primeira semana da Quaresma e, por tal, Dia da Memória, exercício de reminiscência dos últimos passos da vida de J:Cristo, a qual toma o clássico nome de Via-Sacra.
E assim titulo este dia ímpar – 27 de Fevereiro --- também por tratar-se de uma data singular para mim e para a Ribeira Seca. E para a história da Igreja Católica Madeirense. Foi o início de um caminho doloroso para esta parcela do nosso território.
A narrativa é de teor simples, sem comentários. Esses ficam à vossa consideração.
Era uma quarta-feira cinzenta e pingada de orvalhos matinais. Desci as escadas da residência paroquial para celebrar a habitual eucaristia das 7 horas da manhã, tal como continuo a fazer ainda hoje. Chegando ao último degrau, um grupo de pessoas aproxima-se com uma expressão estranha e a senhora Maria (já faleceu há alguns anos) chega-se mais perto e despeja, ansiosa : ” Sr. Vigário, o meu filho começa a trabalhar às 3 da manhã lá na vila e telefonou-me: ”Mãe, tão aqui em baixo 10 carrinhas carregadas de polícia e vão para a Ribeira Seca agarrar o senhor padre na hora da missa. É o que tão a dizer”. Logo respondi à senhora: “Ah, sim? Então cá os espero”. E entrei na igreja afim de paramentar-me para a missa. Mas não me deixaram ficar. “Vá-se embora, fuja, que a gente toma conta disto”. Insisto: ”Não se preocupem.  Eu quero esperar por eles aqui mesmo. Fugir, não fujo. Mais a mais, sou deputado e não tenho crime para me prenderem”.  Mas foi tão forte a pressão – “a gente toma conta disto” --- que obedeci e fui para a casa dos meus pais, no sítio da Banda d’Além. Ao que depois aconteceu não posso dizer mais nada, porque não presenciei. Lembro-me também que, no meio desta pequena conversa, muitas pessoas foram-se aglomerando em frente da porta principal do templo.
Mais tarde vim a saber que invadiram a igreja, rebentaram as portas da residência. Levaram o que quiseram. Para recordação, ainda lá estão abertos  os buracos das fechaduras que levaram consigo. À igreja cerraram a barrotes pregados nas portas.
Já na minha casa paterna é que me lembrei de uma frase ameaçadora pronunciada, tempos antes na Assembleia Regional, pelo presidente do governo regional: “Se a diocese solicitar o apoio do meu governo para ocupar aquele campanário, o governo não hesitará”.
Permaneci na Banda d’Além até à altura em que vi na estrada  uma multidão que me levou  à igreja da Ribeira Seca. Até hoje.

Tudo o mais só poderá ser contado por quem viu os factos. No facebook da Ribeira Seca, por estes dias.


27.Fev.2015

Martins Júnior

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

MEMÓRIA SEM TERMO


Ninguém se cansa de saber e repetir que “ Um Povo sem passado é um Povo sem futuro”,  ainda que ---e  sobretudo por isso ---  a memória venha carregada de cinzas e escombros. Porque será daí que se aprenderá a dominar o futuro. “Quem quer/ Faz a hora/ Não espera acontecer”, já nos avisara Sofhia de Melo Breyner pela voz profética de Francisco Fanhais.
Estamos em pleno ribombar dos trovões que há cinco anos, por estes dias da sigla “20 de Fevereiro”,  fizeram  da Tabua, da Serra d’Água, da Ribeira Brava, do Funchal, uma arena à solta,  de raiva selvagem contra pessoas e bens. Embora Machico tivesse sido poupado a tamanha tragédia, sentimos aqui chegar o clamor das águas e  o pranto aflitivo das vítimas. Nem a Imagem Peregrina, que por aqui andava,  pôde acudir à sua capela nas Babosas nem  aos cristãos,  amados filhos seus.
Organizámo-nos solidariamente, os que habitamos a comunidade da Ribeira Seca e, tal como fizéramos aquando das cheias de Moçambique no ano 2000, recolhemos boas-vontades, dinheiro e sacrifícios e lá fomos ajudar a desobstruir ribeiros e casas na Corujeira de Dentro, Monte, ao mesmo tempo  que, directa e discretamente, entregávamos  às vítimas o produto da nossa generosidade.
Aproveito este momento para partilhar convosco a mensagem que retribuí aos que participaram numa sessão pública,  como homenagem às vítimas. Aqui vai também  um sacudido  toque a rebate aos que têm a urgente obrigação de minorar os efeitos das catástrofes, pela prevenção e planificação ordenada dos solos e das linhas de água.





TRAGÉDIA  RODAVANTE



Furor
Das águas bravas
Onde estavas
Ou dormias
Oh Velho Adamastor
Das ilhas mansas,
Sadias?!

Donde vieste
De qual cerro ou cume
Batume  batume
Tumescente agreste
Desterrando o velho
Enterrando o menino?!
Oh belo horrível
Loucura e desatino
Oh caixa de Pandora!

Não chamem Deus
Nem a Senhora
Nem Júpiter nem Zeus
Que o mar e o trovão
Planetário em turbilhão
São amados filhos seus.

Velha matrona, ilha bendita
Tiveste a dita
De voltar à ilha virgem
Do seio furibundo
Da criação do mundo.

E … oh  prole maldita
Estirpe mole  e cobarde
Que chega sempre tarde
Ao tormentoso cabo da vida

Madeirense mareante
Que mesmo gemendo mão teme
Faz-te ao largo agarra o leme
Gente firme,  Povo atlante,
Rodavante  rodavante !

E Machico tem,
Machico sabe
Que o Cristo dos Milagres
Não quer que o mar  adormeça
Nem quer que o fogo se acabe

Venha um Infante de Sagres
Renasça o velho Marquês
Pra levantar dos escombros
De Lisboa ou do Funchal
Um Povo que é português
A força que é Portugal !.




Martins Júnior

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

23 de Fevereiro de 1987 - A MORTE QUE SE TORNOU VIDA!

(Mural alusivo ao 50º aniversário da música "Os Vampiros", pintado por António Alves na Ribeira Seca)

Acabo de ligar para a Associação José Afonso, São Bento, frente à Assembleia da República. Oiço as vozes dos muitos amigos e amigas que ecoam Zeca Afonso naquela sala onde os arcos ancestrais abraçam quem lá entra. Abraçou-nos também a nós, gente de Machico, da Ribeira Seca, quando lá fomos lançar o CD e Cancioneiro “A IGREJA É DO POVO – O POVO É DE DEUS”, em Dezembro passado. Ao “irmão-sósia” do Zeca e responsável  pela  AJA  --- Francisco Fanhais  ---  entreguei a saudação  dos amigos da Madeira que lançaram hoje as bases de uma delegação da AJA nesta ilha, onde cantou em 1976, agarrado à estátua de Tristão Vaz Teixeira. Do resto que se passou  ---  a invasão dos seis unimog’s de tropa sobre a centro da cidade, por ordem de Carlos Azeredo;  o apagão de toda a iluminação pública;  as bastonadas em cima das centenas de pessoas que começaram a fugir, às escuras, ruas acima, a bomba de 12 Kg de trotil na estrada do Seixo por onde Zeca Afonso, Otelo e seus acompanhantes na campanha eleitoral – cenas mais dramáticas que no tempo do fascismo, delas apenas deixo o enunciado. Contá-las-ei um dia.
Hoje é dia de falar com o Zeca. Ouvi-lo é falar com ele. Ele que fez da canção uma arma pacífica, ele que  cantou para agir colectivamente. E deixou rasto. Foi com galvanizadora emoção que escutei, nesta madrugada dos Óscares, (embora num cenário diverso)  a mensagem libertadora de Zeca Afonso na voz de dois vencedores:  o mexicano Alejandro Gonsález Iñárritu  a  reclamar contra o governo que marginaliza  os desafortunados do seu país e a anglo-americana Julianne Moore que dedicou o troféu à luta pela dignidade e igualdade de direitos da Mulher. Assinalável!
Peço licença ao “Grande Comandante” Zeca Afonso para receber este preito de amizade e apelo comunitário:


Que milenares raízes
Cruzaram as artérias do teu corpo astral?
E que multiformes matizes
Cobriram tuas asas de águia real?

Que poderoso íman trazias
No  peito
Para atrair e  te  ficar sujeito
O infinito universo
Que transformaste em som e festa
Em grito de fogo
Na alma de cada verso?!

Quem veio das salinas
Trouxe o mistério dos oceanos
Bebeu o transcendente mais fundo
Das amarguras marinas

Náufrago de berço
Atirado á Meia-Praia
Fez-se menino d’ouro
Abraçou Maria-Faia
E abriu o sol nascente
Aos putos do Bairro Negro.
Depois cantou, cantou
O murmúrio das ribeiras
Das formigas, das toupeiras
Milho verde, milho verde
Do Alentejo as ceifeiras 
Catarina lá do monte
Sangue novo do futuro
Adeus ó serra da Lapa
Maduro, Maio Maduro

Foi andarilho e soldado
Juntou-se ao homem da mata
Angola e Xipamanine
Rios de ouro e de prata
o pão negro dos escravos
E o champanhe dos vampiros!

Subiu ao céu dos arcanjos
Ouviu o coro dos anjos
Senhora do Almurtão
De cigano lhe  chamavam
Mas teve o diabo na mão!

Vem de novo!
Agora o que faz falta
É ter o Zeca na malta
Na malta do nosso povo.

O mundo não é maior
 Nem o planeta mais belo
Do que tu,  alto castelo
dos sonhos que nos deixaste
Na Grândola, Vila Morena
Do que tu, mastro cimeiro
Navegando ondas mil
Neste garboso veleiro
Machico Terra de Abril

23 Fev. 2015

Martins Júnior

sábado, 21 de fevereiro de 2015

O ABRAÇO DO ARCO-ÍRIS ENTRE O PASSADO, O PRESENTE E O FUTURO


Podia começar este “bate-papo” intermitente, entre dois dias pares, com o título já anteriormente utilizado (“Porque hoje é sábado, amanhã domingo…”), dado que, no meu serviço hebdomadário, terei de transmitir os textos bíblicos programados no respectivo ano litúrgico. E precisamente amanhã  abrimos o Livro do Génesis e lá encontramos uma página paradigmática da literatura bíblica, o mesmo que dizer, da literatura oriental, navegando daí para o vasto mar da hermenêutica, tarefa nada fácil esta de interpretar o que a letra do texto nos quer dizer.
Em concreto: a página a que me refiro é aquela em que  Moisés nos conta o cenário de espanto e júbilo que se seguiu ao “dilúvio universal” que  poupou apenas os escassos exemplares vivos que Noé (“com seiscentos e um anos de idade”) conseguiu guardar na arca. Numa linguagem envolta em metáforas carregadas de carinho, o Senhor Deus Iaveh diz que se reconcilia com o género humano, agora renovado, assinalando o ícon dessa reconciliação:
Quando eu cobrir a terra de nuvens e aí aparecer o arco-íris, recordar-me-ei da aliança que firmei convosco e com todos os seres vivos da terra: e as águas do dilúvio não voltarão mais a destruir as criaturas”(Gen.9, 14).
De cenas como esta anda a Bíblia cheia. E porquê? É o estilo literário comum às literaturas orientais e mediterrânicas, marcadas pelo mito, por um poético sentido onírico, em que o sonho, a metáfora, a alegoria, enfim, a parábola se apresentam como o refrão instrumental da sua pedagogia, quer dizer, numa linguagem empírica, visível a olho nú, mas com o intuito de transmitir o invisível, o misterioso, Basta compulsarmos a civilização grega e a sua multiforme criação mitológica.
Não é de somenos importância esta reflexão. Não é divertida, bem sei, mas torna-se  sugestiva e útil para a percepção da realidade. Partamos de um princípio pacificamente aceite: quanto mais atrasado, analfabeto, (permitam-me) infantil é uma pessoa ou um povo mais raciocinam pelos olhos, pelo sensorial e tangível. O próprio J:Cristo afirmou que só  falava ao povo em parábolas, para que depois os ouvintes tirassem as devidas ilações.
         Daí que seja necessário um cuidado enorme para não cairmos numa interpretação puramente literal dos textos bíblicos: a sarça ardente, o maná do deserto, a maçã de Adão, toda a narrativa da criação (“ao sétimo dia Deus descansou”…tão depressa se cansou o Criador, numa semana de trabalho?!) o Livro de Job, considerado pelos exegetas como uma bem concebida alegoria, também algumas expressões que ainda hoje se dizem “Jesus está sentado à mão direita de Deus Pai” (tanto tempo sentado… mas como à mão direita, se Deus é Espírito, não tem  direita nem esquerda, nem corpo?!).
Levar-nos-ia longe o filão deste rio (cá está mais uma metáfora) de questões e interpretações, o que obriga o crente e o não crente a pesquisar, a repensar, a reconstruir desconstruindo. Além do prazer de descobrir, este esforço configura um valoroso exercício  Quaresmal, mais que jejuns e orações vocais.. Não tenho receio de repetir o que ensino à gente que me escuta regularmente: Rezar dá menos trabalho que pensar. Pensar custa muito mais. É o valor da denominada “oração mental”.

Esta caminhada para a desmitização, assente em critérios seguros, é consonante com a “autoridade eclesiástica que reconhece a necessária dependência da investigação científica”(Gonsalez-Ruiz, Igreja, Fé e Missão).  E sublinha Paul Tillich, em Dynamics of the Faith: “A desmitização é uma atitude constante do crente para impedir que a sua fé se torne idolátrica.”
Com efeito, cada lugar e cada civilização têm a sua idiossincrasia terminológica, a tal ponto de   (diz ainda Gonsalez-Ruiz) “uma verdade poder ser traduzida por certas representações falsas em si mesmas, mas que em determinado estado de civilização sugerem bem a verdade pensada”.
Fiquemos com a romântica beleza do arco-íris. O que é mais curioso é que ele serve, não para nós, para Deus recordar-se da aliança feita com o seu povo, como diz a leitura de amanhã. Trata-se manifestamente de uma hipérbole: Deus recupera a memória avistando o arco-íris… O mais importante, porém, é a moral da história: tudo o que é humano está articulado com o divino, como talentosamente sintetiza o grande poeta e dramaturgo Paul Claudel, em Présence et Prophétie: “Não há um universo religioso e um universo profano; há uma única revelação transmitida numa linguagem inumerável, contínua e reciprocamente transmissível”.

De hoje a um mês o arco-íris há-de trazer-nos a Primavera multicolor e benfazeja. Viva!

21.Fev.2015

Martins Júnior

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

BARRETES E ANÉIS - CARDEAIS AO ALTO!

Foi um fim de semana vistoso, multicolor, tintas garridas, onde se misturaram o Dia dos Namorados e os intermináveis carnavais por todo o mundo. Curiosa é a coincidência de um ritual religioso, precisamente da Igreja Católica  na Basílica do Vaticano que concitou as atenções de todo o planeta: a entronização (assim lhe chamo) dos 20 novos cardeais, em cujo elenco se conta o patriarca Manuel Clemente, bispo de Lisboa. Aí, por entre o clássico luxo das colunas douradas, sobressaía, olímpico e triunfal, o vermelho escarlate dos purpurados., um festival de brilho e chama, com anéis, barretes,  bulas de pergaminhos ou similares.. Que terão visto os milhões de espectadores  e que sínteses terão feito acerca de tão nobilíssimo cenário, tudo em manifesto contraste com a simplicidade de um homem que tanto se tem esforçado por  uma “Igreja pobre e para os pobres”?   
Talvez seja preciso começar por decifrar a nomenclatura originária de “cardeal” e um pouco dos seus desenvolvimentos ao longo dos tempos. As rotas que o barco deu para fugir àquele porto de chegada que a bússola lhe indicava!
Sinteticamente: o termo entrou no vocabulário católico, logo após o fim da perseguição aos cristãos, com a Paz que o Imperador Constantino ofereceu ao cristianismo:  organizaram-se, ao redor da cidade romana,  as paróquias, células da Igreja, com os líderes, os párocos e respectivos assessores ou coadjutores, os diáconos, os quais, por constituírem os eixos operacionais da Igreja, eram chamados “cardeais”, isto é, etimologicamente, os “gonzos” que agilizavam e punham em movimento a mensagem de J:Cristo. Eram conhecidos como “cardeais presbíteros” (padres), “cardeais diáconos” (coadjutores), criando-se mais tarde nas dioceses, os “cardeais bispos”. Cardeal significava acção, dinâmica, trabalho. Todas as funções ganhavam, portanto, a classificação de “cardinalícias”. Com a proeminência que a Igreja foi conquistando, promiscuindo-se com o poder temporal dos monarcas, a designação de “cardeal” passou ao patamar de um segregado, nomeado,  uma espécie de classe dos brâmanes”, a que o Papa Francisco diante dos próprios novos oficiais  chamou de “casta”, uma tentação que deviam evitar. E não se enganava.
Já no reinado de Eugénio III (1145-1153) os cardeais formavam o Senado do Pontífice. Tinham o privilégio de senadores, o Colégio Cardinalício, uma classe aristocrática restrita, cujo conteúdo funcional consistia em fiscalizar o Vaticano e escolher, em assembleia de voto, o Papa. Com o Papa Eugénio IV (1431-1447) os cardeais ocupavam, em termos de protocolo e hierarquia, um estatuto de precedência sobre padres, bispos, arcebispos e patriarcas. Isto com a particular circunstância  e o poder discricionário do Papa em nomear cardeal um elemento que não fosse padre ou bispo ou clérigo algum.
E aqui começa o reino do mais vil favoritismo e do mais descarado nepotismo, a começar pelo poder imperial. Todos os reinos empertigavam-se, à compita, para ter na corte pontifícia familiares ou mandatários seus, na categoria de cardeais. Mesmo dentro da própria hierarquia eclesiástica era idêntico o escândalo, como no caso do italiano Carlos Borromeo (mais tarde feito Santo) que, por ser sobrinho do Papa Pio IV,   ascendeu ao cardinalato, com a idade de 18 anos apenas. Incrível. Outros foram Primeiros Ministros, Thomas  Wolsey, Mazarino, Richelieu, Ximénez Cisneros etc.. Outros até chegaram a ocupar o trono real, o que, para nós não é novidade nenhuma: o cardeal D. Henrique, tio de D. Sebastião.
Basta fazer uma leitura  despreconceituosa da História, para chegar-se a esta conclusão: a casta (chamar-lhe-ei raça) dos cardeais foi a pior cizânia, o joio  infiltrado na seara da Igreja. Eles estiveram na origem dos piores escândalos públicos  da religião cristã, tráfico de influências, conluios obscuros, espionagem e até assassinatos. São do cardeal Paluzzo Paluzzi, séc.XVII,  as seguintes blasfémias: “Se o Papa ordena liquidar alguém na defesa da fé, faz-se isso sem fazer perguntas. Ele é a voz de Deus e nós (a Santa Aliança) somos a mão executora” (Eric Frattini) . E nós ainda nos espantamos com  o fanatismo  jihadistas na sala de redacção do Charlie Hebdo?!
Não quero maçar-vos mais com tétricas narrativas históricas. Há muita literatura nesse sentido, em especial  “Herdeiros do Pescador”, nos bastidores da morte e da sucessão papal” de John Peter Pham, ed. Europa-América.
Tudo isto para esclarecer a carga semântica que nos suscita o epíteto de “Cardeal”. Não tem um passado limpo. E não foi por acaso que Bento XVI abandonou  o Sumo Pontificado. Por muito menos acaso,  este próprio Francisco Papa compara a cúria romana a um covil de lobos --- de cuja limpeza tem-se esforçado com um denodo incomparável.
É por isso que eu imagino quanto não terá custado à sua mentalidade e ao seu temperamento aquela tão aparatosa cerimónia para nomear os seus mais directos colaboradores e assessores. Mas --- noblesse oblige --- teve de observar o protocolo. Ainda não chegou o tempo de simplificá-lo.
Teve de entregar o barrete. Não sei se sabeis que,  até 1969 (com o generalíssimo Francisco Franco e a pedido de Paulo VI) eram os soberanos dos países católicos que tinham o exclusivo de impor a biretti  na cabeça do novo cardeal que,  para o efeito, se ajoelhava diante do monarca. Ridículo. Como ridículo é dizer-se que aquele barrete significa o sangue que o seu titular está pronto a  derramar  por causa de Cristo. Um simples padre, na sua Missa Nova, (aconteceu comigo em 1962) também passava a usar um barrete idêntico,  denominado o “tricórnio”, mas de cor preta. Assim, o sangue de um jovem sacerdote era preto e o do cardeal seria vermelho…
Teve de  enfiar-lhes  um anel. E ainda com a agravante de chamar-lhe o “anel de Pedro”. Impossível, insuportável!  “Os calos são os anéis do povo trabalhador”, diz o ditado popular . Os anéis de Pedro eram os anzóis, as redes,  os remos, as rugas da dura faina do mar. Basta de teatro de marionetes!
Mais:  há dois nomes que não deviam ser embrulhados naquela cerimónia:. o de Cristo e o de Pedro. Chamem todos os outros, os espirituais, os metafísicos, os invisíveis, (Pai, Espírito Santo, etc.) mas estes dois não. Não têm nada a ver com o espectáculo mundano. Aliás, estão contra  tão sofisticada  deturpação da realidade. Porque  a sua vida assim o demonstra.
É por tudo isto  --- e muito mais ficou por dizer --- que me ponho na pele do Papa Francisco e imagino: “Que seca!” Mas no dia seguinte, “pagou-se”, isto é, desabafou, com a transparência que o distingue: “Não penseis que agora pertenceis a uma casta”.


Uma nota que me persegue e me revolta enquanto escrevo: pensar que a esta hora está o Poder Judicial, refastelando-se  à mesma mesa e a convite  do” ex-recente-futuro” defunto  Poder Político  na Quinta das Angústias. É o despudor primário. “À mulher de César…”, sabeis o resto.. Deve convidar o inquilino anfitrião para o almoço de despedida  em Lisboa, num dos salões de gala da Procuradoria Geral da República.

19.Fev.2015

Martins Júnior

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

TERÇA FEIRA DE CARNAVAL - A CEIA DOS CARDEAIS


ADEUS, Ó CARNE!

No seu sentido etimológico, entende-se o Carnaval como a tradução latina de “Caro, Válè”, o mesmo que “Adeus, carne, prazeres do mundo”, porque vai entrar a Quaresma, tempo de jejum e abstinência. Os “Sete Magníficos” maiorais da aldeia, reuniram-se em segredo. Mas o “Senso & Consenso” teve acesso a tão estranho conclave, de onde saíu fumo triste:



  Pra dizer adeus à carne
                   Foi marcada uma assembleia
                   Oito cardeais de luto
                   Juntos na última ceia
                   Antes da quarta das cinzas
                   Chegaram à “Quinta Vegeia”
                   Porque o Dono Disto Tudo
                   Marcou prá noite de Entrudo

                   Lacrimejantes os velhos
                   Na mesa do consistório
                   Eram como almas penadas
                   Ardendo no purgatório
                   Com a ementa que lhes deram
                   Nesse triste refeitório:
                   No prato dos maiores nossos
                   Em vez de carne, só ossos

                  
                   Ninguém queria comer
                   Torciam cada nariz
                   Pareciam degradados
                   Expulsos do seu país
                   Entrou o DDT
                   E furioso lhes diz:
                   Já engordastes  demais
                   Agora adeus carnavais

                   O mais moço educadinho
                   Pega logo no seu prato
                   E vai prá casa de banho
                   Vomitava como um gato:
                   “Até  aqui comi do lombo
                   Agora ossos do sindicato
                   Soluça, bebé chorão,
                   Adeus minha Educação”


                   O rapaz de papadinha
                   Indigitado pra Papa
                   Pelo vigia da quinta
                   Vendo-se fora do mapa
                   Pernas pra que vos quero
                   Foi depressa e à socapa
                   Levar ao seu  matadouro
                   O gado do seu pelouro
                  
                   O geronte brasileiro
                   Secretário dorminhoco
                   Acordou pra aquela ceia 
                   E disse “Tá tudo louco
                   Dei saúde à Região
                   Agora levo no coco”
                   E saiu já mortal
                   Prá morgue do hospital


                   Encolheu-se na cadeira
                   O porteiro das Finanças
                   De tanta carne oferecer
                   Pra festeiros  e festanças
                   Só lhe deixaram um dente
                   Carpindo como as crianças:
                   “Agora é que foi de vez
                   A funerária Garcês”


                   Copinho-leite talhado
                   O vice-rei altaneiro
                   Saudoso das franganitas
                   Que vinham ao seu poleiro
                   Não cantava só gemia
                   Num estertor derradeiro:
                   “Emigro prá Catalunha
                   E meto ao Mas uma cunha”


                   “Essa é velha, arranja outra”
                   Disse em tom desagradado
                   A Sãozinha da espécie
                   Aracnídeo dourado
                   Com passaporte e bagagem
                   Deu um  adeus  atravessado:
                   “Cá não perdi tempo nem vista
                   Arranjei-me co’ um turista”

                 
                   O que depois se passou
                   Ninguém sabe nem divisa
                   O UI  foi-se agitando
                   Pior que a torre de Pisa
                   Estatelado no chão
                   Só gritava por Syrisa
                   E berrava como um bruto:
                  “Tragam lume e um charuto”

                   “Ai este palácio-rosa
                   Que me deixou meu avô
                   E mais o bispo Santana
                   Que Noss’Senhor o levou
                   Saindo daqui prá rua
                   Mas meu Deus pra onde vou?
                   Num jardim  com tanta pinta
                   Fico em vigia da Quinta

                   Mas chegou logo um anão
                   E pela mão o busico:
                   “Sei que vendia retretes
                   E contigo fiquei rico
                   Deixa a cadeira ao piqueno
                   Tenho raça de Machico
                   Se não fazes o que eu mando
                   Vou-te lixar não sei quando”
                  

  Pra acudir ao DDT
                   Nesta amarga geringonça
                   Entra um morgado que rima
                   Com os amigos da onça
                   DDT  viu e ouviu
                   O vai-treze do Mendonça:
                   “Vão-me correr da Assembleia
                   E tu da  Quinta Vegeia”


                 “Deste muita corda larga
                   Ao teu delfim-traidor
                   Não te importes,  já enchemos
                   O nosso congelador
                   Da carne desta vaquinha
                   A congelada é a melhor
                   Quinta Vigia de outrora
                   De Angústias ficaste agora”

                
                  E saíram cabisbaixos
                  Tapados como jihadistas
                  Cada qual pelo seu beco
                  Que nenhum desse nas vistas
                  Nem um pingo do seu pranto
Soubessem os jornalistas
Mas ninguém me leve a mal
Porque hoje é carnaval

17.Fev. 2015
Martins Júnior

domingo, 15 de fevereiro de 2015

PORQUE É CARNAVAL…

(aspecto parcial da trupe do CCCS-RS)
Desde sábado até terça-feira ficam de fora os argumentos, as elucubrações  sofo-teológica e vamos é reinar, dar tolerância de ponto ao pensamento planificado. Vamos à rua, ver, saltar, batucar sem rodeios nem receios. É carnaval e nada se leva a mal.
Muito de rapina vou passar por entre as  trupes que animaram a baixa da cidade de Machico. De todas as freguesias do concelho vieram representações numerosas, umas mais originais que outras . Vou referir-me à do CCCS-RS (Centro Cívico-Social  e Cultural da Ribeira Seca), que brindou a imensa multidão com uma homenagem a Cristiano Ronaldo, misturando Sua Alteza Real com uma pimentinha típica da cozinha “machiqueira”.
Desde que o locutor de rádio anunciou  o “grande derby” dos cinco Ronaldos, em que foram protagonistas cinco miúdos trajados a preceito, Andorinha, Nacional, Sporting de Portugal, Manchester United, Real Madrid, um frenesi levantou toda a trupe, em uníssono:
Ronaldo, Ronaldinho, Ronaldão
Campeão, capitão da nação
Ronaldo, Ronaldinho, Ronaldão,
Não quero a tua bola, dá-me a tua camisola
E também o teu calção.

Você é nosso, oh-oh
Você é nosso, oh-oh
Porque você é de Machico
É do Caniçal
É da Madeira ,
                    De Portugal

Cristiano Ronaldo
Fenomenal
De todo o mundo você
Você é o maioral

Após esta saudação monumental, lá vem a sátira, com todas as mulheres doidamente fãs  pelo craque, a Irina que pedia o shampoo, a Gina que pedia a lingerie da marca CR7, a Regina que arrancava a camisola, a Pirina que só queria o dinheiro (os Ronaldinhos faziam voar notas de 100 euros da defunta marca Banco Espírito Santo)  um verdadeiro teatro de rua, que fez a mãe do campeão perder a cabeça e enxotar à paulada e em linguagem vernácula de calão, “larguem o mê filhe da mão” e outros   mimos que costumamos substituir pelos habituais pi…pi…pi…
Castiça era a estátua de Ronaldo, de 3 metros de altura, cuja cabeça tinha a configuração de uma bola de futebol. Os espectadores mais familiarizados com o género satírico, comentavam: ”Está mais bem feita que a do Funchal”.
Enfim, um comentário leve e ligeiro: reparei que a trupe constituía uma efusiva assembleia de família, pois víamos pais e filhos embalados na mesma onda contagiante. Depois, a música e a letra originais, como sempre acontece com a trupe do CCCS-RS, em contraste com a quase totalidade das outras trupes que ensurdeciam os ouvidos com a mesma movimentada, mas já enfadonha,  música brasileira.
As entidades organizadoras deviam incentivar a criatividade musical, promovendo, com ou sem troféus, as produções oriundas de compositores da terra e da ilha, para que o Carnaval contribuísse também para o florescimento de valores culturais autóctones e não apenas as emplumadas transposições dos grandes sambódromos cariocas. E não só em Machico, no Funchal também. Pena que a nossa TV/M não desse o esperado relevo a um tema de inspiração estritamente regional…

Mas o que importa é folgar e fazer uns diazinhos de tréguas  na guerra civil do calendário quotidiano.  Porque tudo é bem e nada é mal… no Carnaval. 

Martins Júnior
15.02.15

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

SEXTA-FEIRA, DIA 13

Sexta-feira era o dia  aziago do nosso vale, da pobre elha cega que aí vivia sua triste vida de dores, remorsos e desconfortos…Era na sexta-feira que o frade, o demónio vivo daquela mulher de angústias lhe aparecia, tremendo e espantoso”…


Nesta página das “Viagens na minha terra”, história e romance de um primor inegualável, Almeida Garrett remete-nos para grande parte da sua obra, povoada de lendas,  fadas e  duendes, chamado o reino das superstições. E trago-o hoje à nossa mesa por dois motivos:
Primeiro, porque anteontem penetrámos no maravilhoso mundo sempre novo das ciências: a ciência cheira sempre bem e a ignorância tresanda ao ranço da mais grotesca cegueira. Não é por acaso que Almeida Garrett, tal como Alexandre Herculano,  obedecendo aos códigos do romantismo, vasculha as populares lendas medievais e  incarna a superstição numa mulher “velha e cega”.
Segundo: estamos hoje  numa dessas  “furnas do cavalão” ou furnas do demo, como é tradição dizer-se em Machico: hoje é  sexta-feira e, ainda por cima, enxertada, acoplada com o número aziago do calendário, o dia 13.
Julgo que os mais jovens abandonaram por completo esta hidra de duas cabeças que,  para seus pais e avós,  faziam tremer e alterar os seus hábitos. Até em ambientes mais envernizados, os hotéis, numeravam os quartos,  passando do nº 12 para o nº 14, intercalando-os com o nº 12-A, para evitar o “espírito mau” do nº 13.
Mas quem percorre  os atalhos e veredas que atravessam a psique destes tempos, ditos modernos, acaba por descobrir cobras e lagartos imaginários no subconsciente latente activo de muita gente. Pululam por toda a parte,  como cogumelos roxos,  os bruxos feirantes,  estimuladores de traumas, armados com aquele poder que lhe conferem os temores e  a ignorância dos seus clientes. 
E é em climas religiosos que prolifera o húmus mais fértil e pernicioso da superstição. Em todas as religiões: desde os chamados santos óleos, as águas bentas (toda a água pura está benta, abençoada de nascença) as candeias nas mãos dos moribundos, as cruzinhas compradas em determinados santuários etc.,etc.. tudo rituais da Igreja Católica medieval que ainda vegetam nos subterrâneos de muitos neurónios. Cenas do mais rasca fetichismo já eu contemplei em templos de outras religiões, a do Reino de Deus, por ex., fotocópias europeias dos batuques africanos  comandados pelo feiticeiro da tribo, de que  eu próprio fui testemunha ocular em sanzalas (tembas) moçambicanas. Já Camôes alertava contra “a superstição falsa e profana/ da religiosa água Maometana”.
Mas há ainda uma outra barragem pantanosa,  interessada em derramar o mito, a superstição populista entre o povo fraco, porque ignorante: a política. E quando se juntam, as duas --- religião e política --- então temos o incesto perfeito. Nem de propósito: hoje a Igreja celebra a festa dedicada às “Cinco Chagas de Jesus”. O porquê: a aparição do Crucificado a D.Afonso Henriques, na noite que antecedeu a batalha de Ourique que terminou com a derrota dos mouros. Assim nos ensinaram na escola e na catequese, ao ponto de ainda hoje figurarem os cinco pontinhos em cada escudo da bandeira portuguesa. A mesma lenda já tinha barbas, desde o ano 313 quando o Imperador Constantino Magno disse ter visto no céu uma cruz, sob a qual estava escrito:”In hoc signo vinces” (neste sinal tu vencerás). Sinais, mitos e mistérios, aparições, coisas estranhas, tudo serve aos dois poderes para trazer o povo amarrado à corda bamba  dos seus interesses.
         A superstição é o medo que não conseguimos vencer e pouco fazemos por isso. Conheci, porém, na minha juventude, um amigo que tinha marcado o casamento para a última semana de Julho. Ele era um jovem eufórico, inteligente, desportista. Para afrontar a tripla  superstição ( Agosto era também mau agoiro) esperou pela data “ideal” e dizia entre gargalhadas aos amigos: “Vou-me casar em Agosto… numa sexta feira… dia 13”.  E fê-lo. E a felicidade do casal, mais que as gargalhadas francas do anúncio, foi o estendal das suas vidas.   
      Dias 13 haverá ainda mais dois neste ano, Março e Novembro. Que estes meus devaneios, com alicerce no firme, sirvam para afrontarmos não apenas o dia 13, mas todos as horas do nosso percurso terrestre.
   

    
       A terminar: propositadamente escrevo na ponte movediça que liga ao 14 de Fevereiro, Dia dos Namorados. Só amor vence o medo e a morte. Deixemo-nos contaminar pelo feitiço do amor. O verdadeiro Amor é o baluarte onde o medo e a superstição não conseguem entrar!

14/14.Fev,2015

Martins Júnior

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

DO CÍRCULO VICIOSO AO CÍRCULO VIRTUOSO

       




          Passo por entre os tornados que hoje varrem as rotativas da imprensa, noticiários televisivos, ecrãs domésticos, com as cimeiras de Bruxelas-Grécia, Ucrânia-Rússia em Minsky e, mais cá dentro, o corte de relações entre os dois clubes vizinhos da 2ª circular (o mundo vai desabar por causa da guerra civil entre Benfica-Sporting, ah,ah!?) e vou deslocar-me até à  China longínqua para “filosofar” sobre uma notícia que fez parte também dos informes diários. Trata-se de uma questão de ciência, do poder exaltante da inteligência humana. E se é ciência é poesia. Nós é que pensamos que não. Já nos advertia Fernando Pessoa quando disse que  ªo binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo. O que há é pouca gente que dê  por isso”.
Neste meu apontamento, refiro-me à capacidade transformadora que anima cada ser, mais concretamente na área da produção energética. Quem diria que as torrentes jogadas das altas fráguas, quando educadas nas cilíndricas paredes de uma conduta, accionam as turbinas  da central hidroeléctrica para iluminar um país inteiro?  Quem diria que os tenebrosos ventos que despem as florestas, aceites e digeridos pelas asas de uma torre, abrem-se em luz na bonança do nosso quarto? E quem imaginaria que o mesmo “milagre” acontecesse com o vaivém das marés? E os lixos, farrapos que nos atrapalham na cozinha, quem os julgaria portadores de energia limpa que reentra, prazenteira, pelo tecto das nossas casas fechadas? Na Madeira de 2014, dizem os responsáveis da Meia-Serra, a produção aumentou em 25%. Nestes e outros casos, razão tinha Lavoisier quando compôs aquele belo poema de um só verso: “Na Natureza nada se perde e nada se cria, tudo se transforma”
         Agora fechem os olhos e tapem o nariz, perante esta notícia fresquinha de jornal: “E das fezes humanas, o país mais populoso do mundo está a produzir energia… Cada vez mais resíduos de esgotos na China estão a ser transformados em biogás e adubos… Heinz Peter Mang, engenheiro alemão, de 57 anos, catedrático da área do saneamento ecológico na Universidade de Ciência e Tecnologia de Pequim, afirma que “este país está sentado em cima de uma mina de ouro” (Público, 10. Fev.2015).
         É o círculo vicioso transformado em círculo virtuoso.
Os prodígios, que antes se atribuíam a uma entidade suprema que fazia o que chamávamos de “milagres”, estão hoje na mão do homem. Foi Auguste Comte, le prêtre positiviste, que, desde há duzentos anos, abriu ao mundo o livro dos três estádios: o teológico, o metafísico e o positivo, cabendo a este último o poder e a obrigatoriedade de definir, ampliar, sublimar a frágil condição humana e terrestre.
E porque “a ciência cresce em espiral”, o que é preciso é ter coragem de alçar-se mais alto e derrubar as torres de Babel que nos puseram diante dos olhos como sentinelas do reino da ignorância e do obscurantismo. É nesta linha recta que se inscreve o pensamento científico de Heinz Peter Mang: ”Graças à ausência de tabus sobre a reutilização da matéria fecal na China, cabe à ciência garantir essa reutilização segura e há aqui uma oportunidade sem precedentes”.
A ciência cheira bem, venha ela de onde vier. Identifica-se com as mãos mitológicas do rei Midas que transformavam em ouro tudo aquilo que tocassem.
Mas, diante dos acontecimentos que evoquei ao princípio, chegamos à paradoxal constatação da sua antítese. Lembra-me  uma canção  que por aí anda em voga, verrinosa  na sua letra, quando acusa alguém que  o (a) traiu “Tu tens as mãos e o dom de Midas, mas ao contrário”.
É o que, com pessimismo e repulsa, apetece dizer aos desumanos dominadores do capital e do poder. E nem me atrevo sequer a  pronunciar, porque, isso sim, cheira à mais abjecta podridão!
Enfim, o círculo virtuoso virou círculo vicioso.

11.Fev.2015
Martins Júnior