domingo, 19 de abril de 2015

O POVO NA CENTRALIDADE DA ECONOMIA DE ABRIL


Calcorreando a encosta que nos conduz à entronização anual do “25 de Abril” propus-me trazer comigo o farolim que nos ajudará a descobrir as veredas que lá nos fizeram chegar. É, pois, à luz dos acontecimentos ocorridos em Machico em 1974 que intuiremos o genoma criador de todos os Abris da história: a posição central do Povo na transformação da sociedade. Enquanto o Povo não ocupar a centralidade da, chamemos, renovação ou revolução, nada será duradouro. É a lição da História, a nossa também. Jamais poderá esquecer-se a “Crónica de D. João I”, onde Fernão Lopes coloca no seu posto cimeiro o dinamismo do Povo de Lisboa na recuperação da independência lusa face às ambições de Castela. Embora não desmereça  a figura de um líder carismático na pessoa  do “Mestre de Avis”, o cronista do Reino apresenta o Povo como o grande protagonista desse feito patriótico.
Ora, foi isso mesmo que a população do concelho viveu, mas sobretudo na, então, vila de Machico. Como testemunha ocular e narrador homodiegético, cedo me apercebi que o Povo, ainda que escasso de letras e manuais, reserva no seu âmago o gérmen revolucionário, o mais genuíno,  e até ensina aos líderes a metodologia estratégica e mais  certeira para atingir os objectivos.
Basta-lhe que não lhe ponham entraves preconcebidos, que ele mesmo será capaz de desbravar o caminho. A isto chamo eu a “centralidade” da concepção e da acção renovadora.
E foi no chão térreo da vivência quotidiana que tudo começou. Aquilo que os teóricos catalogam de estratégia revolucionária, o Povo viu, sem teoremas nem compêndios,  que a condição “sine qua non” para o êxito  consistia em entrar directamente nos três centros de decisão superior, o tripé de onde se abarca e determina todo o processo social: a economia, a política e a cultura, nas suas mais distintas vertentes.
Não é possível descrever, senão sumarissimamente, os passos, os avanços e recuos e, de novo, as retomas desta luta para influenciar o sector produtivo e ficar ali presente com autoridade paralela ao empresariado, alterando as regras do jogo sujo da exploração, fiscalizando o valor atribuído ao produtor, fixando preços nesse produto.
Logo à cabeça, era preciso atacar o monstro que subjugou gerações e gerações na ilha --- a colonia --- cuja mais degradante expressão para as famílias era a proibição de construírem uma habitação condigna Sacudir essa canga secular não foi tarefa pacífica, acarretando ameaças dos grandes senhorios, processos judiciais, presidentes municipais, oficiais de Finanças e até da própria Igreja, ela também senhoria de vastas porções de terreno. Os Caseiros de Machico conseguiram unir milhares de colonos em toda a ilha, a UCIM,(União dos Caseiros da Ilha da Madeira) criaram o seu órgão de informação, o semanário “O Caseiro”, realizaram plenários, até que conseguiram sair vitoriosos com a publicação do decreto legislativo regional, denominado Decreto da Extinção do Regime da Colonia, em 1977.
Outra conquista irreversível foi a fixação do preço/Kg de cana sacarina em 2$50, pagos no acto de entrega e sob a vigilância de um representante dos produtores na balança de pesagem. O quanto isto custou?! Ocupação dos engenhos, sobretudo o da fábrica Hinton, impedindo a entrada de camiões carregados de milhares de molhos de cana durante mais de quinze dias e, por fim, as bombas lacrimogéneas que o brigadeiro Azeredo (governador civil e militar) mandou atirar contra a enorme multidão apinhada frente ao Palácio de São Lourenço. Mas o Povo venceu!
Outrotanto se passou no sector dos bordados, dessas “Lágrimas correndo mundo”, como bem titulou o grande escritor Horácio Bento de Gouveia num dos seus romances históricos. As mulheres de Machico, unidas a outras centenas de  bordadeiras da  Ilha, chegaram a formar a sua Cooperativa, a UBM (União das Bordadeiras de Machico), a qual foi tantas vezes tripudiada por patrões das casas de bordados do Funchal, do Governo Regional   e da Câmara Municipal de Machico, ocorrendo cenas indescritíveis de agressão às mulheres dessa cooperativa de produção.
O mesmo poderia desenvolver quanto ao sector comercial, quando a população decidiu abrir uma outra cooperativa, esta de consumo, no centro da vila, como expressão do poder do Povo contra o modelo comercialização/exploração e em resposta aos comerciantes de então que se comportavam como lacaios dos poderosos contra o novo mundo nascido em “25 de Abril”.
Fico-me hoje por este capítulo, com os sucintos apontamentos de uma época vivida, suada e transfigurada pela força da população que, nessa altura, organizadamente mas decididamente, se colocou na centralidade das soluções no domínio da economia de então para este concelho e, extensivamente, para a Ilha.
     
19.Abr.2015

Martins Júnior

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