sexta-feira, 3 de abril de 2015

SEXTA-FEIRA DE UM CRIME MAIOR

    

      Hoje o audiovisual oferece-nos um sádico paladar  do mais requintado masoquismo. O paradoxo é total: desde as grandes catedrais ao mais humilde reduto de crentes, desde os sumptuosos cortejos das cidades, no  “enterro do Senhor”  com os acordes da marcha fúnebre de Chopin, até ao paroxismo das representações cruentas das flagelações nas Filipinas, os nossos olhos enchem-se do sangue impresso em sudários especiosos e nos ecrãs televisivos. E o povo acorre, como um pagante contrito que vem saldar uma dívida pessoal a Quem “morreu pelos seus pecados”. E bate no peito, lamenta-se e chora. E sente-se absolvido de uma pena imaginária.
         Devo desde logo apresentar o meu registo de sentimentos e de interesses nesta matéria: preferia mil vezes que não houvesse sexta-feira santa. Na comunidade a que pertenço também fazemos a Via Sacra pública, mas fazemo-la sob protesto. Porquê?
         Porque o sucedido neste dia é um tremendo libelo acusatório contra um dos maiores crimes da história, perpetrado pela mão do Homem. E nunca haveria ter-se chegado a tamanha atrocidade: assassinar Quem veio abrir os olhos à multidão vítima da cegueira de séculos, de milénios. É aqui que se centra a matéria de crime.
         Que autores e que instituição urdiram e executaram o plano maquiavélico deste assassinato? Incrível, inimaginável: a Religião oficial da Judeia e os seus mais altos titulares, os Sumos Sacerdotes Anás e Caifás. Os restantes agentes, meros instrumentos compulsivos, até o próprio Pilatos, mais não foram que peões de circunstância no xadrez deste hediondo processo religioso.  Pode concluir-se que tudo se passou na linha programática de  um  teocrático Estado Judaico-religioso, uma Jihad antecipada. Não me parece corresponder estruturalmente à verdade dos factos dizer-se que Jesus entregou-se à morte. Na opinião de estudiosos biblistas  esta entrega voluntária configura-se, no limite, com um acto de suicídio. Pelo contrário, Jesus foi assassinado! Reduzir o caso a um simples relato de que “morreu na cruz” é muito pouco. Ele foi assassinado, chegando ao ponto de verter suor de sangue quando pediu ao Pai:”Afasta de mim este cálice”, ou seja, tira-me desta conjura e deste tormento.
         Por isso, percorremos a “Via Crucis” do Calvário sob protesto. Por nós, aqui e agora, nunca teríamos consentido em tão horrenda sentença. A cruz não é apenas o símbolo da generosidade e do perdão. É também o ignominioso padrão da criminalidade sócio-religiosa, igual ou pior que as forcas e os fornos crematórios de Auschwitz.
Não vou demorar-me nesta revolta interior perante o outrora sucedido. Fico-me com o pensamento místico e concreto de Blaise Pascal: “Jesus continua em agonia até ao fim dos tempos”. Ao rememorar as diversas estações, fomos evocando as vítimas que os tempos nos deixaram, Pe. António Vieira, Mahatma Gandhi, Teresa de Calcutá, Aristides Sousa Mendes, Luther King,  Catarina Eufémia, os bandeirantes da Justiça, os sindicalistas abatidos, os prisioneiros das ditaduras, as de ontem e as de hoje.
         Sexta-Feira Santa! Noite de luto histórico, de pesadelo universal, de revolta interior contra os legisladores iníquos, contra os criminosos públicos que ainda hoje continuam a matar!

3.Abr.2015
Martins Júnior

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