segunda-feira, 29 de junho de 2015

PEDRO “POPULAR” --- OU O NOSSO AUTO-RETRATO

(Foto: Facebook da Câmara Municipal de Machico)

Ontem à noite foi a véspera:  alinhei e aplaudi as romarias, as da cidade de Machico, as outras e a nossa,  com a marcha original do  “ S. Pedro da Ribeira”, leia-se, Ribeira Seca. E as de Câmara de Lobos, da Ribeira Brava, da Póvoa de Varzim, enfim, de todos os cantos e ruelas, por onde os arcos e os balões soltavam foguetes de alegria em “louvor do S. Pedro”, mas que, feitas as contas, o destinatário eram os foliões e as respectivas claques.
Hoje, 29 de Junho, foi o dia de andar com o Simão Pedro, na sua casa, no “calhau” do mar de  Tiberíades, no meio da companha do barco onde foi arrais, nos caminhos da Palestina, no monte Tabor,  no Jardim das Oliveiras, até aos tribunais do Sinédrio e ao cadafalso da crucifixão. É sempre assim todos os anos: ando com ele. E foi aí que um dia descobri o fundamento de chamarem  a  Pedro  um dos “Santos Populares”. Enquanto a multidão acha-o popular pela folia da véspera, muito participada e divertida, descobri a extensão semântica do termo “Popularidade”.
Popular é tudo quanto ---  pessoas, paisagens, objectos, sensações --- se assemelha com o povo, que lhe está próximo, que se parece com ele. Ao passar o dia com Pedro, vi "claramente visto” que é ele o protótipo, o auto-retrato de cada parcela da identidade popular. Porque?
É vê-lo,, marinheiro rostudo, destemido no mar e frágil em terra,  operacional e indeciso, fogoso e tímido consoante a circunstância, enfim,  o coração sempre ao pé da boca, capaz do melhor e do pior. Ele é a personificação da bipolaridade estrutural que enforma a psicologia popular e domina a condição humana, na sua transparência e na sua transcendência: estátua de bronze e pés de barro.
É um estado de alma o que hoje vos trago: intimista  mas, ao mesmo tempo, propulsor de energias sempre cadentes e sempre renováveis.
No rasto das “Sandálias do Pescador”, encontramo-lo ao lado do Mestre, disposto a tudo para defendê-lO, ao ponto de puxar do navalhão de cortar atum e desancá-lo na orelha de um dos soldados que vinham  prendê-lO nessa fatídica noite de Quinta-Feira, que culminou no assassinato de Sexta-Feira. Mas --- Oh paradoxo deste estranho mix, corpo-espírito --- daí a poucas horas, quando Pedro, clandestinamente a aquecer-se junto à fogueira, entre os judeus,  nessa noite fria, foi interpelado por uma mulher:
--- Tu também és do grupo d’Ele
--- Não sou, não, mulher.
--- És sim, até já te vim com Ele.
--- Não sou, estou-te a dizer e digo quantas vezes quiseres.
--- Ah, já te descobri pelo sotaque da terra d’Ele: és galileu.
--- Juro-te, mulher, nem sequer conheço esse homem. Nunca O vi na vida.

Bastou que o Mestre saísse da audiência do tribunal, cruzou com Pedro. E este corou de vergonha: Três anos a conviver com Ele, escolhido para líder do grupo,  acérrimo defensor, capaz de dar a vida por Ele… e ali, diante de uma  judia anónima, borra-se de medo e comete a suprema traição que se pode fazer a um amigo: ”Nem sequer o conheço”!
O resto já o sabemos. Das muitas vezes que foi preso, açoitado e intimado a não falar mais do Mestre em público, ripostava: “Vou continuar a falar d’Ele”. Até que, finalmente sentenciado à pena máxima, pediu ao algoz  que o crucificasse,  mas de cabeça para baixo: “Não sou digno de morrer como o meu Mestre, porque O traí”.
Aí está Pedro, o espelho de cada um de nós!  Parecido connosco, que somos capazes do melhor e do pior. Quantas vezes, o medo de afrontar directamente a adversidade, o calculismo da nossa defesa individual, a preferência pelo nosso interesse, se transformam em cobardia perante uma circunstância fortuita!... Em Pedro, consubstanciou-se, “avant la letre”,  a constatação de Ortega y Gasset: “O homem é aquilo que é, mais a sua circunstância”.  Na política, nos negócios, na religião! No indivíduo e na sociedade!
Pedro --- tão perto de nós, tão igual a cada um de nós, tão gigante e tão pigmeu como a massa de que somos feitos. O nosso auto-retrato, o teu e o meu.
O importante é prosseguir viagem, reagir. E tornar cada vez mais renováveis as energias cadentes da alma popular. Como o “Homem do Leme”  na “Mensagem” de Fernando Pessoa . Como Pedro, o último e  mais popular dos santos deste Junho de verão nascente!
 Será  esta a marcha, esta  a canção que ele mais espera de nós, como refrão perene da euforia da véspera.

29.Jun.2015

Martins Júnior

sábado, 27 de junho de 2015

TSIPRAS E VAROUFAKIS: ESTOU COM ELES!

  
     Nas encruzilhadas da História como no circo  da humana espécie, há ventos oblíquos e há artífices tão estranhos e complexos que ficam para sempre com  a expressiva designação de “Sinal de Contradição”.  E, com sendo estranhos e complexos, são eles e elas  ---  nimbados pela auréola espinhosa da contradição ---  que marcam o rumo novo de uma nova era. Exemplo acabado é aquele em que o profético velho Simeão no Templo de Jerusalém fez estalar o coração daquela jovem-mãe: “Esta criança está posta no mundo para Sinal de Contradição, um rochedo inabalável, onde uns vão salvar-se e outros vão despedaçar-se”.
Encurtando a minha mensagem de hoje, quero referir-me à Grécia, tão exígua no tamanho, mas enorme na vanguarda do pensamento e da arte, que se constituiu a matriz civilizacional desta imensa e tão diferenciada Europa. Para uns, ela, a Grécia, não passa de  um apêndice  espúrio  a amputar, quanto antes, do corpo “cristão e ocidental”. Para outros, ela prenuncia e luta por uma Nova Ordem Europeia, uma outra interpretação do epifenómeno existencial, extensiva a toda a condição humana presente e futura, em que o termo “União” corresponda à sua riqueza semântica. Estes últimos  são os que a minoria cega do capital e das armas chama de românticos. Os primeiros são os profissionais da forca, estranguladores sem pingo d’alma, em  nada diversos dos degoladores islâmicos, fanáticos discípulos da Lei de Talião:  olho por olho, dente por dente.
Não sou letrado nesta matéria. Por isso mesmo recorro a Juan Ignacio Crespo ---  autor de Como acabar de una vez por todas com los mercados --- o qual afirma peremptoriamente: “”A dívida pública, na maior parte dos países, não se paga, renova-se”  E logo sugere a metodologia  adoptada nos finais do século XVIII quando Alexander Hamilton, Secretário  de G.Washington, se esforçou  em  unir os diversos Estados numa Confederação, o que só  conseguiu quando o “Tesouro Único” se encarregou das dívidas dos diferentes Estados. “Um exemplo que seguramente se atingirá, mas que está tardando na Europa”, acrescenta.
 Sejam quais forem os olhares --- contraditórios sempre --- sobre a nobre e pobre Grécia, quero hoje endereçar  um clamoroso Voto de Congratulação aos dois acérrimos combatentes contra o vil sistema do capitalismo selvagem que manipula e mata a economia sustentável dos povos. São eles Alexis Tsipras e Yanis Varoufakis, sejam lá de que partido forem. Eles incarnam o “alfa e o ómega” da alma helénica,   rediviva no século XXI. Em  Varoufakis espelha-se a fibra heróica do espírito de Esparta, austero e sem rodeios. Tsipras conjuga  plenamente a serena posse do espírito de Atenas, desinibido no traje e rico de olhar, onde a simpatia diplomática não contamina nem dissimula o ímpeto bélico de devolver ao seu povo a dignidade  perdida. Realizam, os dois, as linhas paralelas da concepção dialéctica da governação: um, o mal amado, Varoufakis;  o outro, Tsipras,  diplomaticamente, o bem amado. Mas ambos, confluentes no mesmo vértice  para defender, como o grande Ulisses, a honra da sua Penélope, o Povo Grego. Viagens, expectativas frustradas, reuniões de arrasar, insónias, incompreensões, manifestações, inimigos de dentro e de fora, enfim, uma luta desigual entre David e Golias, até à exaustão, mesmo que o destino seja morrer na praia. Mas, cuidem-se os armadores dos cruzeiros capitalistas, porque o naufrágio, se houver,  não ficará só pelas ilhas gregas. Tsipras e Varoufakis sabem muito bem que Lagarde’s e Draghi’s, Schaeuble´s  e  Juncker’s  não passam de secos funcionários, marionetes de feira,  às ordens  desse secreto  monstro chamado “Mercado”, antro de offshores, máfias e corrupções. E é, em grande angular, contra  o monstro que a Grécia luta, indicando o caminho para que se unam no mesmo feixe os “ofendidos e humilhados” do mundo inteiro.
Quão diversa e mísera é a  brigada de prematuros reumáticos que do sangue e das lágrimas do Povo Português fazem o ridículo verniz com que apertam  a mão e dobram-se em arco aos especuladores sem escrúpulo! Os governantes gregos lutam porfiadamente pelos compromissos assumidos nas eleições. Os nossos, traidores das promessas que fizeram quanto às pensões, abonos, subsídios de férias e natal, apresentam-se de consciência relaxada e empertigada, palheiros de aviário armados em pavões, entregando ao diabo corpos e almas que não lhes pertencem.
Dê no que der,  será sempre monumental e homérica a luta de Tsipras e Varoufakis. Estou com eles!

27.Jun.2015

Martins Júnior  

quinta-feira, 25 de junho de 2015

O QUE ME DISSE O CAMINHO DESCENDENTE DO “BARREIRO DA QUEIMADA”

Considerem,  se assim acharem, um passatempo esta minha digressão pedonal que começa  nos miradouros do alto da antiga Matur, Água de Pena, debruçados como varandas de sonho sobre o majestoso vale de Machico. Mas é da leveza do olhar que brota a profundeza do pensamento, como da paisagem singela emergem as mais ímpares  sensações.
Aproveitei o fim-de-tarde de ontem, após a comemoração do 479º  aniversário da freguesia de Água de Pena , para fazer a caminhada diária. Alcancei os miradouros e bem me apetecia ali ficar  perdido no vasto horizonte que abarcava a osmose perfeita entre o azulado e o lilás que definiam a silhueta das Ilhas Desertas e até do Porto Santo
Ali, onde o homem se sente o vértice da criação, o protótipo real do universo!  Ali, onde os nossos braços se abrem e parecem tocar as duas possantes muralhas do vale, ombro a ombro com os picos altaneiros. Lá ao fundo, o insignificante formigueiro dos telhados, dos carros-caixa de  fósforos e dos anões figurantes num rodopio de peões errantes.
Mas era preciso prosseguir viagem e fui descendo os carreiros ziguezaguantes  do velho “caminho do Rei” que há sessenta e setenta anos trepávamos em fuga  para jogar à bola no “Barreiro da Queimada”,  o local onde mais tarde viria a nascer a grande Complexo Turístico da Matur  Grão-Pará.  Para descer,  levei o triplo do tempo que nós, miúdos da escola, levávamos a subir, nessa época.
Mas  era  outro o olhar. Em cada passo, em cada curva , a ordem era “parar” e ver   que as coisas-perto, afinal,  tornavam-se longe e as coisas-longe faziam-se  perto. Após meia dúzia de voltinhas, estaquei e vi que os altos montes já não os abraçava, como no varandim do miradouro, e o breu da via-rápida , lá em baixo, era mais que um risco a tinta-da-china, Vi que o mar já não era distante, tinha subido de nível e o ar já prenunciava o afago da maresia do “calhau”.  Aí entrou em mim o espírito sadino de Sebastião da Gama quando escreveu: “O poeta em tudo se demora”.
Chegado ao sopé do promontório da Queimada, dei a última passada no “caminho do Rei” e já estava eu possuído pelo vaivém das viaturas rolantes, cuidado com as passadeiras alvi-negras, as  casas franqueavam largamente  as portas aos residentes, as saudações dos transeuntes tomavam conta das emoções, os restaurantes semi-iluminados traziam o tilintar da hora de jantar. E, no meio desta mini-arena do comum quotidiano, como lembrar-me  das montanhas?  Onde  estava o sortilégio da paisagem?  Para onde fugira a ampla e reconfortante respiração de quem “em tudo se demora”?... Afinal, a vida era esta, não a outra. Afinal, toda a poesia  se tinha alterado, senão mesmo desmoronado.
Tanto tempo, página e meia, para chegar à mais conclusiva evidência: o mundo, a vida, aquilo a que chamamos realidade, depende tudo do local onde nos posicionamos para podermos observá-lo. Consoante o chão onde colocamos o tripé da nossa objectiva, daí surge a nossa visão do mundo, das pessoas, dos acontecimentos. Daí se estrutura a nossa filosofia de vida, a visão sociológica captada pelo particularismo da situação que escolhemos ou fomos forçados a ocupar. E daí, também,  as contradições, os interesses conflituantes.
Isto, que não passa de uma verdade à Lapalisse,  bateu-me em cheio quando abri o El Mundo e deparo-me com uma bonita jovem jornalista do mesmo periódico,  cabeça envolta na característica mantilha, logo em 1º página: “Por que razão me questionam por ter abraçado esta fé?  O Islão não é o véu nem o Estado Islâmico nem nenhum terrorismo”. Onde assentou Amanda Figueras a sua objectiva  serena e convictamente contraditar a amostragem que todos dias nos aparece em casa nos écrans tintos de sangue?
Alguém viu, uma noite destas,  o arrepiante documentário sobre a indústria de curtumes no Bangladesh?  O realizador prevenia, lodo à entrada: “É para nós, europeus, vermos quanto sofrem os nativos para termos mais barato o calçado, as malas, os casacos”!  Rios contaminados, homens, mulheres e crianças enfiando pelos nossos olhos dentro o raquitismo e a imundície de vidas tão efémeras. Gente como nós.   De um lado, o preço barato, o lucro do empresário.  Do outro, a degradação humana. Onde colocaremos  as pupilas do nosso olhar?
Entremos num  arsenal de  armamento de guerra. De um lado, a produção de “riqueza”, milhares de postos de trabalho,  técnicos, criativos. Do outro, a destruição, o genocídio. Quem decide?  Em que ponto enviesado da encosta  estará o nosso observatório?
Aquela casa, comprimida num apartamento da cidade ou perdida na aldeia velha, alberga um casal, recebido segundo  o sagrado rito da Santa Madre Igreja, ajuramentado com o signo da fidelidade e da unidade  “até que a   morte os separe”.. Mas naquelas quatro paredes é a violência que impera e destrói mulher, marido, filhos, móveis, etc.. Que fazer? Que aconselhar? Onde colocar o microscópio? Na fidelidade mutuamente bombardeada, na unidade arrasada ou nos filhos, vítimas inocentes, afim de possibilitar a  separação entre os cônjuges?  O Papa Francisco pronunciou-se, há bem pouco tempo, pela segunda alternativa.
Seria um nunca mais acabar. O grande J:Cristo, que não sendo sociólogo “nem tinha biblioteca”, como nos informa o “Cântico Negro” de José Régio, prenunciou aos seus futuros mártires: “Há-de chegar um dia em que aqueles que vos matarem julgarão estar prestando um serviço a Deus”.
Com ou sem respostas às perguntas formuladas, é ponto assente que a sabedoria do julgador, como do eminente Salomão, consistirá em investigar qual o posto de observação garantidor da melhor equidade do juízo em causa. Peço aos pacientes topógrafos do nosso território  ensinem onde colocar o teodolito do meu olhar interior  para alcançar a tal visão holística do mundo, o mesmo que dizer da marcação menos incerta dos vários caminhos a percorrer nas encostas da vida.
Em que dão as voltinhas em ziguezague do velho “caminho do Rei” do “Barreiro da Queimada”

25.Jun.2015

Martins Júnior

terça-feira, 23 de junho de 2015

46 ANOS – O PROCESSO INACABADO II PARTE


Antes de completar  a razão de ter escolhido ontem a capicua “22”  para  meu  “Dia Ímpar”, devo confessar que não esperava tamanha receptividade àquela mensagem por parte de amigos e amigas  de dentro e de fora, inclusive do estrangeiro. É esse o objectivo nobre das redes comunicacionais: compartilharmos com os outros e, em troca, que os outros compartilhem connosco. E mesmo quanto às saudações endereçadas para mim, quero definir, sem sombra de modéstia, que elas só fazem sentido enquanto me assumo como sócio de uma colectividade, designadamente a Ribeira Seca.
Mas, precisamente neste particular, falta um esclarecimento essencial: “Porquê 46 anos? No mesmo lugar? E tanto tempo? Que interesses estarás tu a defender? Dinheiro? Poder? Palco? Orgulho? --- terão todo o direito a indagar, sejam os de fora, os de dentro, os estranhos, sejam os cépticos, os críticos.
Sei da veleidade e do ridículo que significa a quem quer que seja falar de si mesmo. Mas hoje impõe-se. Até para desvanecer dúvidas ou aleives de quem, ingenuamente ou malevolamente, pretenda equiparar o caso em apreço à sepulta longevidade de certos políticos fora-de-prazo.
Sintetizo este dever cívico em três item’s:
1º -  Porque sempre me repugnou a tremenda ambição de clérigos que, após a ordenação, renegaram a classe de onde vieram, passando de filhos de proletários a “príncipes da Igreja” e candidatos à passadeira vermelha dos que exploraram os seus próprios pais e avós.  Sempre  pertenci aos que habitaram os subterrâneos da opressão e da repressão e, como tal, achei indigno, em nome de uma vocação crística, ascender ao fastígio mundano dos hodiernos comparsas do assassinato do J:Cristo. Foi uma opção de vida. E mesmo quando me foi proposta a tribuna parlamentar, aceitei-a para puxar para cima os incontáveis “mineiros anónimos”, sofridos e amordaçados, com cujo estatuto   quero identificar-me até à morte. Dou graças por me terem enviado para o mesmo sub-mundo, onde a dureza dos trabalhadores do campo se cruza com a rudeza dos  trabalhadores do mar.

2º - E como toda a lógica tem seu rumo marcado, a militância também tem a sua inesgotável consequência. Era preciso escutar o bater da alma dos que, dobrados sobre a terra, eram os “sem-terra” e tendo ganas na garganta, eram os sem-voz no céu da boca. Pregava-se do alto dos púlpitos  o lucro no além-túmulo com a paciência e a resignação neste mundo. Mas --- sentindo subir dentro do peito a chama de Vinícius de Morais “Um dia, o operário disse: Não!” ---  também aqui o “NÂO” foi estremecedor. Ao ponto de se virarem contra a Ribeira Seca as cegas baionetas do Funchal e os torturantes chicotes do templo episcopal.  Alguns episódios breves dessa guerrilha institucional já ficaram na I PARTE editada ontem. Aprendemos então que a fraqueza dos pequenos é a força dos grandes. E quando os pequenos formam maioria invertem-se os factores. À ofensiva sem tréguas dos poderes inimigos (são mesmo inimigos da condição humana!) é preciso responder com a firmeza sem tréguas dos humilhados e ofendidos. Até que saiam derrotados e avisados a não repetir os mesmos ataques. Foi esta a história da Ribeira Seca! Aqui, a ditadura política e a inquisição eclesiástica fugiram, cobertas de vergonha sem retorno. Valeu a pena resistir. Como é possível permitir que a Verdade seja sempre esmagada pela mentira?... Por que razão só há mártires (vítimas) entre os que procuram a luz e não os há nos semeadores das trevas? Basta de vitórias “morais”, porque fictícias. Tem de haver vitórias efectivas da Verdade e do Bem! Regozijo-me de ter sido um soldado básico nesta luta. O Povo é que esteve na vanguarda. Sempre!

3º - Há mais de quarenta anos, prisioneiro (voluntário!) da periferia canónica, aguardo pacientemente aquilo que tantas vezes, por escrito e por palavra, formulei aos bispos madeirenses do pós-25 de Abril, com redobrada insistência ao actual titular da diocese: Que abra o processo de julgamento da minha suspensão “a divinis!!!” Não querem fazê-lo. Preferiram em surdina pedir ao governo regional para processar-me em tribunal, mas perderam, já em 2008. Tenho dito e redito: A Justiça de Deus (dando de barato que seja a justiça da Igreja) não pode ser menos perfeita que a justiça dos homens, isto é, respeitando o direito ao contraditório. Nunca fui ouvido nem achado em processo do foro eclesiástico. Abram o processo: se ganhar, ganhei; se perder, perdi. Tenho muito que contar… Se possível, antes de partir definitivamente para o Além. Santo Agostinho definia a Igreja-Instituição como casta meretrix”, prostituta casta, prostituta fina. É um Santo, Bispo e Doutor da Igreja, quem o disse, no século V. Que diria ele hoje desta Igreja-Instituição madeirense, contra-testemunho da liberdade e da transparência evangélicas?
Imagino que ressalta da mente de muita gente de boa-fé a matéria de acusação: “É porque foste político, deputado, presidente de Câmara”. Dêem-me licença que explique, primeiro, com um argumento ex absurdo: O Vigário Geral da Dioceses, meu professor no Seminário, Padre Dr. Agostinho Gonçalves Gomes, foi deputado à Assembleia Nacional pelo partido de Salazar, juntamente com o Dr. Agostinho Cardoso, presidente-delegado da União Nacional na Madeira. E não foi suspenso “a divinis”. E agora pergunto, como lho perguntei face a face: “Por que é o senhor padre pôde ser deputado pelo fascismo e eu não poderei sê-lo pela Democracia?”
         Segundo esclarecimento: eu só optei pelo serviço público na Assembleia Regional da Madeira, sempre como independente, depois que o bispo F. Santana me suspendeu, sem processo formado, repito. Mas, ainda que fosse esse o entendimento do julgador, já estou fora de toda a actividade política há oito anos, desde 2007. Quid juris ?...Agora questiono eu os doutores em cânones, os juristas.
Mas que overdose (desculpem o estrangeirismo) ofereci hoje a quem me endereçou parabéns! É verdade, mas 21-22-23 de junho perfazem para mim a tríade perfeita do meu “Dia Ímpar”. E posso garantir-vos que isto é apenas a ponta do véu que nunca me deixariam abrir na Madeira se não fosse a portentosa invenção das redes sociais. Fá-lo-ei um dia em formato mais alargado.
Para fechar, a minha incomensurável gratidão ao Povo da Ribeira Seca. Foi ele o obreiro destes 46 anos continuados. E, para mim, felicíssimos. Lembro-me de tantos colegas, eruditos e exemplares sacerdotes, perseguidos pela Igreja diocesana e, daí, malsinados pelo governo, que não aguentaram a tormenta. Vi-os partir e desistir, com grande mágoa minha. Não tiveram o Povo que eu tive.
Agradeço a todos os ilustres sacerdotes madeirenses que tiveram a nobilíssima ousadia de vir oficiar e falar à comunidade da Ribeira Seca. Entre outros: O saudoso humanista, meu professor de literatura, Pe. Alfredo Vieira de Freitas, o cientista botânico Pe. Manuel de Nóbrega, o poliglota Pe. Rafael Andrade e, mais perto de nós, os monumentais arautos do Evangelho,  Pe. Mário Tavares e José Luís Rodrigues. De Portugal Continental, o abraço desta comunidade para os teólogos Frei Bento Domingues e Pe. Prof.  Anselmo Borges, o presidente de Rede Europeia contra a Pobreza, Pe. Jardim Moreira, o missionário redentorista Pe. Henri Leboursicaud, o pregador Pe. Manuel Couto e o Prof. Pe. Armando Marques, estes dois últimos colegas de curso do actual bispo do Funchal.  Chamei de “nobilíssima” a sua ousadia, porque a Diocese ameaçava suspender “a divinis” todo e qualquer sacerdote que fosse à igreja da Ribeira Seca.
Para atenuar o cansaço dos que tiveram a paciência de acompanhar-me até ao fim desta II PARTE, reproduzo aquela primorosa saudação de um dos últimos sacerdotes, que acabei de citar, ao seu colega Carrilho: “António, vim à Madeira e não te pedi licença para falar ao Povo de Deus da igreja da Ribeira Seca”. E, apontando para o brasão episcopal desenhado em azulejo na parede exterior do Paço, rematou: “Vim aqui cumprir o que tens ali escrito: Caritas Christi urget nos. “A amor de  Cristo chama-nos, com urgência” (S. Paulo).
Reiterando o meu pedido de desculpa, cito a perífrase daquele amigo que escreveu ao outro uma longa, longa, longa carta: “Desculpa, porque não tive tempo de fazê-la mais curta”.
E garanto nunca mais voltar ao assunto neste “blog”, por muitos que venham a ser os “46 anos” do Ímpar Dia 22 de Junho.

23.Jun.2015

Martins Júnior

segunda-feira, 22 de junho de 2015

46 ANOS - I PARTE

     


      Ainda não havia o “Dia Ímpar” e este, sendo par, já lá estava de pé, à minha  espera. Cada um de nós tem sempre um  Dia Ímpar na curva da sua estrada.
         Era um domingo estival nascente,  9 da manhã, 22 de Junho, já lá vão 46 anos. O rapaz, trintão caloiro, nos olhos o viço da primavera em trânsito, na testa o sol do verão moçambicano que pouco antes deixara nas plainas africanas da guerra colonial. Desceu a estreita vereda que o levou, a ele e aos aldeões que o esperavam, ao templo-garagem incrustado no fundo do barranco alto. Ao iniciar a primeira celebração, depressa  conheceu a tez do sofrimento escrito no rosto daquela gente. Mais tarde seguiu as pisadas de “Eurico, O Presbítero”, subiu  ao miradouro serrano e de lá olhou o vale em redor:  estábulos de colmo onde habitavam os seus novos “fregueses”. Nem um caminho nem uma estrada. Água, só a das levadas. À noite, nem vivalma de uma lâmpada que exorcizasse a escuridão. De regresso a casa, caíu em si e caíram-se-lhe os braços sobre a mesa de pinho: “Afinal, vim de uma África para outra África”…
         Podia começar assim uma espécie de romance popular em prosa. E, tal como todos os romances, seria um nunca mais acabar.
Passemos aos factos.
         A Ribeira Seca era, ao tempo, um feudo de senhorios. Desde o fundo dos ribeiros até ao “poínho” da serra. Os camponeses, isolados no alcantilado dos montes, lavravam terras que não eram suas. Dividiam a meias com o olheiro-feitor do longínquo senhorio os frutos de uma canseira, de sol-a-sol. Deles, dos camponeses, só os filhos, a prole, a riqueza dos proletários. Sob uma aparente reverência, era o medo que lhes apertava o peito e os fazia curvar, de barrete na mão, à passagem dos senhores da vila.  
         Mas a revolta estava lá,  transfundida no sangue de pais e avós, tal como as grandes tempestades sub-oceânicas que depois rebentam à superfície. E foi o que se passou. Antes e, sobretudo, após o “25 de Abril” de 1974. Numa palavra, o Povo libertou-se.
         E aí começou a saga das suas vitórias, do tamanho e à medida das pancadas com que as pagou e continua a pagar: os atentados armados das forças governamentais contra a sua igreja, as retaliações contra o seu Povo, o ostracismo da Igreja Diocesana e o tratamento discriminatório de uma comunicação social, subreptícia ou claramente alinhada com os poderes reinantes. Mas continua de pé! “De pé firme e confiante, o caminho é p'ra diante”, assim continua a cantar-se na Ribeira Seca.

 *** Os velhos senhorios do regime fascista, massacradores implacáveis  de gerações e gerações  de “servos   da gleba”, caíram com a Revolução dos Cravos   

*** O ditador-mór da Madeira, que conspurcou  tantas e repetidas vezes o nome da Ribeira Seca e as suas gentes, também foi derrubado do trono ultra-autonómico.

***  O bispo F. Santana, que proibiu o fornecimento das hóstias da Eucaristia aos cristãos da Ribeira Seca, já está no “mundo da Verdade”, lá para onde todos caminhamos.

***  O bispo T. Faria que ordenou, em conluio com o governo, o assalto (hoje, diríamos, talibã) de 70 polícias à igreja da Ribeira Seca, também já foi desarmado do báculo e da   mitra pontificais, ficou-lhe para sempre a satânica blasfémia de   ter comparado a Jesus Cristo na cruz um pederasta, padre, seu secretário particular, condenado a 17 anos de cadeia e, depois, evadido da prisão.

***  O bispo A. Carrilho, que proibiu a entrada da Imagem Peregrina no adro e na igreja da Ribeira Seca, aí está para confirmar a subserviência da diocese ao poder político, aguardando o fim de mandato, já próximo, como inquilino do Paço Episcopal. Levará consigo no baú as muitas cartas que recebeu da comunidade da Ribeira Seca, sem nunca  ter respondido a nenhuma delas.

      Mas a Ribeira Seca continua a sua marcha : viva, livre, tranquila e feliz. Aquele templo e aquele recanto na periferia da cidade ali estão para atestar que a Instituição hierárquico-monárquica da Igreja não está com Cristo E que quanto mais longe estivermos da Instituição mais perto estaremos  d’Ele.
       Ribeira Seca existe para demonstrar que a “A IGREJA É DO POVO E O POVO É DE DEUS”, como canta no CD, cuja mensagem a comunicação social capciosamente escondeu, aquando dos 500 anos da diocese.
    Ribeira Seca permanece para demonstrar que os bispos de cá não têm fé no sacramento do Crisma, pois há 40 anos recusam-se a ir dá-lo a uma igreja do Povo cristão. Ali está para provar que na Madeira a Igreja deixou de ser sacramento da salvação: as pessoas já interiorizaram que não precisam do bispo para se salvar. Quem nos salva é Deus e a nossa consciência, eis o código da sua fé.
       Ribeira Seca permanece como aquela exemplar personagem do Journal d’un curé de campagne (“Diário de um pároco de aldeia”) de George Bernanos: “Nela, a bondosa senhora, reflectia-se, como que em contra-luz, toda a maldade do mundo à sua volta”.
     Ribeira Seca também  está ali para que o mundo saiba a fealdade e a tacanhez “islâmica” de uma Igreja egoísta, rancorosa, incorrigível na sua hipócrita  ilusão de poder, quando nomeia sucessivos párocos para aquela igreja e onde nunca puseram o pé. Ribeira Seca existe para que se veja a arrogância de quem, servindo-se do mito e do obscurantismo religioso, ainda chama seu um prédio para o qual em nada contribuiu e uma igreja que abandonou há mais de 40 anos, comportamento este previsto e punido pela lei humana do usucapião. O cônjuge que abandona a casa perder-lhe o direito.
    A Ribeira Seca existe para que um dia lhe seja feita Justiça. Para que a irresponsabilidade de uma Igreja diocesana, cobardemente engenlhada sob o guarda-chuva do poder, acorde para a vida e veja os prejuízos irreparáveis que deixou pelo caminho. Foram precisos 500 anos para que a Igreja fizesse justiça a Joana d’Arc e revogasse a sentença do bispo inquisitorial Cauchon (que a condenou à fogueira) e a reconhecesse como santa libertadora dos franceses e sua patrona oficial. Esperemos que não seja tão longa a ditadura eclesiástica.
         Mas a Ribeira Seca não tem apenas 46 anos. É tricentenária. Desde 1692, data da construção da velha ermida por Francisco Dias Franco, capitão-secretário do Município de Machico, desde então já talhava nos  socalcos e veredas o monumento da sua história. E antes, muito antes, Já nos primórdios da colonização, o italiano  Diogo da Nóia,  negociante do ramo da tinturaria,  enriquecia o tesouro do Rei com um terço do  pastel extraído dos muitos tintureiros ali existente,  produto precioso que exportava para o estrangeiro.
        Mas em toda a história   há um Antes e  Depois. Durante séculos, a Ribeira Seca viveu sob o Velho Testamento da escravidão. Há quase meio século, despertou para o Novo Testamento da Liberdade.
      Embora muito mais haja por abrir na cortina do Tempo, fico-me hoje por este relato breve de um Povo que abraçou os cravos da Vida e deles fez a bandeira que flutua no verde da paisagem e no rubro dos corações.
         Deixo para amanhã, os contornos pessoais destes 22 de Junho de 1969, respondendo directamente à pergunta em epígrafe: “46 anos --- Porquê?”

21-22.Jun.2015

Martins Júnior   

domingo, 21 de junho de 2015

22 DE JUNHO - DIA ÍMPAR



      Entre 21 e 23 de Junho de cada ano, o meu Dia Ímpar chama-se “22 de Junho”- Em sendo par e em sendo capicua --- duas vezes par --- volto a dizer que se tornou, por excelência, O Dia Ímpar.              Enquanto hoje faço vigília, amanhã tereis vós a solução. Leva por título:


“46 ANOS --- PORQUÊ ?”

sexta-feira, 19 de junho de 2015

MEIA VITÓRIA SILENCIOSA – FALTA A OUTRA MEIA


Deixando para trás algumas peças inacabadas desta minha folha dos dias intercalares, retomo a meada última, a propósito da tempestade com que o nosso governo “imberbe”  ia levianamente  varrendo a quietude da população da Ribeira Seca e da anónima maioria pensante de Machico. Ainda bem que as crianças do sítio não serão forçadas a abandonar as amplas salas de aulas que seus pais e avós conquistaram a pulso, desde há quatro décadas. Já não serão “emigrantes” na sua terra natal. Bastou o pequeno sopro advindo da meteorologia funchalense para que os pais e encarregados de educação se pusessem em campo e, assim, ficasse anulada a guia de marcha subscrita nos gabinetes executivos. Parabéns para as bases e para as cúpulas.
Sem menosprezo da problemática que a baixa natalidade implica na economia dos espaços escolares já construídos,  há um “enorme pormenor” a juntar aos argumentos que desaconselham as medidas preconizadas pelo governo. Refiro-me à matriz vocacional dos edifícios escolares. Uma escola não é um depósito indeterminado para onde se atiram quantas crianças ou jovens lá couberem. As paredes de uma escola são um corpo vivo: são cabeça, tronco e membros de uma comunidade. Lá se aprende a ler, contar e escrever. Mas muito mais do que isso. A escola tem uma refracção pedagógica e uma função sociológica inestimáveis, pois dela emana uma onda purificadora da atmosfera, construtora de mentalidades e laços intergeracionais, com saltitantes vozes infantis nos recreios, como pássaros a chilrear, cânticos e peças teatrais nos palcos, nas festas, enfim, tenras espigas de trigo louro emergindo da terra que habitam, para gáudio dos pais e primavera dos que vão tombando nos outonos da vida. Sempre que possível, não desenraízem as crianças do meio ecológico a que pertencem.
Um outro apêndice paira no ar e, ao que parece, com tendência para ficar: a alteração da nomenclatura da “Escola da Ribeira Seca”. Querem apagar o bilhete de identidade original para lhe dar o nome de um pai incógnito no sítio.  E pergunto-me o que sempre me interroguei nos idos anos da luta política (que não partidária): Que estranho instinto o destes governantes que os leva a fazer o que o eleitor não pediu e recusam-se a fazer o que ele exigiu? Quem é que pediu ao sr. governo para riscar à Escola da Ribeira Seca o nome da terra onde nasceu? Preguiçosa devoção de baptizar e rebaptizar! Ao menos, consultaram os munícipes ou seus legítimos procuradores para esse efeito? É o mínimo que fazem as autarquias para atribuir  nome  às  ruas, caminhos, becos e veredas, nos termos da lei. E se e quando a jurisdição das escolas passar para as Câmaras Municipais?... Novo baptismo, novas alcunhas? Mau gosto e mau senso!
Já aqui me debrucei sobre a paranóica generosidade do anterior governo em deixar aos defuntos secretários o testamento-epitáfio em escolas, centros de saúde, etc.. E também referi o foguetório de pouca dura que o fascismo mandou para o ar quando retirou a nomenclatura “Estádio dos Barreiros” para “Estádio Marcelo Caetano”. Actualmente seria interessante saber (e aqui vai o repto para algum subsecretário estagiário) quantas tabuletas andam por aí perdidas, embaciadas, caiadas, rebocadas,  em muros, entradas e saídas de hotéis, escolas, centros cívicos, supermercados, tavernas e até igrejas, com esta certidão de narrativa incompleta: ”Inaugurado por Sua Excelência o Senhor…” , nem é preciso dizê-lo? Um bom trabalho para o(s) historiador(es) do regime. Ridícula saloiice de parecer o DDT, o Dono Disto Tudo!  Estou a lembrar-me do satírico cultor dos versos alexandrinos, Guerra Junqueiro, na Velhice do Padre Eterno, referindo-se aos novos clérigos tonsurados com uma coroa a meio do couro cabeludo, dizia: “Já está assinalado com a marca industrial da casa: zero”.

Senhores, respeitem a pureza genesíaca da terra-mãe onde se levantam os laboratórios sociais e culturais ao serviço dos seus povos. E, mais uma vez: Façam o que o Povo exige e deixem-se de mexer naquilo que o Povo não vos pede.

19.Jun.2015

Martins Júnior

quarta-feira, 17 de junho de 2015

UMA ESCOLA VÍTIMA DO ANALFABETISMO HISTÓRICO

Não esperava uma tarde e uma noite de tanta levadia neste viçoso mês do São João. E, pela mesma razão, não esperava tão cedo apontar o dedo  a uma jovem que navega ainda na onda azul de uma lua-de-mel em fim de prazo. Mas o certo é que, perante o caudal de telefonemas e preocupações que me bateram à porta, sou obrigado a perguntar de que laranja mágica (leia-se, cabeça do noneto governamental) surgiu a peregrina ideia de colocar nas mãos do Senhor Secretário da Educação uma granada de mão que, se for desencavilhada,  vai  estilhaçar no próprio, ferindo muita gente à sua volta, muitas famílias da ilha, sobretudo  da  Ribeira Seca, algumas delas no estrangeiro, que em emotivas mensagens SMS recordam ainda o quanto lhes custou a luta por uma escola condigna.
Quero relevar, antes de tudo o mais, a gentileza do Senhor Secretário que, sem pedido prévio de audiência, me recebeu no seu gabinete e, ele próprio, inicialmente  surpreendido com a notícia que circulava de boca em boca, desvendou-me o enigma: “Não vamos fechar escola nenhuma em Machico nem na Ribeira Seca”. Mas acrescentou: “O que vamos proceder é a uma fusão de turmas, as que têm poucos alunos transitarão para a Escola do centro da cidade, em transporte assegurado pela Câmara Municipal, ficando sempre de pé a escola da Ribeira Seca como anexo”.
Não vou terçar armas, como outrora, numa refrega que compete genuinamente aos pais e à comunidade escolar. Mas, com o aditamento, o enigma transformou-se em anátema:  as crianças serão mesmo  “transladadas para a vila”,  embora não se sabendo ainda se do 1º, 2º, 3º ou 4º anos. Propus também que, na reunião agendada para 6ª feira próxima com pais e encarregados de educação, estivesse presente o Senhor Secretário, e não, como está previsto, as directoras e a Câmara Municipal que acabam por ser o elo mais fraco. Prometido ficou que viriam dois dos seus assessores.
Da minha parte, como animador socio-cultural e religioso desta comunidade e testemunha do quanto significou aquela construção,  limito-me civicamente  (e fi-lo presencialmente ao titular da pasta) a estes quatro considerandos:
I – A escola da Ribeira Seca tem uma população escolar estimada  em 80 alunos. Está inserida num vasto aglomerado populacional, o maior após o do núcleo central. Manda a boa estratégia que se confira a envolvente escolar da zona rural e suburbana e só depois  levantar-se-á a grande incógnita: Porquê a Ribeira Seca?
II – Embora se saiba que a vida não é feita só de memórias, mas a verdade é que aquela escola é um ícone, um monumento das gentes da Ribeira Seca e não só. Vem de 1978 a luta porfiada de pais, professoras e até de catequistas para libertar as crianças do pardieiro velho onde os alunos mais pareciam prisioneiros forçados na sua própria terra: as manobras, as dilações, as promessas adiadas,  as ameaças, as pancadas, os aleives que o governo regional publicamente vociferava contra este Povo, desejoso de cultura para os  seus filhos. Mas ninguém desistiu: greves às aulas, comunicados, manifestações, até culminar com a ida das crianças ao prédio da Junta Geral, onde estava e está hoje instalada a Secretaria da Educação.   Mas no fim cantaram Vitória:  começou a construção da nova escola. Tudo o que a Ribeira Seca conseguiu foi a peso duro e a um alto preço  de resistência. Aquela escola ficou como  um “santuário” da  luta de há quatro décadas. Não admira, pois, a emoção revoltosa das pessoas perante a notícia.
III – É verdade que governar é gerir a economia. Mas não, nunca o resvalar para o economicismo!  E aqui ninguém pode esconder o argumento, a-olho-nu, que as pessoas repetem: “Há dinheiro para uma escola privada, ali mesmo defronte, e só não há para a continuidade das escola pública da Ribeira Seca?!”. À consideração de Vossas Excelências.
IV – Em tempos de requalificação positiva e de reforço da “Autonomia regional face ao centralismo  do rectângulo”, como compreender e admitir a absorção da autonomia funcional de uma escola modelar na massificação do centralismo urbano?  Respeitem os corpos directivos da Escola e não os desqualifiquem como serventes despromovidos. Que direito e que ousadia malsã  será essa  de substituir por um nome qualquer o prestigioso nome de “Escola da Ribeira Seca”! Eu sou daquele tempo em que o fascismo substituiu o Estádio dos Barreiros por Estádio Marcelo Caetano. Mas  bem depressa o tempo se encarregou de restituir “o pai à criança”, voltando ao original Estádio dos Barreiros. Meus senhores, acabem com essas “lamechices”, deixem ficar o nome da Escola da Ribeira Seca e restituam o nome de “Machico” ou “Francisco Álvares de Nóbrega” à Escola Principal. Sejam coerentes com a cultura e a educação, isto é, com a verdade histórica e não com infantilismos ultrapassados.
         Muitos e mais inflamados considerandos andam na boca da população que esta noite não dorme descansada. Deixo à atenção do Senhor Secretário da Tutela este meu acervo argumentativo --- e faço-o publicamente --- porque já lho apresentei, em síntese,  na audiência que fez o favor de me conceder. E pela verticalidade que  lhe conheço, desde o tempo do seu propósito   demissionária de Director Regional do Desporto face à prepotência do seu antecessor,  aguardo e aguarda a população da Ribeira Seca a apurada sensibilidade e a melhor aquiescência às legítimas expectativas da comunidade.
E enquanto não chegar o dia de repor a serena racionalidade neste diferendo, deixo o refrão da “Escola Nova”, inserto no CD “A Igreja é do Povo, o Povo é de Deus”, originário da Ribeira Seca:
                            Viva a Escola Nova que se alevantou
                        Parabéns ao Povo que foi quem lutou
                        Uma Escola Nova dá-nos alegria
                        O Pão da Cultura é uma Eucaristia

17.Jun.2015

Martins Júnior

segunda-feira, 15 de junho de 2015

QUEM ACODE A QUEM ?---NUMA “III GUERRA MUNDIAL”

Uma notícia-relâmpago brilhou sobre o fundo-a-negro dos nossos televisores. Primeiro, surgiu inteira, depois a-meias, para finalmente desaparecer num ápice. Uma singularidade que muito me surpreendeu, tendo em conta a monótona e incómoda repetição de certas banalidades noticiosas.
E lá vai o anúncio: “Portugal é o segundo país do mundo com maior percentagem de acolhimento de imigrantes e respectiva integração no meio, logo a seguir à Grécia, que ocupa o primeiro lugar”. No noticiário seguinte, figurou apenas a primeira parte da boa nova: “Portugal é o segundo país  no muindo”… No terceiro noticiário, esfumou-se de vez.
Gostaria de propor aos meus acompanhantes do “dia ímpar” a sua interpretação do texto, tal como hoje aconteceu nos exames a Português sobre outras questões de literatura. Sem mais delongas, a minha interpretação segue, também em três tempos. O primeiro serviria para o governo coligado embandeirar em “V”, mais uma estrondosa vitória contra os detractores do regime: “Nós é que somos os humanistas, os xenófilos, os benfeitores dos desgraçados. Chega-te à frente, Paulinho, ou o teu sucessor, o do Machete, e botem foguetes”.  Mas, logo logo,  vem o segundo tempo: “A seguir à Grécia?...Cruzes, abrenuncio! Compararmo-nos à piolhosa Grécia, isso é que não. Risca lá isso, da Grécia, risca tudo. Ponto final”.
O meu terceiro tempo interpretativo prende-se com o trágico espectáculo das migrações forçadas, quer pela guerra, quer pela fome. Actualmente, são cerca de 50 milhões os refugiados no mundo que habitamos. Mais que na II Guerra Mundial. Razão tem o timoneiro da Barca Apostólica para alertar os Estados face à iminência de uma III Guerra a nível planetário. Com este triste sudário de foragidos, não estaremos já na soturna consumação  de um genocídio silencioso?... E quem acode às vítimas inocentes, gente como nós, com o mesmo pulsar de coração e o mesmo direito â vida? Quem?... Os poderosos, os detentores da riqueza mundial?...Os anjos malditos “refugiados” nos paraísos fiscais? Prevêem  os economistas que em breve 50% da riqueza mundial estarão nas mãos de 1% da população!
Então quem acode quem?  Paradoxalmente, os países mais pobres, os mais sangrados pelos FMI’s, pelos BCE’s e quejandos: Grécia, Portugal, Itália. Espanha. No caso português, nada mais justo que assim se faça: é preciso pagar o preço de uma colonização de cinco séculos. Mas a Grécia, massacrada pela Alemanha nazi, agora mirrada pelas ameaças das “tróikas” ? É ela, mãe da filosofia humanista que inundou a Europa, ela a pobre Grécia, é  quem mais estende os frágeis braços para valer aos que menos abrigo têm…
Tema gritante que vem provar diante dos nossos olhos a insensibilidade das economias capitalistas, cujo apetite devorador consiste em beber rios de dinheiro, mesmo que isso lhes saiba ao sangue, ao  suor e às lágrimas de gente como nós! E é este também o grito lancinante da Itália perante a CE. E deverá ser esta a revolta de quem sente, contra o deboche exterminador dos tais 1% que têm de ser abatidos, como bem profetizou Isaías, para que os montes se abaixem e os abismos se elevam e haja a planura igualitária onde haja lugar para todos.
Em rodapé de página, não desconheço o maranhão de problemas em que está envolvido esta avalanche migratória. Mas ficar calado é crime maior, de lesa-humanidade. Uma coisa é certa: tudo isto vai ser pago! O férreo Império Romano caiu às mãos dos “bábaros”. Atenção!

15.Jun.2015

Martins Júnior

sábado, 13 de junho de 2015

VARIAÇÕES SOBRE O “SANTO ANTÓNIO POPULAR”

E viva a festa!...
A marcha é liiiinnnnnda!...
Olha o balão! Venha mais  cor e mais tambor, soltem balões ou balonas, seja pelo Santo António, seja pelo São João, seja pelo São Pedro! O que interessa é que haja marcha, sardinha assada, sangria caseira, pão de trigo da terra. E vozes, muitas vozes, afinadas, esganiçadas, soltadas dos pulmões e dos corpetes das folclóricas raparigas, desfraldando a liberdade na grande avenida em Lisboa, ou nas ruelas do santo na Madeira e em todos os santantoninhos que há no mundo português. E se não for pelo santinho, que seja por Vénus, Júpiter e Baco, pelo brinquinho ou pela massaroca. O que importa é unir o povo, novos e velhos, moçoilas e rapagões, exorcizando com o missal de rua e por um dia, ao menos,  os pesadelos forrados na pele, as depressões que saem das grades sem pulseira nem polícia.
É o mês dos santos populares. Vibro e salto para a marcha,  saúdo toda essa euforia sem preço de que tanto precisamos. Mas soa-me sempre ao ouvido “esta frase batida”: Populares estes santinhos, porquê? E como? Quem abriu a cabeça ao povo para meter-lhe tanta simpatia, tanta popularidade a 1.000% pelos santinhos de junho?
E aqui volto atrás, sento-me, rebobino o filme e já não me apetece apanhar os marchantes sem responder-me a essas perguntas. Ah, é o Santo António, o que tem o GPS para encontrar os perdidos e achados, o engraçadinho de menino ao colo, o caçador dos namoricos furtivos, o santo casamenteiro… E agora é que não me dá mesmo nada alinhar nessa alienação das massas, à conta do santo. Nem do São João nem do São Pedro, que nada têm a ver com foguetes e balões. Mas então, a popularidade trimilenária  dos “festeiros”?
Falando claro, confrange-me topar e tocar o vazio de mentalidades avulsas que nada sabem dos homenageados da noite. António de Lisboa, o sábio do pensamento, não apenas bíblico, o mestre das humanidades, o acérrimo “opositor aos usurários, à prisão por dívidas, o defensor do proletariado” (leio no devocionário litúrgico que uso há mais de 50 anos)., E ainda: o inigualável cultor da eloquência do verbo, quer em Lisboa, quer em França, quer em Pádua.  Bem  lhe acertou o nome, cinco séculos mais tarde, ao “Príncipe da Língua Portuguesa”, o Padre António Vieira que,  tal como este, teve de abandonar a sua pátria para dar testemunho da Palavra no estrangeiro, mais precisamente em Itália. Volta, António de Lisboa, vem bradar aos usurários do século XXI, do FMI, do BCE e outros que tais, contra a sofreguidão dos magnatas desta “economia que mata” os povos do sul, os de aquém e além-mar!
Que sabem disto os ingénuos e sinceros foliões das marchas? Que entendem por António de Lisboa ou de Pádua os devotos de “círio de altura” na mão, tamanho mínimo comparado com a monstruosa pantominice que os pregadores lhes ditam do alto dos púlpitos neste dia, engrolando lendas milagreiras para tapar a portentosa fisionomia do grande protótipo da Sabedoria e da Coerência?!
Mas então deve riscar o preâmbulo-supra --- dir-me-eis vós. Eu digo que não. Continuem a folgar, não desistam de gatinhar versos como demónio, toca o harmónio, viva o pandemónio, tudo fixe desde que rimem com Santo António.
Mas… eu não esqueço a cantiga que o Estado Novo nos obrigava a decorar na escola : ”Lá vamos cantando e rindo, levados, levados sim…”, a que os parodiantes do teatro de revista acrescentavam “lá vamos pagando e rindo”. Ai, a força e a convicção com que nós, pobres crianças cantávamos, sem saber,  a própria sentença de condenados à miséria! Não esqueço a (melhor  desqualificativo não acho) “safada” exploração da mentalidade popular quando, antes do 25 de Abril, o fascismo incentivava o povo a construir  palhaços no 1º de Maio, o “saltar à laje”, para encobrir aos portugueses a gloriosa e dolorosa luta dos trabalhadores pelos seus direitos.
MORAL DA HISTÓRIA: haja festa e diversão, a pretexto dos Santos Populares, mas não se perca de vista a sua essência, a histórica estatura humana, intelectual e operacional dos Homenageados.
Termino, em “Post-Scriptum”, cedendo lugar à lenda transformada em poética beleza de Augusto Gil no  seu tão pitoresco e bucólico Passeio de Santo António, que o meu amigo Alexandre tão bem sabe recitar, como ontem o fez em Sesimbra e aqui, em Machico, nos nossos saraus de outrora:

13.Junho.2015
Martins Júnior

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PASSEIO DE SANTO ANTÓNIO

Saíra Santo António do convento,
A dar o seu passeio costumado
E a decorar, num tom rezado e lento,
Um cândido sermão sobre o pecado.
.
Andando, andando sempre, repetia
O divino sermão piedoso e brando,
E nem notou que a tarde esmorecia,
Que vinha a noite plácida baixando…

E andando, andando, viu-se num outeiro,
Com árvores e casas espalhadas,
Que ficava distante do mosteiro
Uma légua das fartas, das puxadas.

Surpreendido por se ver tão longe,
E fraco por haver andado tanto,
Sentou-se a descansar o bom do monge,
Com a resignação de quem é santo…
.
O luar, um luar claríssimo nasceu.
Num raio dessa linda claridade,
O Menino Jesus baixou do céu,
Pôs-se a brincar com o capuz do frade.
.
Perto, uma bica de água murmurante
Juntava o seu murmúrio ao dos pinhais.
Os rouxinóis ouviam-se distante.
O luar, mais alto, iluminava mais.
.
De braço dado, para a fonte, vinha
Um par de noivos todo satisfeito.
Ela trazia ao ombro a cantarinha,
Ele trazia… o coração no peito.
.
Sem suspeitarem de que alguém os visse,
Trocaram beijos ao luar tranquilo.
O Menino, porém, ouviu e disse:
- Ó Frei António, o que foi aquilo?…
.
O Santo, erguendo a manga de burel
Para tapar o noivo e a namorada,
Mentiu numa voz doce como o mel:
- Não sei o que fosse. Eu cá não ouvi nada…

Uma risada límpida, sonora,
Vibrou em notas de oiro no caminho.
- Ouviste, Frei António? Ouviste agora?
- Ouvi, Senhor, ouvi. É um passarinho.
.
- Tu não estás com a cabeça boa…
Um passarinho a cantar assim!…
E o pobre Santo António de Lisboa
Calou-se embaraçado, mas por fim,

Corado como as vestes dos cardeais,
Achou esta saída redentora:
- Se o Menino Jesus pergunta mais,
… Queixo-me à sua mãe, Nossa Senhora!

Voltando-lhe a carinha contra a luz
E contra aquele amor sem casamento,
Pegou-lhe ao colo e acrescentou: - Jesus,
São horas…
........................E abalaram pró convento.


Augusto Gil

quinta-feira, 11 de junho de 2015

DIA DE PORTUGAL QUE NÃO FOI DOS PORTUGUESES

As solenes datas oficiais são como estátuas jacentes. “Estão prá  ali!”, dizem os transeuntes: insensíveis, mudas, olheiras sem brilho, quanto mais vetustas e lodosas melhor. Na sua base poderia escrever-se: “Aqui jaz 1385…Aqui jaz 1640…Aqui jaz o 10 de junho de 1580”… De vez em quanto servem  para pombos e gaivotas ali montarem o seu trono real e delas fazer o que Maomé não fez ao toucinho.
Foi assim o glorioso Dia de Portugal. Em Lamego, no Funchal e outros lugarejos. Muitos turistas estrangeiros e poucos madeirenses, informava em directo o locutor de serviço. Um Portugal mudo, amarrado ao mastro, tão lodoso e incerto, por onde filhos seus vão escorregando num limbo de mágoas curtidas cá dentro, os jovens lá fora, os velhos encostados a um canto, perguntando aos dedos se a mísera reforma chega para pagar à farmácia. Sem ganas nem forças de cantar o “Esplendor” de outrora.
No entanto --- para ironia amarga e para revolta latente --- o Portugal empalidecido  veste-se de gala, farda e gravata, clarim metálico descido à terra e marcha contra canhões. Porque fazem do povo carne de canhão, o povo foge e deixa-os, como gaivotas de arribação, no palanque do Fala-Só, piando charadas e berlengas sem tradução para o povo. Por isso, o povo deserta, porque esse ´não é o seu Dia, é a Hora deles, dos amos e comensais. Então, “O Inteligente” (estou a lembrar-me de Fernando Tordo e Ary dos Santos) completa a farsa, entaramelando umas coisas como esperança e optimismo mas com uma máscara tal de mini-adamastor que mais parecia o semeador de maus agoiros.
Depois veio  o desenterro das cruzes e das medalhas,  com cheiro a naftalina. A poucos meses de deixar a casa de 10 anos, o inquilino teve de esvaziar o baú dos tesourinhos que ficaram e até foi buscar o último retalho ao fundo do guarda-fato de D. Maria  para  dá-lo ao estilista da primeira-dama. Poderia inventar mais um ou dois para oferecer ao “menino” Jesus, ganhador  do campeonato,  e ao roupeiro do Gil Vicente que tanto suou e desceu de divisão…
Com o devido respeito para o mérito de quem as aceitou, manda a experiência desvendar o que pretende o generoso doador:  à cabeça de todo este aparato cerimonioso está o puro  exibicionismo do juiz supremo e supremo benfeitor das lapelas ilustres. É também o cinismo estratégico de quem quer dar a terceiros a bofetada de luva negra com a mesma mão que enlaça o cordão ao pescoço do medalhado. E aqui na ilha das rosas, os caloiros governantes não fazem por menos no 1 de Julho, a Hora deles, que não o Dia dos madeirenses.
Poder-me-ão censurar o estilo verrinoso deste escrito. Mas outra coisa não faço senão traduzir em palavras o desprezo e o repúdio do povo por ver-se manipulado por aqueles que montam em cima da pátria para espalhar perdigotos político-partidários a favor de uns, num dia que deveria ser de todos. E ainda por cima, sem direito ao contraditório.
Nada mais ofensivo  que as condecorações, sobretudo quando o anfitrião pretende limpar a cara com que  enxovalhou, cuspiu, retalhou aquele que  hipocritamente vem agora homenagear. Bem fizeram Zeca Afonso, Herberto Helder e outros heróis que se recusaram a tão degradante humilhação!  
Faço aqui o meu registo de interesses, para justificar-me de não ter feito o mesmo, quando o então Presidente da República, Dr. Mário Soares (já lá vão 21 anos) me concedeu comenda em 10 de junho, na cidade do Porto. Recebi-a, não como o falacioso golpe de misericórdia em fim de linha, mas no aceso da luta contra a bárbara ditadura político-financeira que a governação regional moveu  ao Município de Machico, então sob a minha presidência. Os lutadores querem apoio é no campo e na hora da luta.
A propósito de condecorações e sem referir-me aos galardoados (estaria eu no mesmo saco), apraz-me terminar com aquele rasgo de eloquência do sermão do  Padre António Vieira na Capela Real de Santo António de Lisboa perante o Rei e os brasonados da corte: “Antigamente eram os ladrões que pendiam do alto das cruzes. Hoje, são as cruzes que pendem do peito dos ladrões”.
Foi a guia-de-marcha  para o exílio no Nordeste Brasileiro!
Mas a ironia ficou. E o “antecipado grito do Ipiranga”  no coração do Império!
Queremos um Dia de Portugal, mas que seja o Dia do Povo --- nos parlamentos, nas praças públicas,, nos tribunais, no conselho de ministros, nas empresas, nos hospitais. Todos os dias, Dia de Portugal!

11.Jun.2015

Martins Júnior