domingo, 23 de agosto de 2015

CANTAR, CANTAR SEMPRE “GRACIAS A LA VIDA”





Em se aproximando Agosto do porto da amarração,  a ilha  baloiça, encanta e brilha, como caravela engalanada, da popa à proa, de bombordo a estibordo, como em dia do iniciático  baptismo marítimo. São as festas que cruzam a ilha, de lés-a-lés. No tanto que há para ver e sentir, hoje posto-me diante dos palcos, uns mais barrocos e vistosos, outros modestos,  mas todos comunicativos. E o comunicador aí está em grande angular, microfone em punho, distribuindo cordões de mimos e notas de funcho verde  por todo o anfiteatro que o envolve.
É para eles, os animadores musicais, que dirijo a minha atenção e o meu aplauso. Atenção para poder distinguir gato de lebre e aplauso genérico pelo empenho com que uns e outros se esforçam por alargar o perímetro do recinto festivo dando o melhor de si mesmos a quem vai buscar à festa um suplemento de optimismo e, por que não,  uma fuga às dissonâncias do  real quotidiano. Relevo aqui, portanto, não a chocarrice e a brejeirice de certos encartados do sistema arraialesco que, se não têm barbas, têm bigodes ( o povo gosta…) mas tão só a “oferta” militante dos que se apresentam em palco. É justo prestar-lhes audiência porque, além dos, muitas vezes, simbólicos  honorários auferidos, nunca se sabe o esforço que fazem para embandeirar a festa. Talvez que a euforia que transmitem cá fora não bata certo com a que trazem no peito.
Falo assim, ao constatar a notícia do grande artista madrileno  El Cigala, de  nome próprio Diego Ramon  Jimenez  Salazar,  no seu recente concerto em “Hollyood Bowl”, Los Angeles, e de que se fazem eco as redes sociais e, sobretudo, a imprensa espanhola. Antes de entrar em palco, murmurava  “No puedo, no puedo … qué barbaridad, qué barbaridad”. No entanto, recompõe-se, entra em palco. E a saudação eufórica: “Como estou feliz por compartilhar com tanta gente boa a boa música. Tanto eu como os meus companheiros estamos felizes por estar aqui, Thank you,  very much”.
Certamente perguntar-me-eis que há de extraordinário nesse comportamento bipolar?
Poucas palavras:  
A  esposa, Amparo Fernandez, com quem vivera 25 anos e lhe dera dois filhos, tinha morrido  poucas horas antes.  Durante os  seis meses  de luta fatal contra o cancro num hospital da Republica Dominicana,  Ela, Grande Mulher,  já lhe tinha pedido que não deixasse de cantar e,  passara lo que passara, nunca abandonasse  os  palcos, mesmo  no dia da  sua morte.
Comenta o autor da reportagem: “El Cigala portou-se como um profissional com letras maiúsculas. Não houve sequer o mínimo  desabafo final que desatasse em comoção. Deixou de lado a sua pena para dar sabor à vida dos demais. Entre linhas tinha escondido a sua dor.”  E a canção final, por sua opção, teve por título “Gracias a la vida”.  O público  aplaudiu sem que de nada se apercebesse. El Cigala, seguiu de imediato para a Republica Dominicana, onde será incinerada Amparo Fernandez,   na mais íntima  privacidade, em Punta Cana, “su paraíso de paz”.
É por episódios como este, que tenho muito respeito pelos profissionais do palco, pelo seu despojamento interior, pela incondicional fidelidade ao seu papel, passara lo que passara,  tendo de sufocar muitas vezes problemas e angústias pessoais para oferecer ao público a alegria de que, lá dentro, estão carentes. Em Portugal, conhecemos exemplares idênticos, com artistas de renome nacional.
Mas, para lá destes cenários dramáticos, rendo também a minha homenagem a todos esses grupos, profissionais ou amadores, bandas de garagem e afins que dão o seu melhor esforço para promover valores, dos bons,  dos promissores,  que  fazem  desabrochar  a canção inata que a terra tem.  Cabe aqui uma palavra  de apreço ao meu amigo, Professor José Alberto Reis, protótipo deste empenhamento, que através dos seus programas, entre os quais o saudável e desinibido “Musicas do Arco da Velha”,  tem levado  por toda a ilha   um apreciável  e diversificado elenco de artistas autodidactas, todos eles marcados  pelo voluntariado cultural, dirigido não às elites classistas mas aos mais recônditos espaços da Região, onde os esperam populações  anónimas, merecedoras da arte dos sons.
Nesta minha saudação envolvo sobremaneira os que põem o Povo a cantar, as suas romarias, o seu versejar, a sua coreografia original. Seria sumamente desejável e incentivável  (passe o neologismo) que as festas não fossem apenas um entreposto de importação acústica  mas também um filão da mais genuína criatividade popular.
Viva a festa!...
Festa do Povo
Do Povo que trabalha
E faz o mundo novo.

23.Ago.2015

Martins Júnior

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