quinta-feira, 13 de agosto de 2015

FESTAS DO OUTRO MUNDO: QUANDO A REALIDADE ULTRAPASSA A FICÇÃO


     Quem, ao meio da semana, se dá ao gosto de andar  à roda da ilha fica de olhos cheios de cor e som. De dois a três quilómetros de distância, lá surgem os mastaréus embandeirados, calçados de verde, os policromos plásticos  esticados ao longo das estradas ou abertos em pavilhão envolvente em todo o perímetro do adro e, ainda, o timbre das campânulas sonoras que chegam até  à  paróquia vizinha. Aqui, ainda o cheiro da festa que se despe, acolá o verde tenro da festa que se prepara. E o panfleto pregado às paredes, anunciando as procissões, as girândolas do meio dia, os conjuntos, os artistas lá de fora, quase sempre pimba, os palhaços, as bandas filarmónicas que farão o acompanhamento “às semilhas para a igreja e às ofertas para o bazar”.  Embora   com figurinos ligeiramente paralelos, cada freguesia celebra o orago imprimindo a sua marca  característica também ligeiramente distinta, podendo aplicar-se-lhes o velho ditado, “cada roca com seu fuso e cada terra com seu uso”. O certo é que cada Povo tem a festa que merece . E as festas --- todas elas respeitáveis --- revelam a identidade das suas gentes.
Mas há festas com estórias e, sobretudo, com história. Sumariamente satisfarei a vossa curiosidade pintando nesta tela breve a silhueta das festas profano-religiosas ( são assim quase todas  aquelas a que me estou referindo)   localizadas num meio, antes estruturalmente ruralizado, hoje semi-urbanizado, a Ribeira Seca. Estou certo que nunca ninguém vos contou uma --- esta --- realidade que ultrapassa a ficção.
Antes de 1973-74, quando não tínhamos iluminação pública,  as nossas festas eram alimentadas com geradoras, uma delas do famoso “Soares de Câmara de Lobos”.  Lembro-me de quando chegavam os velhos  motores: miúdos e graúdos acorriam curiosos à volta  das majestosas máquinas,  hoje diríamos as “bombas”, que prenunciavam o arraial.
Com o aparecimento  da energia pública, fruto também do esforço que os moradores fizeram para construir o transformador, tudo se alterou. Foi a magia da luz que se espalhava por caminhos e veredas, num abraço triunfal à aldeia inteira.
No entanto, foi sol de pouco brilho. A partir de certa altura, mercê dos acontecimentos ocorridos com as reivindicações do Povo da Ribeira Seca  (contra o regime da colonia, contra a exploração dos donos dos engenhos, depois, a minha suspensão “a divinis” pela diocese)   nunca mais a EEM deferiu os nossos requerimentos, alegando que a Câmara se recusava a passar a licença do arraial. Esta recusa implicava a proibição de qualquer mastro ou bandeira em caminhos públicos. Mais: os próprios comandos local e regional da PSP também denegavam o policiamento protocolar dos arraiais, apesar dos requerimentos feitos pela comissão de festas. Foguetes, nem pensar. Até eram censuradas as cantigas, as quais tinham de ser apresentadas previamente ao delegado da Inspecção de Espectáculos, sediada na Câmara. A própria “Pide” veio fiscalizar as canções e os bailados dos jovens e adultos.
Então, não havia festa ? --- perguntareis vós. Puro engano! O espírito da festa dava asas à imaginação popular: os mastros eram colocados na berma dos caminhos, mas em terrenos particulares. A luz eléctrica, fomos busca-la às empresas. Primeiro, ao velho “Soares”, depois (não há dinheiro que pague esse favor) por ex. às que operavam no vale do Porto Novo e na ribeira do  Faial. Nunca a Ribeira Seca ficou tão cheia, tão iluminada, em todo o perímetro da  paróquia. Era a apoteose do Povo e o ranger de dentes dos que juraram acabar com as festas da Ribeira Seca. Recordo o ano de 1985, o ano em que a igreja foi invadida  pela polícia. Fez-se na montanha do Barreiro, junto à Levada Nova, a mais alta de Machico, a perfeita silhueta da igreja da Ribeira Seca. Ai!, o esforço denodado dos jovens e  homens fortes que foram transportando, a pulso e durante a noite,  a enorme geradora até ao cimo, onde ficou a brilhar, feerico e altaneiro, o ex-libris do histórico templo. As pessoas choravam, comovidas mas felizes, por verem o que nunca tinham visto.


Quanto ao policiamento, tudo resolvido: homens de idade, os “homens bons” do sítio, de braçadeira vermelha, iam passeando entre as barracas e bares e bastava só a sua presença com a gentileza pura das gentes rurais para que todos se sentissem bem e seguros. Os foguetes, também  houve solução: substituímo-los por milhares de balões coloridos lançados ao meio dia de sábado. E no domingo, um helicóptero veio encher de milhões de pétalas todo o percurso da procissão. As romarias de cada um dos seis sítios saíam do seu lugar de origem cantando marcha própria e duas canções originais (perfaziam dezoito músicas) em direcção ao palco. Outros sítios circunvizinhos (e até um deles, do Caniçal) juntaram-se nesse ano à festa. Dias fabulosos, noites inenarráveis, expressas em quadras como esta, que faz parte de um dos CD´s já editados.

Na festa que o Povo organiza
Há mais alegria e verdade
Por isso trazemos a estrela
A estrela da Felicidade

  Fica, no entanto, uma amarga reminiscência. Foi no Ano Internacional da Juventude. Os rapazes e raparigas, com a ajuda dos pais, construíram um triplo arco monumental na entrada que dá acesso directo ao adro. Eis senão quando, estando tudo pronto e engalanado, surgem duas viaturas policiais  e um camião da Câmara de onde saltaram trabalhadores municipais para abater aquela obra-prima. Os jovens opuseram-se mas, perante a ofensiva repentina da força policial, tipo operação de guerrilha na mata africana, sentiram-se impotentes. Os gritos de revolta ecoavam no vale. E dos gritos passaram às lágrimas visto que --- maquiavélico cinismo! --- os destruidores, forçados pelo presidente da Câmara, eram precisamente familiares dos jovens que tinham construído aquele monumento verde. A esperança fez-se raiva incontida.
         Mas a festa fez-se! Com mais gana, com mais brilho e, sobretudo, com mais união. E cantavam, a plenos pulmões:

Quanto mais afastam a gente
Mais forte e unido
O Povo se sente

É tal o encanto que inunda a memória deste Povo que até nos dispensamos de comentar esse retorno à pré-história,  que os senhores da ilha nos queriam impor. E os senhores da diocese? --- indagará alguém. Bom, esses também fizeram a sua parte de especialidade: proibiram-nos a compra de hóstias. E também de qualquer sacerdote que viesse pregar à Ribeira Seca. Mas, mesmo assim, as hóstias fizeram-se e a Eucaristia cantou vitória.
E digam lá se é verdade ou não que a realidade ultrapassa a ficção?!

13.Ago.2015

Martins Júnior

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