quinta-feira, 27 de agosto de 2015

OS CRUZEIROS-DE-NEGRO VÃO ABALROAR OS CRUZEIROS-DE- LUXO ?!...


Vamos continuar no mar de anteontem. Só que, desta vez, não é o mar suave da nossa baía. Trata-se de um outro, povoado de sereias e tubarões, adamastores e cruzeiros. Por falar em cruzeiros, fico-me a indagar por qual razão deram um cognome tão lustroso quão enigmático ---   um derivado de cruzes e crucíferos --- a essas majestosas  cidades flutuantes em que se passeiam e divertem, como em Las Vegas, turistas de todo o mundo e que enchem os olhos e as ruas da nossa capital.
Cruzeiros --- soa mal este nome a quem lá dentro, nem por sombra, sonha com espinhos e calvários, antes com galáxias no céu e neptuninas musas à borda de água.  Mas há outros cruzeiros que trazem no bojo suores frios, suores de sangue, braços ternos de crianças cujos vagidos podem tornar-se prenúncio de adamastores.
É um mar revolto que ingloriamente  marulha todos os dias dentro de mim. E agora, com  pesadas placas tectónicas à vista que ameaçam as estruturas da Europa, “jangada de pedra” ou madre da civilização.  Mais que subentendido está que é do drama  --- mais do que drama, é tragédia --- que hoje me ocupo e preocupo:  dos, por enquanto,  quatro milhões de refugiados que furam a Europa como túneis sem luz ao fundo, gente como nós, esses que vêm foragidos da guerra, da fome, da insegurança, para quem o preço da vida e da morte  é o mesmo, seja em terra própria,  seja no mar alheio. Ainda que nos apeteça tapar o rosto envergonhado face a tamanha barbárie humana, ela continua a marcha inexorável em direcção à nossa casa, ao sofá do nosso merecido remanso. Até os sumptuosos tronos dos “Cameron’s  e das “Rainhas” seculares, até a nova “raça ariana” que fez tremer o mundo sob o berros do Reich, todos eles  civilizados poderosos   que até há bem pouco tempo se apresentavam como sentinelas de ferro à entrada do Velho Continente, agora mendigam à França que detenha em Calais, as “hordas” dos famintos. E por mais implacável que se revele o ministro alemão das Finanças, vê-se a Senhora Merkel entre a espada dos neonazis e a parede dos “invasores”.
Não vou esquadrinhar novas versões ou perspectivas  --- os analistas encharcam as impressoras e os áudio-visuais de todas as horas --- mas tão só constatar, primeiro, o caldeirão de contradições nas propostas e estratégias possíveis, as quais vão desde a abertura dos países da EU (já está chegando a vez de Portugal),  a assistência humanitária, como corajosamente propôs o Papa Francisco em Lampedusa,  a quem consegue a bóia de salvação para atingir a costa europeia, outros entendem que essa ajuda deve ser prestada nas terras de origem e  ainda há quem considere que a integração dos migrantes na Europa deve ser considerada uma solução ao envelhecimento das nossas populações e uma excelente oportunidade,  porque precisamos de trabalhadores jovens. É o investigador sueco Ruben Andersson que o afirma, ao mesmo tempo que denuncia “ ter-se criado, em torno da crise,  uma indústria que vive do clima de pânico”. Um deputado português no Parlamento Europeu avançou mesmo a solução de estancar a tragédia, não cá, mas a montante, recorrendo à luta armada contra o “auro-proclamado Estado Islâmico”. Enfim, bem poderia Karen Horney    reescrever a sua obra de análise sociológica, “A Personalidade neurótica do nosso tempo”.
Ousaria eu perguntar aos meus amigos: “E qual é a sua posição neste fogo cruzado das mais díspares soluções?
Outro aspecto de série  ponderação é o “ataque” à Europa. São extractos de populações em idade activa, sobretudo jovens a que se juntam crianças, os que aqui desembarcam. Antigamente, falava-se do “perigo amarelo”, mas agora estamos confrontados com a “ameaça” afro-asiática. Será este o revivalismo do Império Muçulmano de séculos anteriores? Esta onda incomensurável, incontrolável, não consigo dissociá-la, mutatis mutandis, dessoutra  em que aqueles a quem os imperadores, senhores do mundo,  classificavam de “bárbaros”, foram esses que minaram e destruíram o inamovível Império de Roma.
A prova do perigo aí está: os países da EU, até então separados  por um centralismo financeiro desumanizante, começam a entender que não há lugar para a dicotomia norte-sul. Não esqueçamos que a nação “non-grata” da EU, a pobre e endividada Grécia, é ela que mais refugiados tem acolhido, em paralelo com a Itália, sendo estes países  a porta estratégica e a fronteira mais exposta à chegada dos migrantes. Serão estes que obrigarão os responsáveis a reencontrar a força semântica e operacional que fez nascer a autêntica União dos Povos Europeus, para que jamais nos assombrem os fantasmas do Holocausto.
Deixo aqui o pensamento de Sylvie Chalaye, antropóloga, Professora da Sorbonne Nouvelle, como paradigma e tentativa de interpretar este fenómeno, de forma optimista e construtiva: “A prova de que a imigração não é conjuntural, como querem fazer crer alguns políticos, está expressa nos movimentos migratórios que são fenómenos ontológicos inscritos na memória dos povos e participam na sua renovação e vitalidade”.
É inegável que, na hora presente,  movimentamo-nos num dos picos anormais, periclitantes, de todo este problema, fruto também de uma injusta globalização. Mas não há outro caminho. Sob pena de que algum dia os  “cruzeiros.de-negro” venham  abalroar  os “cruzeiros-de-luxo” em que os europeus têm a ilusão de navegar. É no abraço comum que se agiganta a bandeira global do Homem, forçoso migrante do Planeta.

27.Ago.2015

Martins Júnior

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