segunda-feira, 7 de setembro de 2015

COMO EU VI A “INDEPENDÊNCIA DO BRASIL” HÁ 43 ANOS




Na mesa redonda do SENSO&CONSENSO não há lugares marcados nem inscrições protocolares. E aí, no aconchego do ecrã, a ementa surge ao ritmo da vida, detectando no particular e no imprevisto a leitura do universal que permanece. Por isso, deixei para outro repasto o prometido  “III Acto” e enchi os pulmões do perfume telúrico da floresta amazónica, desbravei da memória as ondas de Copacabana, ao som do samba saltitante da Baía.
         Porquê?
Porque hoje é o 7 de Setembro, Dia da Independência do Brasil. E, daí, dei comigo em Olinda e Recife, comemorando uma outra Independência do Povo Brasileiro.
Foi em 1972, durante uma viagem em que, como é meu indomável instinto, guiei-me pela  agulha magnética de Fernando Pessoa, quando afirma: “Vi como um danado”.  Posso afiançar-me que foi neste íman que se concentrou a infinidade de lugares e quilómetros percorridos, interessando-me, muito impressivamente, a situação da América Latina, onde, segundo  ouvira falar, estava ao rubro a Teologia da Libertação. Foi assim que, depois da audiência com o afável e tangível arcebispo de S. Paulo, o cardeal  Evaristo Arns;  depois do militante activista bispo Duarte Calheiros que, em sua humilde casa em Volta Redonda, me apontou as coberturas de zinco das fábricas espalhadas à nossa frente e satisfez a minha curiosidade quando me ia  informando: “Olha, padre português, aquelas são as catedrais da minha diocese” --- depois, ainda, de atravessar os enormes celeiros verdes produtivos entre S. Paulo e Brasília, onde contactei um homem, na aparência, serrano, o grande bispo Tomás Balduíno,  andando no terreiro de uma habitação sertaneja , era a residência episcopal --- depois de tudo isto, alcancei a meta do meu sonho brasileiro: encontrar-me pessoalmente com o famoso pela luta, eloquente pela mensagem, corajoso como o vento do  nordeste, o bispo Hélder da Câmara. Além da beleza indescritível de toda a fímbria costeira que une as duas cidades, calhou-me nas mãos a coincidência ideal: era o 7 de Setembro e na quinta do Paço Episcopal ia comemorar-se a Independência do Brasil. A meio  da tarde, pedi audiência ao homem que todo o dia recebia  entidades de todo o mundo ( estavam saindo nesse momento, três jornalistas americanos) e o veterano bispo falou-me do Brasil, da Igreja, do governo da ditadura então vigente, sei lá, num instante abriu-me o planisfério da América Latina, “vítima das ambições capitalistas  do Pentágono”. Convidou-me, no fim, para as comemorações da noite, nesse mesmo local.
Fica-me pena não ter suficiente espaço na paciência de quem me lê, para poder descrever a beleza única, a inspiração genuína, enfim, o fogo patriótico que emanava daquele chão. Tentarei sintetizar.
Para começar, devo esclarecer que o Paço Episcopal era um daqueles monumentos senhoriais, talhados à medida dos imponentes palácios da era dos latifundiários coronéis e governadores, Mas  Hélder da Câmara  ( a quem, horas antes, o vendedor da banca de jornais mo tinha catalogado de “bispo comunista”) não era inquilino do palácio: entregara todas as dependências e os vastos territórios anexos para fins sociais e culturais, onde estavam instaladas as sedes de movimentos de jovens, idosos, assistência social na doença e na pobreza, enfim, doara o palácio diocesano e foi viver para uma casa rasteira (eu, comovidamente,  bem a vi)  junto a uma estrada secundária da zona.
Mas vamos ao Dia da Independência. Um ambiente de apoteose esfusiante como só os brasileiros sabem fazer. Protagonistas: a multidão em massa apinhada na base dos degraus típicos dos solares coloniais e, no largo patim superior, o palco improvisado, envolvido pelo ondear de uma enorme bandeira, “meu coração é verde e amarelo-branco-azul do mar”. Artistas: grupos de todas a idades, representando os diversos bairros e núcleos daquele território, cada qual na sua vez, um colorido de vozes e trajes de encantar. Foram quatro horas inesquecíveis que, sendo longas, pareceram-me tão breves! Brancos, negros, mestiços traziam no canto e na coreografia original, a exaltação do seu país, as emoções, o orgulho do seu Brasil, à mistura com muitas mágoas, muitos dramas, mas tudo num ritmo fascinante e numa linguagem metafórica --- não aparecesse por ali algum espião da ditadura.
Um pormenor que não resisto a partilhar convosco: estou a ver o bispo Hélder sentado numa cadeira, junto ao palco e, num ápice, vejo-o descer, ágil no seu corpo franzino, dirige-se a um homem alto, esguio, ali de pé,  tez  morena do sol nordestino sob um chapéu de abas largas. Era um velhote, entrado seguramente na casa dos 80 anos. Pois o “ nosso”  bispo pega-lhe pela mão, fá-lo subir os degraus e senta-o na sua própria cadeira especial. E ficou de pé, junto do veterano, todo o tempo que durou o espectáculo. Que ternura, que simplicidade, que transparente suavidade de espírito para quem presenciou!
Vou encurtar este longo relato. Mas deixo para o fim, a cereja em cima do bolo daquela noite. Aconteceu quando Hélder da Câmara encerra a festa da Independência. E aquele que parecia um insignificante emaranhado de ossos, não de média mas de baixa estatura, ocupa o meio da cena e, como num misterioso relâmpago, todo ele se ilumina, a voz  transcende-o, o pequeno corpo  frágil  parece alcandorar-se acima da terra e entra, humilde e avassalador, na mente e no coração de  todos quantos ali estávamos. Sem medo, alto e bom som, levanta o ânimo das gentes e afronta o poder da ditadura, num misto de defesa de ideais e ataque aos detractores da sua luta, os poderosos do reino brasileiro. E fala assim:
“Dizem eles que eu ou que nós não queremos o progresso do Brasil. Não é verdade. Queremo-lo e muito mais do que eles. Só com esta tremenda diferença:  É que nós queremos o progresso do Brasil, sim, mas com os brasileiros, pelos brasileiros e para os brasileiros”.
Em ponto final: que estilo tão autêntico de comemorar o Dia da Nação! O Dia da Região! Tão longe e tão diverso daqueles ambientes de rígido protocolo, insípidos, molengos, fastidiosos e, por isso, tão alheios aos verdadeiros soberanos do país: o Povo! Aqui apetece citar a tirada de Eça de Queiroz na famosa carta a Pinheiro Chagas, onde verbera, forte e sarcástico, os falsos patriotas, quando os define como “patriotaças,  patriotarreiros,  patriotarrecas”.
Onde quer que esteja o pó desfeito do bispo de Olinda e Recife, aqui deixo ao seu espírito perene a gratidão de quatro décadas ao sempre imortal libertador do Povo, o magno Hélder da Câmara, precursor de Francisco Papa e caminho aberto para bispos infantis, padres inconscientes, cristãos dorminhocos, todos os que, afivelando patriotismo nas palavras, não passam de malfeitores “patriotaças,  patriotarreiros,  patriotarrecas”.  
 7.Set.2015
Martins Júnior

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