segunda-feira, 31 de outubro de 2016

PRIMEIRO ANDAMENTO DE UMA MARCHA CENTENÁRIA

Pela primeira vez, componho a minha partitura em prosa que, de tão longa e farta, começa hoje, 31 de Outubro, e alcança o clímax amanhã, 1 de Novembro. Porque a melodia que trago nos dedos é feita, primeiro com vagidos de criança recém-nascida, repercutindo-se, depois,  de encosta a encosta, por todo o vale de Machico, adolescente, jovem, adulta e bela..          É dela,  dessa criança de outrora, hoje aniversariante com 120 cerejas rubras e, com elas, 120 velas em cima de um saboroso bolo centenário, que tentarei desenhar o meu convívio convosco, particularmente, com as gentes da Terra de Tristão Vaz.
Foi em 1896. Nesta noite, que não de bruxas, mas de sereias saídas da velha baía, adivinhava-se o parto sonoro que amanhã, Dia dos Santos Todos do Mundo, viria sobredoirar a silhueta da nossa paisagem, desde o alto das montanhas até ao seio fundo da “extensa ribeira preguiçosa,  alisando pelo meio alvos penedos”,  conforme vaticinara , um século antes, o “Nosso Camões”, Francisco Álvares de Nóbrega.
Nasceu num  bercinho pobre, cheirando à plaina dos carpinteiros, ao labor esforçado de pedreiros, à tenda de sapateiros, aos campos verdes dos camponeses. Não obstante a raiz  quase proletária dos seus genes, teve nome real e a bênção da monarquia imperial. Rei de Portugal e dos Algarves, foi D. Carlos I o padrinho-patrono e, mais tarde, aquando da visita de Suas Majestades ao Funchal, em 31 de Julho de 1901, foi a  “criança”, de cinco anos apenas, saudar clangorosamente os soberanos Monarcas à capital do Arquipélago.
         Cresceu ao ritmo das muitas convulsões que culminaram na implantação da República Constitucional, em 1910,   substituindo então o seu passaporte inicial de sobrenome real pela autóctone matriz municipal.  Tempos adversos se lhe seguiram, os da I Guerra Mundial,  sem  nunca lhe esmorecer o ânimo de semear abadas de alegria não só na freguesia, mas em todo o concelho e fora dele. Assistiu à ditadura nascente de 1931, vestindo a farda de sargento deportado, com o qual garantiu a consistência do seu crescimento evolutivo na construção do edifício cultural da sua terra natal.
         Atravessou os dias tempestuosos da “Revolução do Leite”, em 1936, mas aguentou-se já adulta com 40 anos de idade, caldeada na alma de machiquense ilustre e conceituada no panorama musical de toda a Madeira. A II Guerra Mundial  fê-lo passar as privações comuns aos demais portugueses que, embora  mantendo-se à distância,  indirectamente sofreram as consequências. Nada, porém, travou a marcha que iniciara em 1896.
         Em 1956, no ‘tornado’ que assolou Machico rural e urbano, manteve-se, atento e seguro, no posto cimeiro da sua missão de garantir o povo mais firme e aguerrido perante as adversidades, tal como sucedera com os seus antepassados na tragédia de 8 de Outubro de 1803, que todos os anos evocava em acordes plangentes ao longo das ruas de Machico.
         E assim perfez os 60 anos de existência.
         Nesta alegoria breve, está plasmada meia-idade da nossa Banda, que começou com o garboso título de   “Phylarmónica D. Carlos I” e, desde 1910, tomou a designação que ainda hoje ostenta, “Banda Municipal de Machico”.  Os seus primeiros executantes eram oriundos da classe operária que, após um dia de trabalho árduo, aplicavam as “mãos calosas” na arte dos deuses, sem os apoios de hoje, comprando eles próprios os seus  instrumentos e as fardas da colectividade. Esforço porfiado e nobre em tempos recuados de mais de 100 anos! Os dirigentes, quase sempre autodidactas, conheceram  nos primeiros anos da década de 30 o saber técnico e a experiência artística de militares que o governo da ditadura deportou para a Madeira. Males que vieram por bem – para a ascensão da nossa Banda.
         Os 60 anos seguintes, desde 1956 até 2016,  terão amanhã, 1 de Novembro,  a consagração final  do esforço e da sensibilidade de Machico,  gente de outrora igual à gente de agora,  ao longo de um trajecto venerável, comprovando que nunca será vã a entrega de alguém a um sonho, por vezes, utópico, mas que terá no futuro a florescência e a beleza que nutrem a alma das nações.  

         31.Out.16
         Martins Júnior

          

sábado, 29 de outubro de 2016

ONDE SE FALA DE PICA-MIOLOS, BURACOS E TRAMBOLHÕES…

         
         De sábado para domingo, são tantas as propostas de evasão e entretenimento abertas por aí fora, que nem há folga para ementas pesadas na nossa mesa de leitura. E hoje não fugirei ao protocolo vadio, porque descontraído, de fim-de-semana. “Surfando” (está na moda) ao de leve e ao sabor das ondas superficiais, distraio-me, hoje - distrair-se pode significar concentrar-se -   nos buracos  e buraquinhos, quase sempre atribulações e trambolhões, que não nos deixam prosseguir o viajar normal dos planos traçados. “Guerras do alecrim e da manjerona”, diria António José Silva, “O Judeu”,   ou a comédia  “Quem tem farelos”, do fundador do teatro português, Gil Vicente. Levem, pois,  à conta de uma conversa sobre tragédias da treta o que trago hoje à colação.
         Quanto mais alto é o cargo e mais determinante o estatuto de quem dirige a locomotiva, mais lhe caem na frente estes escolhos imprevisíveis que se atravessam como pica-miolos irritantes, desestabilizadores. Falo, por exemplo, da política e da religião. Tento pôr-me na pele dos timoneiros de um país, de um continente, do mundo todo, quiçá, e avaliar a sobretaxa de paciência que devem carregar aos ombros para engolir ad nauseam  sapos, trapos, cacos que, na expressão do nosso comediante Raul Solnado, “não matam, mas desmoralizam”.
         Planeia um Primeiro Ministro a viagem, faz-se ao largo e logo na primeira ilhota, há um oficial que promete uns “tabefes” a um qualquer marinheiro de canoa e lá está o comandante à pega, até ver-se obrigado a mandar o colega  borda-fora.  Mais adiante, um tripulante de confiança apanha boleia para ir ver o europeu de futebol e – pronto! – querem que o rapaz vá p’rás Selvagens. Adeus plano de viagem, adeus rumo, adeus bússola… Eis senão quando aparece um moço de bordo com um canudo falso de novas e velhas universidades e, a seguir, mais outro. O comandante tem de arribar e atirar à praia mais dois náufragos por não saberem nadar. Lá se foi o diário de viagem. O homem nem tempo tem de se coçar. Só faltava esta:  o caixeiro-viajante mete os pés ao casco – arre burro! – e teima em não apresentar o vale da mercearia com os trocos que ganha. O melhor que faz o arrais do barco é “fugir para ilha”… de Cuba! Ou mandá-lo às almas do Tribunal Constitucional. E o projecto , outra vez ao ar! Os que exigem a demissão do ministro não pediram, a tempo,  a cabeça nem do Primeiro nem do Segundo  jardineiro DrDrDrDr… da relva!
         Se a barcaça for o planeta, então  o caso muda de tamanho e brado. Vejo o Papa, “vindo do fim do mundo” para erguer o princípio de um outro mundo novo e logo de entrada acha um velho cardeal, travestido de raça Rottweiler, que lhe vai  às canelas para fazer tombar o septuagenário argentino. Depois, há um “pastorzinho  alemão”, bispo caloiro em folha, e constrói para si uma mansão salomónica de 30 milhões de euros. E o pobre Francisco, que se recusou a viver sumptuosamente  no Palácio do Vaticano, tem de aturar um “badameco” desses, candidato em nome de Cristo a príncipe germânico… Dá, mais adiante, com o nariz num cardeal americano, num bispo irlandês, num padre impecável de gola e batina, muitos e muitos,  metidos em crimes de pedofilia… e o Papa Santo entra em parafuso e já não acha o missal onde tinha desenhado o divino plano para um mundo novo, um mundo melhor. Mais ridículo, ainda, é quando lhe trazem um testamento para decidir se as cinzas ficam na terra, no mar ou no ar. Muito tem de suportar para não mandar tudo às urtigas! Também só faltava esta: o sr. Robert Sarah, cardeal-arcebispo africano da Guiné Equatorial que quer à tripa-força a missa com o celebrante de costas para o povo, como há 60, 100, 200 anos. E tem o desplante de afirmar que a igualdade de género (homem-mulher) tem feito mais estrago no mundo  que os ataques do Estado Islâmico!!!
         Quem pode seguir caminho com tanto buraco na estrada, tantos ratos-de-esgoto bem vestidos, tantos pica-miolos de picareta em punho?!...
         De minimis non curat praetor  - dizia-me alguém, aquando da minha passagem à frente do município de Machico. “O pretor (governante romano) não deve ocupar-se de coisas mínimas”, acidentais, transitórias. Que não são propriamente  “mínimas” as questões eclesiásticas que mencionei.  
Mas não é fácil. Muita força e persistência terão de ganhar os líderes, para não perder nem a bússola nem o horizonte dos seus ideais.
         Afinal, comecei por distrair-me e acabei por concentrar-me. Assim fica.
         29.Out.16
         Martins Júnior  


quinta-feira, 27 de outubro de 2016

DO MEDO da morte À ESPERANÇA da imortalidade – Com RAQUEL VARELA em Machico


Deixei-me ficar, esta semana, em Machico, tantas foram as ofertas, caídas como prendas outonais  no terreiro da nossa casa comum. Prendas culturais, na ribalta do teatro, nos colóquios da história e da psicologia, na academia dos sons, desde os concertos de órgão até aos metais da Banda Municipal que, desde domingo p.f. até ao 1º de Novembro,  festejará uma brilhante longevidade de 120 marchas de aniversário, associando-se-lhe os acordes solidários das Bandas de Santana e Câmara de Lobos. Expressivas manifestações de descentralização cultural e de autonomia criativa,  a que outras se seguirão, entre as quais o título que encima o presente texto.
 “Amor, determinação, acção – eis a trilogia do sucesso”. Assim começa o concerto a-quatro-mãos, cuja partitura vem monitorizada naquele sonho “DO MEDO À ESPERANÇA”, que António Coimbra Matos e Raquel Varela magnificamente compuseram. Ele, psiquiatra, de vasta e abalizada experiência na área da Psicanálise. Ela, historiadora e investigadora do Instituto de História Contemporânea na Universidade Nova de Lisboa, professora convidada de várias universidades estrangeiras, autora de uma rica e densa bibliografia sobre a realidade actual e, entre outros segmentos de actividade, participante no recente programa da RTP3, “O Último Apaga a Luz”, à sexta-feira.
Estará connosco, no  Solar do Ribeirinho, 2 de Novembro, às 19H.
Toda a obra de Raquel Varela é um voo em espiral, explosão de optimismo realista, umas vezes carregado de doloroso dramatismo, porque radicado no chão frio e duro da contraditória condição humana do nosso tempo, outras vezes clamoroso e entusiasta, roçando a Utopia, de Tomas Mann e de Fernando Pessoa. Corajosamente, Raquel Varela obriga-nos a “cair na real”, sem peias nem meias-tintas, para de seguida, em mútua cooperação – “construção de relações, a chave de tudo” – levar-nos a construir soluções e pistas em direcção ao futuro. Um pensamento forte: “É preciso mudar de vida para mudar a vida. Na psicanálise como na vida, instalar uma nova relação para fruir de uma nova vida”.
O livro, sob a forma de diálogo em crescendo, associo-o à Grande Enciclopédia do Saber, do Sentir e do Agir, tal a amplitude dos espaços históricos que abarca e os testemunhos “ao vivo” de ontem e de hoje. Cervantes (A estrada é sempre melhor que a estalagem) Rosseau (O normal no homem é o do ‘bom selvagem’ que não tem medo da liberdade, do lazer e do prazer) Rosa Luxemburgo (Quem não se movimenta não sente as correntes que o prendem) e a antítese entre “Édipo culpado e Ulisses dedicado, por amor”.
O amor, o trabalho, a família, a empresa, a luta, a informação, a frustração,  o burnout, enfim, é a vida toda  e o mundo todo que perpassam diante de nós, impelindo-nos a caminhar porfiadamente face ao futuro, porque “a emancipação de um povo é de conquista, não de oferta”.
Ao “beber de um só fôlego” a mensagem DO MEDO À ESPERANÇA, acudiram-me à memória “As Lições de Abismo” do sociólogo brasileiro Gustavo Corção e a “Summa Theológica”, de São Tomás de Aquino, a qual, no caso vertente, tomaria a designação de “Summa Vitalis”, o tratado da Vida.
Desisto de fazer mais citações, porque de cada uma que fizer,  outras nascerão,  mais belas e arrebatadoras, porque todas as linhas dessa enorme arquitectura dirigem-se a esta ogiva fundamental: “A vida é festa; ou não é vida. A dança do trabalho e do amor. E a psicanálise e a família são, por excelência, parte nobre do texto e do contexto da vida em festa”.
Interrompo esta ouverture  em tom maior, porque o concerto total será na próxima quarta-feira, 2 de Novembro, às 19H, no inspirador Solar do Ribeirinho. Coincidentemente, é o Dia de Finados. Talvez a maior mensagem seja a da “imortalidade simbólica”, expressa na conclusão de Coimbra de Matos: “Lidamos com a consciência da morte, acrescentando algo ao conhecimento, encanto e conforto do mundo, transmitindo às novas gerações um legado cultural. Com isto tornamo-nos, de certo modo, imortais”.    
Bem-vinda a Machico, Raquel Varela!

27.Out.16
Martins Júnior



terça-feira, 25 de outubro de 2016

SEMINÁRIO DE PSICOLOGIA: A INTERVENÇÃO EM MULTIPLOS CONTEXTOS - um Sábado cheio em Machico


Vinte e dois de Outubro, sábado cheio de Machico à procura de si mesmo. Que disse eu?... De Machico?... Mais, muito mais.. Foi um sábado pleno de cada homem e  de cada mulher à descoberta do seu mundo.
         Já me referi na última conversa convosco à obra de arte, sonhada pelo Criador – o efémero e frágil ser humano – em constante confronto dialéctico com o seu Autor, no percurso atribulado da História. Foi a prodigiosa saga cénica da peça “OPUS”.
         Antes disso, porém, passou-se todo o dia a mergulhar nos fundos marinhos, sem termo, da psicologia humana, entre dois polos: o da antiga Grécia, a do filósofo Sócrates (“Gnóti sè autón”- conhece-te a ti próprio) - , e a definição do homem-em-situação (“O homem é aquilo que é, mais a sua circunstância”). A circunstância do lugar, da génese, do temperamento e do carácter, da relação com o outro.
         Este longo e abissal roteiro aconteceu no “Seminário de Psicologia”, desde a manhã até à tarde do último sábado, para os mais de cem participantes, professores, alunos, educadores, que encheram  o nosso  “Forum”. Dou a mão à palmatória pelo cepticismo com que encarei a iniciativa. Nunca pensei que as jovens psicólogas de Machico fossem capazes de tamanho feito. Está visto e comprovado que a descentralização da cultura terá de ser sempre tarefa dos que habitam as periferias  da capital. Esta é a primeira lição.
          Quem compulsar o Programa verá que se tratou de um manual enciclopédico que abarcou matérias tão distintas, na área da Psicologia, destacando-se o melindroso âmbito da “Psicologia Forense e as Perícias Psicológicas”,  na esclarecedora exposição inicial, da responsabilidade do Prof. Dr. Rui Abrunhosa Gonçalves. da Universidade do Minho. Ao mesmo nível, o estudo da “Violência Doméstica, após 20 anos de investigação”, da Prof. Dra. Marlene Matos, da mesma Universidade, desvendou-nos os meandros labirínticos de um sub-mundo cada vez mais a descoberto nos nossos dias, gerador  de chagas sociais, tantas vezes insanáveis e destruidoras de uma sociedade presente e futura, que se pretende feliz e harmoniosa. “A Importância de uma Abordagem  Muitidisciplinar em Saúde Mental, ou a interdependência entre Psicologia e Psiquiatria”, uma dissertação de índole académica, a cargo da Dra. Carla Spínola, médica psiquiatra do Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental, abriu-nos as muitas variáveis por que se pautam os nossos comportamentos, confirmando o velho axioma de que “não há doenças, há doentes”.
         Duas classes profissionais estiveram em foco, com o tal “saber de experiência feito” – a do Subcomissário Adelino Camacho, sobre a “Importância da figura do Psicólogo na PSP” e a da Dra. Filipa Oliveira, da UMa, trazendo à colação o síndroma “Bournot” nos profissionais da Educação, ou seja, o depauperamento psíquica do docente, devido à intensividade do espinhoso cargo de ensinar, um drama tão ignorado quanto menosprezado por utentes e responsáveis públicos.
Testemunhos experienciais, ao vivo, completaram um dia inteiro que passou tão rápido, como se de uma hora se tratasse. Neste “item”, atrevi-me a observar que, na grande constelação dos educadores, deveriam figurar os animadores sócio-culturais e religiosos das diversas comunidades locais (ninguém apareceu) visto que, por inerência indissociável da sua acção pastoral, deveriam ali estar, para ouvir, mais que para falar, pois  o saudável crescimento psicossomático do ser humano  - “alma sã em corpo são“ - deve alicerçar-se em conhecimentos científicos e não  em mitos e mèzinhas devocionais.
Bravo, jovens psicólogas que, com o apoio da PSICAF ( Serviço de Psicologia e Avaliação Forense) e da Câmara Municipal de Machico, levastes a cabo tão prestimosa iniciativa, reveladora de um autêntico serviço público!
Queria eu terminar com esta saudação positiva e reconfortante.
Mas não posso. Por dois motivos. 
Primeiro, ao abrir ontem a imprensa diária deparo-me com uma machadada no grande feito de sábado passado: a Secretaria Regional da Educação  retira  os  psicólogos de quatro escolas, deixando dois mil alunos sem apoio. Comentários, para quê? Tome-se  nota: os tripulantes remam para a frente, os comandantes puxam para trás!  Segunda decepção: estranhei a ausência de um representante do governo num acontecimento que primariamente lhe impende. Afinal, mais tarde soube-se particularmente  que  foi convidado, mas recusou porque do Programa não constava a sua intervenção. Arranjem-lhe um pedopsiquiatra, depressa!
Aos organizadores, entusiasticamente  recomendo e aguardo a cereja em cima do bolo: o II Seminário de Psicologia em 2017.

25.Out.16

Martins Júnior

domingo, 23 de outubro de 2016

ACONTECEU TEATRO EM MACHICO – Quando o “blasfemo” se torna sublime e verdadeiro!


Foi ontem mesmo. E eu não posso conter a alma escaldante que, durante uma hora cheia,  dois talentosos protagonistas – Bruno Esteves e Rui Pinheiro - abriram, cavaram, dilaceraram, sacudiram  e, por fim, libertaram o espírito e a sensibilidade de quantos ali se encontravam.
Aconteceu teatro, ouro do mais fino quilate em terras de Tristão Vaz.
O título  sintético – “OPUS” – define a profundidade e a extensão da grande Aventura Cósmica urdida e guardada no punho da uma mão fechada, umas vezes em assombros de eloquência, outras de forma hermética e outras, ainda, povoada de um humor quase negro, a roçar o blasfemo. Um trabalho  similar ao de Hércules, da mitologia grega,  ou ao de um Sansão, no texto bíblico! Partilho convosco esta interpretação da “OPUS”.
O guião abarca, em toda a sua latitude, a história  do momento decisivo da Criação, o turbilhão tempestuoso do percurso do Homem dentro da Obra criada  (“Opus”)   – o passado, o presente e o futuro -  num entrosamento denso, mas subtilmente comunicativo, que exige do espectador uma intuição expectante, uma cumplicidade alucinante que nem é possível tracejar a respiração.
Tudo isto num cenário possessivo, sem adereços nem especial guarda-fato, pelo contrário com duas peças, apenas, de vestuário exterior, as mesmas desde a primeira à última cena, enfim, uma economia de motivos e, ao mesmo tempo, uma transfiguração  repentina, quase absurda, da mesma indumentária, arrastando a plateia para os muitos planos imaginários para onde os protagonistas nos querem transportar.
Ideologicamente, a “OPUS” é a denúncia do sufoco tumular em que a humanidade transformou a sublime epopeia da Criação, ao ponto de arrepender-se o próprio  Criador de ter accionado o Big-Bang originário de todos as galáxias, de todos os planetas, sobretudo o planeta Terra, com tudo o que ele contém. O epílogo tremendo, expresso no paroxismo da pergunta final com que termina a “OPUS”, resume o suplício sem retorno da Divindade, perante o desconcerto que os homens fizeram de um mundo harmonioso. E a pergunta, arrasadora como um ferro em brasa, é esta: “Tudo o que sucedeu foi por Minha culpa ou foi por vossa néscia culpa”?
Nesta interpelação que, por vezes tem assomos de veemente imprecação e libelo acusatório, estão envolvidos os governantes,  os eclesiásticos, o Vaticano e os capitalistas, para quem “Deus é o dinheiro”, todos os sabotadores do verdadeiro progresso. Mas o grito avassalador daquela apóstrofe sobe de tom e amarra-nos ao poste, quando o “Criador” desce do palco e aponta,  junto de  nós, espectadores: “E não terá sido pela tua própria culpa, pela tua acção, omissão e pelo teu silêncio”?!
Respigo, de cor, algumas dessas corrosivas acusações: “O número dos mortos assassinados em Meu Nome, nas Cruzadas, ultrapassa o dos Kmmer’s vermelhos e do “holocausto” ... “Achas que a Inquisição acabou? Não. Apenas mudou de pele”… “A heresia de hoje pode ser a ortodoxia de amanhã” … Estremecedora e genialmente bem conseguida  é a cena da  crucifixão do Filho, quando entra em palco o agente de seguros e oferece-se para fazer um seguro de vida ao Crucificado, “com direito a ressurreição garantida e a oferta de um sudário com a imagem do morto”…  Medonho e acusativo! Até com o Crucificado fazem negócio.
O historiador e latinista  Paul Vyne, a propósito da reedição das obras do filósofo Platão e do poeta épico Virgílio, recomenda-os à nossa leitura, com este cartão de sábio: “Os clássicos ensinam a fazermos perguntas a nós próprios”.
O mesmo pode, seguramente, afiançar-se da magnífica obra “OPUS”.  Nota máxima para o grupo cénico de Idanha-a-Nova!

23.Out.16
Martins Júnior

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

183 VELAS EM CIMA DO BOLO DE DINAMITE – recordando Nobel, o benemérito Mecenas da Humanidade



Quem seria capaz de provar desse bolo?
E quem teria fôlego de apagar uma só vela que fosse, suspeitando que ela lhe rebentasse nos olhos?
No entanto, está meio mundo – e talvez mais -  dependurado no pavio dessa vela e na farinha desse bolo. Não pensem que venho hoje decifrar algum enigma da espionagem clássica, tipo de Sherlock Holmes, ou servir à vossa mesa algum episódio de um estranho “thriller”.
Não. Venho apenas partilhar convosco uma data assinalável: o 183º aniversário de Alfred Nobel, sim, o mesmo que criou o generoso, o prestimoso, o glorioso Prémio Nobel, o cobiçado troféu com o respectivo montante, para o qual se dirigem os olhos da fina-flor dos criadores mundiais. O que, decerto, muita gente desconhece é o “pai da criança”, de tão fenomenal e milionária criança. Inscrevam no vosso catálogo das “Curiosidades” esta prosa que hoje vos trago.
Quem foi Alfredo NOBEL?... Um químico sueco, filho de químico, autodidacta, aventureiro, excêntrico, visionário, idealista profundo, ateu e panteísta. Supermilionário!  E supermilionário, porquê?... Por ter inventado a dinamite. Esse, o seu troféu vitorioso, a sua bandeira mortífera “em prol da Humanidade”! O sucesso financeiro da família Nobel teve o apogeu na guerra da Crimeia (1854-1856) vendendo à Rússia minas submarinas e explosivos militares. Com o fim da guerra, sobreveio-lhe a falência, Percorre, então, a Europa e tenta vender a patente aos banqueiros que, aterrorizados com o  anúncio publicitário  (“o invento é capaz de  destruir o mundo todo”) voltam-lhe as costas. Quem o apoia é o imperador francês Napoleão, a troco de uma avultada fortuna.
No fim da vida, em San Remo, Itália, e a sugestão da mulher, faz a decisiva e histórica doação – orçada em 40 milhões de francos – em testamento datado de 27 de Novembro de 1895 e aberto em 30 de Dezembro de 1896, ano da sua morte.  Inextrincável contradição: ele, “um pacifista, poeta incarnado num homem de negócios”, diz o escritor sueco Gustav  Cellstrom.  E que negócio? – o vil fabricante de armamento! No entanto, no seu testamento deixa todos os rendimentos da imensa fortuna “para serem aplicados na manutenção de cinco prémios anuais destinados a recompensar os benfeitores da Humanidade,  o espírito e a paz nas suas mais sublimes expressões”.
Ficar-me-ia por aqui, deixando campo aberto a quem me acompanha por este meio. Sintetizo a minha ( e nossa, poderei dizer) estupefacção na seguinte exclamação de um seu biógrafo: “Ele, que no século XIX fora o maior inimigo do género humano, esfacelando-o com os seus terríveis explosivos, acaba por mostrar-se o seu maior amigo”!
Dá que pensar esta constatação quase desconhecida, de tão pouco lembrada. Teria sido arrebatado o químico sueco, já perto de morrer, por um inelutável rebate de consciência e tentado remediar com volumoso cheque bancário os crimes humanitários que cometeu com o fabrico de  armas assassinas?
Tenho para mim que muitos dos laureados, sobretudo com o Prémio Nobel da Paz, sentirão  escorrer ainda nas mãos vestígios do sangue de milhares de vítimas tombadas - no passado, no presente e no futuro – pelos fabricantes de armamento.
E o meu pensamento discorre e aperta-se-me perante tantos magnatas das finanças que, por descargo de consciência ou ambição de fama, apresentam-se como Mecenas da Humanidade, com doações e fundações que mais não são que o ressarcimento (tardio demais!) pela exploração danosa e cruel que infligiram às gerações anteriores.  Em vez de generosas caridades de hoje, não seria  melhor ter pago o justo salário e as necessárias indemnizações àqueles que directamente trabalharam para tamanhas fortunas?... Lembro-me aqui do nosso arguto Almeida Garrett: “Quantos pobres serão precisos para fazer um rico”?...
Em todo o caso, cantemos os parabéns sobre as 183 velas do aniversário de Alfredo Nobel. E de todos os Gulbenkian’s, Champalimaud’s, Rockefeller’s, que os há em todo o mundo. Para bem da Humanidade. Maior bem, contudo,  seria o da “Justiça na hora” – e não ao retardador. Só leis justas farão o mundo justo. Aqui e agora!

21.Out.16
Martins Júnior

      

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

NOBEL – NOBRE – ÍMPAR


Descomprimamos o ambiente. Vamos à música,  talvez o maior altifalante do pensamento que um homem produz. Com a música a palavra transfigura-se,  a Ideia despe-se e, na sua nudez original, ganha estatura e estatuto que, isoladamente, nunca alcançaria. Será por tudo isto que a Academia de Estocolmo outorgou o Nobel da Literatura/2016 ao cantautor estado-unidense  Bob Dylon?
         E cá estamos nós encalhados na primeira onda que eu contava ser de descompressão e alívio do peso habitual dos meus entretenimentos vespertinos convosco. É que isto tem sido um cabo de tormentas e imprecações para os críticos literários e, mais academicamente, para os professores de Literatura. Cada qual terá o seu monóculo, tipo queirosiano, para apreciar a ementa que os “juízes” nórdicos serviram este ano ao mundo, chamado culto. Para uns, como Jimenez Losantos e Jorge Bustos, o galardão de ouro foi atribuído a Bob Dylon, pelos mesmos motivos, atestam, que fundamentaram o Nobel da Paz a Juan Manuel Santos, da Bolívia: “a demagogia mediática e a corrupção política”. Para outros, operou-se uma viragem de paradigma, a qual uma amiga minha classificava de “democratização da Literatura”. Certo é que ao Grande Prémio têm-se candidatado os altos expoentes da escrita, uma “élite” (perdoem-me o galicismo) ardorosa, requintada e segregada, o que não raras vezes tem provocado atritos e insanáveis dissenções entre os pretendentes. Lembremo-nos, por todos,  António Lobos Antunes e José Saramago. Uma perspectiva diametralmente oposta é a que entende o texto  como um grito que estala na dormente e obscura insensibilidade da geopolítica em que os donos-disto-tudo nos obrigam a  viver. Aqui, o poeta - o escritor – é o profeta do Futuro.
Desta dicotomia estrutural, nasce uma outra que vem de longe, pela qual se deve privilegiar o qualitativo em detrimento do quantitativo. Levar-nos-ia a um largo oceano de opções este debate. Apraz-me dizer, apenas, que na mesma linha de Bob Dylon, mereceriam o pódio cimeiro os nossos Sérgio Godinho e Zeca Afonso.
         Mas a mais certeira bissectriz deste dilema quem a traçou foi o próprio laureado. Nem respondeu à chamada!... O incomensurável enredo desta atitude, a lição enorme de desapego “daquele vã cobiça e daquela vaidade humana com que se o povo néscio se engana” (Lus.V, )  podemos ver “claramente visto” (Ibid.) na decisão de Bob Dylon. Prova aberta,, irrefragável, de quem canta sem preço e escreve sem prémio, porque nele, como em António Aleixo, “mais vale pardal na rua que rouxinol na prisão”.
Num mundo em que impera o primado maquiavélico do vale-tudo, na banca, na política, até nas religiões, a maior peça literária e a mais bela canção (mais que a desassombrada Blowin in wind ou The times they are a changin)   está a dar-nos, aqui e agora, Bob Dylon, com esta atitude de gigante que não rasteja no chão lodoso das promessas megalómanas.
         Para nós, portugueses, o fenómeno não é estranho. Dois casos exemplares bastarão para prová-lo, em nosso conforto e para nosso modelo: Zeca Afonso – que se recusou a receber a Medalha da “Ordem da Liberdade”, atribuída pelo Presidente da República Ramalho Eanes. Ele, um dos maiores lutadores pela Liberdade do Povo Português! O outro protagonista, nosso – mais nosso por ser madeirense – é Herberto Hélder que, da mesma forma,  recusou  o Grande Prémio Camões, ele “o Poeta Maior”.
         Nesta senda da poesia, outra chave de ouro mais perfeita não acho para definir essa entrega incondicional dos verdadeiros servidores de uma Causa Maior,  senão o ainda mais nosso – porque de Machico – Francisco Álvares de Nóbrega, no último verso de um dos seus preciosos sonetos:
                            “Das almas grandes a Nobreza é esta”!  
    

    19.Out.16
    Martins Júnior

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

COCA, PEPSI E IGREJA


Se há temas que suscitam mais impressivamente o confronto na praça pública é quando a questão social vem à ribalta pela voz de alguém ligado à Igreja. Aí é o campo de guerra, onde  não há tácticas nem evasivas de espécie alguma: uns abraçam apaixonadamente, outros atiram-se numa fúria cega contra  o “pregador”,  tal como  a raiva irracional do touro diante do pano vermelho. É o que se tem visto, de alto a baixo, no tablado da vida.  Aqui e mais além. A título de exemplo, procurei na net as opiniões  sobre o vibrante apelo do bispo Angélico Sândalo Bernardino, citado no meu escrito anterior, e confirmei, de um lado, o aplauso do povo crente  e, do outro, o ataque feroz de certos clérigos – a pele anémica à roda de uns olhos furibundos –  vociferando, de código canónico na mão, contra o ilustre ancião Angélico Sândalo, sem o mínimo escrúpulo de atirar-lhe em  rosto a foice e o martelo de “comunista”.
         É sempre assim. No meio de tanta ‘histeria religiosa’, coloca-se-me diante dos olhos esta incontornável pergunta: Porquê tanto descontrolo, tanta praga, tanto anátema quando alguém aborda com realismo a missão da Igreja face aos desequilíbrios sociais do nosso tempo?... E a pergunta avoluma-se em tom mais agudo e lancinante, sobretudo hoje, 17 de Outubro,  “Dia Mundial da Erradicação da Pobreza”.
Velha e ponderosa questão que vem de longe e para longe vai, desde que há humanos sobre o planeta e que só se extinguirá quando definitivamente  sair de cena o último habitante terráqueo! Incontáveis são as prestações filosófico-teológicas, os argumentos, as proclamações “urbi et orbi” que se têm multiplicado sobre o tema, Na minha mesa de trabalho, tenho diante de mim, neste momento, nada menos que vinte volumes de autores diversos, desde Leonardo Boff (Grito da Terra, Grito dos Pobes) até Albert Gelin (Les Pauvres de Yahvh). Após consulta acurada, venho a ancorar o pensamento neste ponto de chegada que é, simultaneamente, o ponto de partida:
A história do mundo desenha-se  na arena encarniçada, onde frente-a-frente, degladiam-se interesses conflituantes que, no  limite, se resumem à luta do esquadrão dos poderosos contra a multidão dos pobres,  párias abandonados à sua sorte, sem hipótese de vitória: a dignidade e a igualdade de oportunidades.
O combate feroz vem do princípio do mundo: o astuto Caim contra o justo e frágil Abel, assassinado pelo próprio irmão, sem ter ninguém que lhe valesse. No mundo de hoje, os descendentes de Caim não pararam de construir o império do mais forte sobre o mais fraco: latifúndios, castelos, canhões e “offshores”,  “bunckers” e paióis. Mas quem aparece a defender os degradados “herdeiros” do justo Abel, os operários, os sem-terra, os servos da gleba, os escravos, os refugiados?... Com quem poderão estes contar para fazer ouvir os seus gemidos e protestos?... Os Estados, que só se aferram ao poder… os armeiros, cujo objectivo é a terra queimada… os banqueiros de alma feita de metal sonante…  os clubes “suciais” dependurados nos subsídios dos governos… os medrosos, quando não mafiosos, devotos que se acoitam debaixo do burel piedoso… as multinacionais,  “que aos pobres  dão um chouriço para lhes sacarem um porco” ????... Leio em El País que a Coca y Pepsi, para aumentar as vendas, financiam ao mesmo tempo organizações que recomendam a redução do açúcar nas bebidas. Requinte de cinismo – comenta o autor.
 Só uma autoridade digna, imune às ambições do poder, desinibida e livre de sair à rua, sem medo de perder as benesses e as boas-graças dos magnatas governantes – alguém, tocado pelo timbre dos verdadeiros heróis, prontos a dar a vida pela sua palavra,  gente de espírito e sensibilidade. Esse Alguém é a Igreja de Cristo. Não o tabernáculo dourado dos homens. E sim a grande cúpula reservada aos que, nada  tendo nas mãos, trazem a alma cheia da maior riqueza que o mundo ruim desconhece: dar a vida pela Justiça e pela Verdade. Erradicar a pobreza!
Os que propugnam  o espectáculo deslumbrante e, por via disso,  não querem  uma Igreja reduzida aos muros do templo e da sacristia, são os mesmos que não deixam, amaldiçoam até, uma Igreja autêntica que sai à rua em defesa da justa repartição do bem comum.  Mas se lhes tocarem nas subvenções aos  colégios, “Aqui d’El Rei”, vamos, criancinhas,  à Cruzada contra os Infiéis!
Preferem na rua os pendões, as velas, as procissões arrebanhadas, movidas a vapor  sem chama, porque manipuladas e anestesiadas, cantando alegremente enquanto pisam o asfalto negro, que me traz à mente o símbolo  das  vítimas que sucumbem aos “bulldozers” dos justiceiros-senhores do mundo.
Chega de uma “Igreja-Coca-Cola”!
  
17.Out.16
Martins júnior

    

sábado, 15 de outubro de 2016

MAR AGITADO NA “BARCA DE PEDRO”


Nada melhor que um provisório agitar de ondas numa manhã aberta de luz oblíqua. Porque aí  vêem-se  os contornos das falésias, aí  separam-se  as águas e aparta-se a promiscuidade estagnada. Provisório – disse – no sentido de metódico e didáctico, tal com a dúvida cartesiana que nos descobre a verdade.
Estamos a viver, na hora presente, essa manhã da descoberta. Ela surge ciclicamente em cada pico da história. Mas  esta é a nossa hora. Na ciência, na tecnologia, na medicina, até na atribuição dos Prémios Nobel, como  nos demonstrou a Academia sueca no segmento da literatura. É na agitação das ideias e das opções que se forjam os rumos do futuro.
Hoje, no redemoinho turbulento da maré vejo a milenar  “barca de Pedro”, a Igreja Católica. E vejo-a através de um vídeo que o sempre actualizado Padre José Luís Rodrigues teve a gentileza de partilhar: Aconselho-o a todo o homem, cristão ou não, que quer encontrar a verdade separada da mentira, o trigo limpo expurgado do joio. É o colóquio – não lhe chamo sermão, porque é muito mais que um discurso anémico – dirigido a eclesiásticos e crentes no dia da Senhora da Aparecida. Que tratado de clarividência, que bravura de carácter, que coerência evangélica a do bispo Angélico Sândalo Bernardino. Palavras de Anjo libertador, sabendo ao sândalo rude e aromático da Verdade, denunciando o charco social da sociedade brasileira, inclusive a de certa prática religiosa, em que o “regime capitalista em que vivemos mata a dignidade da pessoa humana”. O convite a um jovem padre, de etnia negra, ali presente, para junto de si, abraçando-o efusivamente e apontando para a imagem: “A Senhora da Aparecida também é preta e Ela não suporta a segregação, seja  qual for”! Perante tanta coragem, só me aparecia na retina o falecido Hélder da Câmara, o chamado “bispo vermelho”, quando o ouvi falar em Olinda e Recife, em 7 de Setembro de 1972, dia da Independência do Brasil. É assim a hierarquia brasileira, com bispos da estirpe de Duarte Calheiros, António Fragoso e muitos outros que bateram pé nos tempos da ditadura militar (1964-1985) e que sofreram os garrotes do poder autocrático de então.
O comentário do Padre JLR, corroborado por muitos seguidores, terminava com esta ousada incógnita: “Quando é que em Fátima ouviremos um bispo, um cardeal, com uma mensagem tão clara e  coerente com o Evangelho”?!
         Nem de propósito, abro  o  Le Monde , que traz em grande manchete o seguinte título “Le cri d’alarme des évêques de France” -  O grito de alarme dos bispos franceses – referindo-se ao documento que o presidente da Conferência Episcopal Francesa, Georges Pontier, arcebispo de Marseille,  apresentou publicamente em 13 de Outubro. Raridade num jornal agnóstico, são dedicadas duas páginas inteiras e um editorial. Do texto integral, que merece uma leitura atenta, recorto  duas citações: “Num mundo que está em mudança, é preciso reencontrar o sentido das política”. E ainda: “O contrato social tem de ser redefinido”.
         Volto ao comentário de JLR e convido quem me lê: façam o paralelo entre o vigoroso texto do episcopado francês e a pomposa encenação, no mesmo 13 de Outubro em Fátima, que a nossa comunicação social titulava assim: “A peregrinação  é presidida pelo Secretário de Estado do Vaticano”.  Semelhante contra-senso seria capaz de fazer desabar o tecto da nova basílica. Mas o que é isto? A mensagem de Maria, Mãe de Jesus, escoltada, presidida por um Secretário de Estado?!... E de que Estado?... Alguma vez, Pedro, o pobre pescador da Galileia, e o seu Mestre sonharam  ter embaixadores, os “núncios apostólicos” , e secretários de Estado, os cardiais?... É caso para  orar à Senhora  que repita hoje  o pedido que fez aos  três humildes  pastorinhos: “Digam às pessoas que não ofendam mais  Nosso Senhor, porque ele já está muito ofendido”.
         Neste agitar de águas contraditórias,  agradeço a aparição de homens, como o bispo Angélico Sândalo Bernardino  e como os bispos franceses que nos ajudam a separar o trigo do joio. Confio ainda que o nosso J: Cristo reincarnado, parcialmente, na vida e na acção deste  Francisco Papa, quando vier a Fátima em 13 de Maio de 2017, nos ajude a dissipar as trevas, meta sangue novo na hierarquia e nos cristãos e purifique o nosso olhar para descobrirmos a manhã luminosa da Verdade.

         15.Out.16
         Martins Júnior
  


quinta-feira, 13 de outubro de 2016

“MISSÃO IMPOSSÍVEL” PARA UM FUTURO NOBEL DA PAZ – Ele passou por aqui!


Imperdoável seria deixar bater as vinte e quatro badaladas deste 13 de Outubro sem convidar para o coração da nossa cidade o aclamado hoje, em Nova Iork, Secretário Geral das Nações Unidas, António Guterres. Não pelo patrioteiro rótulo de ser português, mas pelo clarão de esperança que ele traz ao mundo. Antes de chegar à magna Assembleia da ONU, já ele passara por cá, como a foto documenta.
Mais que palmas e panegíricos, apraz-me reter desta aclamação as ilações que dela derivam.
Primeiro, a oportunidade de ouro, sabiamente aproveitada pelos países eleitores para prestigiar a Sociedade das Nações, numa altura periclitante em que  ia resvalando  na mais repugnante promiscuidade de interesses, quando a Srª Merkel atirou para a cena a candidata Kristalina Georgieva. Felizmente a transparência e a honestidade impuseram-se aos oportunismos nacionalistas.
      Já foram internacionalmente elencados os altos predicados de António Guterres que o tornaram o supremo candidato ao majestoso trono para que foi eleito. Eloquentes foram as duas palavras com que subiu à tribuna: “Humildade e gratidão”. Relevo, porém, a primeira. Se este deve ser o estado de alma de quem é designado para o mais  modesto pódio de uma autarquia, junta, câmara, governo regional ou nacional, quanto mais para quem lhe cai aos ombros toda a estrutura do planeta. Não é apenas de finanças que lhe impende a responsabilidade, nem da fome, nem da saúde, nem das alterações climáticas, nem da crise identitária, nem da religião, nem dos conflitos rácicos, nem das multinacionais. É de tudo  isso, ao mesmo tempo  que  será amassado o seu pão-de-cada-dia. Podem cognominá-lo de “Senhor dos Anéis”, Dono do Mundo, Juiz das Nações. Mas nada disso o conforta ou acende sequer um lampejo de dominadora ambição. O conteúdo funcional e final de cinco anos de mandato é o de um Arcanjo Pacificador, quase que um  Extra-terrestre,  que irrompe entre as hostes do ódio e da guerra e aí serena ventos e furacões, cala as armas e transforma-as em altifalantes da Paz.
         O quanto de labor insano, dias e noites aos pés de guerrilheiros e refugiados, o quanto de paciência expectante e, aí, frustradas expectativas, enfim, uma odisseia imparável que nem uma vida inteira seria capaz de levar a bom porto! A diplomacia, com toda a habilidade que lhe é reconhecida,  não vai chegar. Virão os meridianos inultrapassáveis em que será inadiável fazer opções, decidir. E é neste nó crítico – a hora de decidir - que, dizem os analistas, Guterres não brilha. Abandonou o poder, quando Primeiro-Ministro, antes que  Portugal se tornasse num “pântano”, disse então.  Mas o que ele vai encontrar não é um pântano, mas um bravio vulcão incandescente. E não queremos vê-lo no papel intransitivo de um Ban Ki-moon ou nas diplomáticas indefinições de um  Kofi Annan. Segundo a visão dos especialistas internacionais, assumir-se como  Secretário Das Nações Unidas é, hoje, muito mais problemático e penoso que nos tempos da Guerra-Fria, em que o mundo estava identificado no confronto de dois blocos: URSS e EUA. Não assim, agora, porque os focos de rebelião deixaram de ser entre duas potências, para se tornarem em guerras regionais, conflitos dispersos no terreno, reacendendo-se em locais antes imprevisíveis.
         Restam-nos as auspiciosas qualificações que vêm de longe, desde os tempos de estudante universitário em que ocupava as férias no apoio aos bairros da periferia lisboeta. Conforta-nos a simpatia do Papa Francisco  com esta eleição. Tenho para mim que António Guterres será o braço civil do Papa Francisco, o seu estratega operativo no mundo actual. Será ele, António Guterres, no final do mandato, o mais convincente Prémio Nobel da Paz.
         Quando chegar esse dia, Machico poderá aclamar e proclamar: ELE ESTEVE AQUI, no coração da nossa cidade!

         13.Out.16
         Martins Júnior

        

terça-feira, 11 de outubro de 2016

O GENERAL, O PROFETA E O MERCENÁRIO – Um filme desde a Síria de há 3.000 anos até à ilha de hoje


       Foi deslumbrante, de 8 para 9 de Outubro, ver a noite em Machico transfigurada pelas luminárias, tantas, que até ofuscaram a rede pública da Empresa de Electricidade. Lembram, todos os anos, os nocturnos da longínqua idade medieval, povoada de fantasmas e mistérios. Mas o epicentro de toda essa galáxia de cera mole foi a palavra redonda, redonda e vermelha, vermelha, da cor da túnica oriental, saída  do “sol” diocesano: Bem vindos vós, romeiros, que viestes pagar ao Senhor dos Milagres as vossas promessas.
         Nesse mesmo domingo, 9 de Outubro, anteontem, as leituras bíblicas desdobravam diante dos nossos olhos um filme heróico e comovente: a cura do comandante-em-chefe das Forças Armadas da Síria (lá, onde hoje agoniza a martirizada Alepo) o general Naamã. Vem no 2º Livro dos Reis, capítulo V.  Tentarei resumi-la neste breve (?) esboço, de uma possível peça de teatro.  
  
ACTO  I
Sala escura, cheirando a carne moída e malsã.  Ao fundo, encovado no divã,  jaz Naamã, com a lepra a tomar conta dos braços e do rosto. Entra o lugar-tenente.

 LUGAR-TENENTE
Mau general, acabou-se a maldição. Cedo serás livre da fatal doença, se fores ter a Israel com um tal Eliseu,  o homem  de  Deus. Profeta e curandeiro.

NAAMÃ
Juro que não irei a Israel. Será esse profeta maior e mais sábio que os físicos do nosso Império Sírio? Não vou

LUGAR.TENENTE
Tente V.Senhoria, meu general. Toda a corte irá consigo.

ACTO II
     Santuário de Ihaveh: um humilde casebre onde se acoita Eliseu. Na liteira, suportada por quatro eunucas da corte, entra  o general, suplicante.

ELISEU
Não fales mais. Tem confiança. Vai mais além,  ao rio Jordão e mergulha sete vezes.

NAAMÃ dando ordem de retirada aos eunucos
Juro que não vou. Temos na Síria rios mais famosos que esse reato Jordão de Israel. Não vou.

LUGAR-TENENTE
Nosso general, atenda a este vosso servo. Siga o caminho do homem de Deus.

NAAMÃ
Não vou. Esperava eu que esse profeta fizesse oração, que me deitasse a bênção a este corpo que se desfaz. E manda-me lavar ao rio! Está dito, não vou. Palavra de general.

LUGAR-TENENTE
Por vós, Senhor. Pelo poderoso exército sírio. Por todo o povo do nosso reino. Vamos todos. Avante, eunucos.

ACTO III
Rio Jordão. Manhã clara, sol de primavera. Aias e eunucos envolvem o corpo de Naamã, pousam-no na margem do rio que, entretanto, o  afasta para o leito da corrente mansa. Mergulha uma vez. E outra. E a terceira. Na ponte do rio, a comitiva agita-se, ansiosa, num crescente entusiasmo.

VOZES
Será possível? …Que vemos nós?...  A carne toma cor… os braços a abrir. Outro mergulho. E mais dois. E com que energia estranha! … Só falta mais um… E já nada sozinho. Palmas, hossanas ao Profeta de Deus, ao Deus de Israel.

AS AIAS
Quero ser a primeira a tocá-lo… E eu quero beijar aquela pele, agora macia e leve como uma criança recém-nascida.
Naamã sai das águas do rio. Parece acordar de um sonho. As aias e os subalternos trazem vestes novas, limpas, reluzentes. Todos gritam de alegria incontida.

NAAMÃ  
Fora de si, instintivamente  ajoelha, ergue os braços ao alto

Não há outro Deus, senão Iahweh de Israel. Levantemo-nos todos, vamos ao santuário de Eliseu. Trazei-me os cofres das moedas de ouro, os sacos das moedas de prata, as vestes especiosas do mais rico tecido  de Damasco.

ACTO  IV

Casebre-santuário de Eliseu. Ao chão térreo chega, primeiro, Naamã.  Depois, todo o seu séquito, as aias, os eunucos que deixaram fora a liteira, o lugar-tenente. Manda aos oficiais subalternos que  tragam  os presente. Há vivas e cantares. Prostrado por terra, o general, em altos brados, diante de Eliseu.

NAAMÃ
Jamais curvarei meu corpo diante de outros deuses.  A Iahweh, o Deus de Israel adorarei e só a Ele para sempre servirei.  (Sem parar, fala a Eliseu). Profeta de Deus, eu te saúdo e dou-te graças. Rogo-te que dês a este teu servo o dom de aceitares estes presentes que te trago.

ELISEU – dando as mãos a Naamã.
Pelo Deus vivo que tenho servido, sou eu agora que te juro: Não aceitarei, seja o que for que trouxeres. Levanta-te, segue o teu caminho, cumpre os mandamentos do Deus de Israel.

NAAMÃ
Não, Profeta de Deus. Eu agora sou o teu vassalo e Iahweh o meu soberano. Só irei em paz para a minha amada Síria, se aceitares estes singelos presentes.

ELISEU
Não aceitarei. Nem eu, nem o meu ajudante Giesi. Está dito. Palavra de Profeta. Segue o teu caminho.

ACTO V

Perante a recusa, o general pede para  transportar um pouco de terra de Israel, para levantar em Damasco um templo ao Deus de Eliseu. A despedida de Naamã e de todo o séquito faz-se entre lágrimas, clamores e cânticos de festa. Entretanto, recolheu-se o Profeta em oração. E Giesi, sempre  atento e de olhar sequiosos em todo o Acto anterior, deixou que a comitiva dobrasse uma das dunas do deserto e, às escondidas de Eliseu, galopou a toda a brida no encalce de Naamã, que mandou parar a sua escolta.  

GIESI
General do Grande Império! Digna-te perdoar a este teu servo… O meu amo e senhor Eliseu acaba de receber em sua casa dois mancebos, filhos de profetas  da montanha de Efraim.  E não tem nada que lhes dar.  Poderá V. Senhoria dispensar uma ou duas porções do presente  que ele recusou?... Iahweh te agradece e o Profeta te abençoa.

NAAMÃ
Viva o Deus de Israel! Aias e eunucos, oficiais meus subalternos, devolvei a Giesi  todo o ouro, toda a prata, as vestes reais e tudo o mais que eu trouxera  ao Profeta.  (Para Giési).  Não te esquecerás de dizer ao teu amo e senhor quanta honra e felicidade  destes  a este seu vassalo e para sempre  sequaz do Deus do Profeta de Israel.

ACTO VI
Giesi, radiante como nunca, depois de guardar ciosamente em casa a fabulosa oferta de Naamã, apresenta-se, nesse fim de tarde, a Eliseu, no templo-casebre onde ficara.

ELISEU
Giesi, dizei-me  por onde andou este meu servo bom e fiel, toda a tarde deste dia.

GIESI
Por lado nenhum, meu amo e senhor

ELISEUEm tom severo e ameaçador.
Pensas, acaso, que o meu coração não foi contigo., quando saíste na tua montada?...  Pensas que eu não te vi receber desse homem riquezas sem conto?... Pensas que o Deus de Israel não te viu quando  as escondeste  em casa?... Recebeste dinheiro e mudas de roupa real em nome do Deus vivo, que eu sirvo!!!
(Giesi, transido de pavor, escondia-se no desvão da escada).

ELISEU(No mesmo tom de voz)
Não fujas, Giesi, hás-de ouvir-me até ao fim. Hás-de saber a sentença que te reserva  Iahweh. Agora, estás rico, riquíssimo. Podes  à vontade comprar terras, vinhas, gados, bois, carneiros. Terás tudo o que Naamã  te  deixou. Mas, ficarás com algo mais. (expressão mais grave e austera). Sim, ficarás com algo mais. Ficarás  com a lepra de Naamã!... Tu e toda a tua geração!

                                   (Cai o pano)
                          _________________________________________

O texto do 2º Livro dos Reis, capítulo V, versículo 27, termina assim :
“E naquela hora Giesi retirou-se, com o corpo coberto de lepra”.
                       _____________________________________
 E agora termino eu:
“Vem, Eliseu Profeta de Deus, olha em teu redor e em nosso redor. Hás-de encontrar, decerto,  muitos Giesi’s, locupletados . à custa do Deus de Jesus  e Sua Mãe, comprando quintas e quintais, carros e carruagens, bolsos e bolsas bancárias. Não com o dinheiro de generais, mas com as promessas ‘pagas a Deus’ pelos pobres crentes,  explorados no corpo e na alma”.
 Será que o mundo anda todo leproso sem darmos por isso?!

11.Out.16

Martins Júnior