terça-feira, 31 de janeiro de 2017

OS CÓNEGOS CONTRA OS ARCEBISPOS… E NÃO É QUE OS ARCEBISPOS PERDERAM A GUERRA ?! – Crónicas do meu televisor privativo


Desanuviar  o ambiente, é preciso. Correr, descomprimir, rir e aprender – eis o melhor remédio. Vamos a isso, já. Portugal, de lés-a-lés, pulou desenfreado, ali de desespero e raiva, acolá de fogo e palma e contentamento sem freio. Desta vez, o Minho foi “Rei de Portugal e dos Algarves”. Adeus Lisboa, capital do Império. Adeus, Porto do pré-republicano “31 de Janeiro”. Adeus, Coimbra dos Doutores. O Minho é que é!  O Minho é Lindo!
E no Minho, o maior é o Moreira (não do Rui), mas dos Cónegos. Imberbe e pequenino, abateu o gigante vizinho, depois de ter enjaulado o Dragões e as Águia,  no percurso norte-sul. Todos os jornais derramaram o brilho da tinta, todas as rádios escancararam as cordas vocais e todas as TV´s  mudaram de cor. “Viva o Moreirense, viva, viva”!... “Moreirense só há um, o dos Cónegos e mais nenhum” !!!
Mas no meu televisor privativo, havia mais qualquer coisa. Ou parecia. Não faltaram os crentes bíblicos em colar na testa o duelo David-Golias, ou o texto litúrgico de Paulo de Tarso, anteontem, onde se exaltava que “Deus usa os fracos para confundir os fortes”. Também vieram os cultores das metáforas e das alegorias,  identificando o grande feito à fábula da formiga e da cigarra, da lebre e do sapo-concho.
Apareceu depois  um esguio e pálido juiz do Vaticano, ruminando pragas e atribuindo a Satanás o “escândalo” de ver uns magros  cónegos de Moreira, grande parte deles oriundos da África negra,  derrubando os anafados e alvíssimos arcebispos de Braga! Impossível: a aldeia de uns cónegos decrépitos, vitoriosos em cima dos mausoléus da arcebispal “Braccara Augusta”!
Logo a seguir. O “pivot” explicou que os cónegos não são mais que padres,  calçados de meias vermelhas, já rapadas. E o arcebispado de Braga era e é  o detentor da sede primaz da Cristandade em Portugal.  E foi dizendo que na Igreja há postos e patentes, tal como nas Ordens Militares: presbíteros, bispos, arcebispos, cardeais e Papas. Tudo talhado à maneira da hierarquia do exército: soldado raso, sargento, oficial, capitão, por aí  fora, até brigadeiro, general e marechal.
O locutor mais não disse. Mas percebi nas entrelinhas o que não lhe permitiram dizer, ou seja, a história que ciclicamente se repete: só a “arraia-miúda” é capaz de abater os castelos dos poderosos, desde a porta-de-armas até às aguçadas ameias. Sempre foi assim. Com a luta do Mestre de Avis, em 1383-1385. E agora, na era em que nos foi dado viver, foram as praças, os sargentos e os capitães de Abril que derrubaram a ditadura dos galões e das estrelas faustosamente coladas nos ombros dos generais.
Pela minha parte, enquanto a multidão lá de cima vibra e salta ao ritmo dos fogos-fátuos que iluminam a noite, fico pensando que a força dos fortes provém da fraqueza dos fracos e que esta aparente fatalidade só se inverte pela pertinácia das bases. Nunca as metamorfoses da história começaram pelas cúpulas. Se os pequenos e os fracos quiserem, será realidade o cântico de Zeca Afonso: “O Povo é quem mais ordena”.
Também na Igreja. Nunca os cardeais e os arcebispos nem os Papas deixaram que o Cristo histórico,  íntegro e total,  passasse por aqui. Só uma excepção – Francisco Papa! Mas se as raízes, os miúdos, os cristãos de base não sustentarem na mente e nos braços este troféu da Verdade, tudo cairá outra vez  no abissal império dos arcebispos. Não os de Braga, mas os de sempre. Daqui também.
Graças ao Moreirense e à sua  sibilina e, para mim, sábia mensagem!  
    
         31.Jan.17

Martins Júnior

domingo, 29 de janeiro de 2017

EM 2017, DOIS CENTENÁRIOS “MUTUAMENTE EXPLOSIVOS” ???


Porque hoje é Domingo…
E por sê-lo, o corpo repousa e a mente voa. Livre como um pássaro e desarvorado como o vento, o espírito chega até onde não nos permitem os dias comuns. Por isso não tem mapa de voo, nem sequer heliporto terminal. E aí é que surgem as surpresas mais estranhas, não pensadas, quase esotéricas, saltitando nos lagos imprevistos do pensamento-viajante de fim de semana. Umas vezes, com lampejos inspiradores, outras sem nexo aparente, mas sempre com um que nos interpela e nos persegue.
Foi o que me sucedeu precisamente. Imaginem para onde me levou hoje la folle de la maison (a louca da casa) como ironicamente  definia Montaigne a nossa mente?... Fez-me atravessar dez décadas e deixou-me no pico alto do ano 1917. Abriu o livro de memórias e mostrou-me duas paisagens, dois retratos,  dois hemisférios radicalmente opostos, qual deles mais contrastante que o outro. E ambos enraizados na encosta do mesmo mês: Outubro de 1917. Um deles, cercado de luz, uma “Senhora mais brilhante que o sol”, uma azinheira rústica, repousante. O outro, um estouro retumbante, um murro no trono, uma foice e um martelo, uma revolução. “Malhas que o Império tece”…
Já  notastes, decerto, que me refiro a dois acontecimentos, plantados ao mesmo tempo, mas de crescimento e frutificação tão diversos! Ocorria o mês de Outubro de 1917. Na Rússia, consumava-se a revolução bolchevique, inspirada no marxismo-leninismo. Em Portugal, na Cova da Iria, dava-se o “milagre do sol”, consumando-se as aparições da Virgem, que passou a chamar-se “de Fátima”.
Este foi o texto linear que a mente, la folle de la maison, me deu a ler no voo sem rumo deste Domingo. Declaro desde já que hoje não tenciono perorar, nem sequer filosofar, sobre tão escaldante dialéctica. Garanto-me, porém, a mim próprio, que farei o maior esforço de hermenêutica para decifrar o enigma da concomitância destes dois pilares históricos que marcaram um século da história e mexeram com as estruturas pensamentais, económicas, culturais e sociais do mundo todo, a partir do continente europeu. É da mais elementar filosofia o conhecido  axioma de que “os extremos tocam-se”. Monitorizar as linhas de intersecção onde os dois casos se tocam e se repelem – eis uma tese que se impõe a todo aquele que procura a sabedoria, mesmo que não se assuma como analista arguto dos fenómenos histórico-sociais. Em que medida Rússia e Fátima serviram mutuamente de arma agressora ou de alavanca colaboracionista no seu desenvolvimento, ao longo de cem anos?      
 É curioso notar o afã com que os promotores ou propagandistas de um e outro factos se esmeram em programar a secular efeméride, cujo depósito têm à sua guarda. “Pela aragem, conhecer-se-á quem vai na carruagem”, significando este aforismo, no caso vertente, que pelos cerimoniais, pelos discursos, pela opulência (ou não) dos protocolos, será possível detectar aspectos fundamentais que, das duas mensagens, só virtualmente visualizamos. Pela minha parte, guardo na reminiscência da infância, desde os bancos do seminário até aos inflamados sermões das igrejas, a palavra de ordem vigente de que “Nossa Senhora de Fátima veio a Portugal para acabar com a Rússia e que, por isso, era preciso rezar muito”.  Desde então, pairou-se-me no subconsciente a ideia de que os dois casos estão ligados um ao outro.
Estas e outras incógnitas, cujos contornos se ramificam superabundantemente, farão parte dos meus projectos, não apenas nos voos de Domingo mas na serena e porfiada análise de cada dia. Seria bom ter alguém por companhia neste exigente percurso.

29.Jan.17
Martins Júnior

sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

NUNCA SE SABE PARA QUEM SE TRABALHA!... Um aborto a céu-aberto


Desde ontem até hoje, já nem sei contar quantos títulos me ocorreram para esta longa viagem dentro das quatro paredes da sala do nosso  Arquivo Regional. “Expropriados, vendidos, assaltados e escorraçados”… “Como pode uma árvore boa dar  um fruto podre?”… “Ó tempo volta pra trás”… “Um parto contra-natura”… E outros tantos, quase todos deprimentes, para estampar  publicamente o misto de desilusão e  repugnância que me causou uma breve consulta  ao “Jornal da Madeira”, de há 59 nove anos. Foi  a propósito de um soneto – “VEM,  SENHOR”! – que publiquei na edição de 25 de Dezembro de 1958, depois republicado na antologia de Luís Marino e no “Eco do Funchal” e, agora, para satisfazer a sugestão  solicitada por um amigo meu.
Percorrer aquelas páginas amarelecidas foi uma romagem de saudade. Recordar os colunistas de então, entre eles o Pe. Alfredo Vieira de Freitas, em secções distintas e respectivos criptónimos, o seu sobrinho, também poeta, António José, o fogoso deão da Sé Catedral Fulgêncio de Andrade, professores do Liceu, correspondentes em Lisboa, crónicas de viagem, os folhetins diários, alguns deles mais tarde compilados em romance. Passou-me no horizonte da memória o fabrico artesanal do jornal,  com os velhos e meticulosos compositores da tipografia (cada letra, um chumbo alinhado à mão no caixilho de madeira que, tantas vezes, também manuseei ao lado dos ‘homens da ferrugem’) enfim, um desfilar dos cheiros tóxicos das barras de chumbo derretendo a altas temperaturas,  as provas repetidamente corrigidas, os revisores, os jornalistas e até os ardinas que, pelas três da manhã,  vinham preparados para a faina, depois de uma “quentinha” ( café pingado de vinho) no café da esquina.
Era, então, o genuíno Jornal da Diocese. Embora fosse dirigido, algum tempo, pelo prof. Basto Machado,  chefe da Mocidade Portuguesa criada por Salazar, havia pudor e discrição para que o chamado ‘Estado Novo’ não tomasse a dianteira da Igreja, na orientação e paginação diárias. Lembrei-me dos sucessivos directores e chefes de Redacção, sacerdotes de primeira linha, Agostinho Goncalves Gomes, Maurílio de Gouveia, Jardim Gonçalves, Abel Augusto da Silva, Paquete de Oliveira.
Confesso que desisti de folhear o grosso volume encadernado e dei comigo ali, só, a cabeça entre as mãos, interiormente comovido e revoltado, perante o que fizeram do Jornal da Diocese. Arrancaram-lhe o coração, mas mantiveram a pele. E o que era Igreja viva, tornou-se por dentro pedra dura da política sectária, ao serviço de um herdeiro da ditadura do ‘Estado Novo’  e à qual deu o despudorado baptismo de ‘Madeira Nova’. O bispo Francisco Santana, o primeiro vendilhão do jornal e  do templo na ilha, entregou  a direcção  ao candidato  a dominador insular, como quem oferece uma filha virgem a um predador sem escrúpulos. O bispo Teodoro Faria vendeu-lhe a propriedade do Jornal, com menos dor que  Judas quando vendeu o Mestre por trinta dinheiros. O actual bispo dorme na cama que os predecessores doaram e deixa o Jornal na rua, semelhante a um deserdado, um sem-abrigo, um filho de pai incógnito à espera de  alma caridosa que o adopte e o compre como uma rês depenada. Nem que seja por 1 euro.
À maior parte dos que me lerem, talvez pareça um anacronismo, uma tolice até, revelar o estado de alma em que me prostrou a consulta de ontem. Porque não viveram os sacrifícios que os cristãos madeirenses fizeram pelo seu Jornal, os peditórios anuais em todas as freguesias, os esforços para não deixar cair a identidade da sua imprensa, os contributos factuais naquelas páginas, naquelas paredes, naqueles escritos, entre os quais me incluo, no dealbar dos verdes anos.
De que serviu tanto labor e a quem aproveitou tamanha resiliência em tempos difíceis?... Deveriam ser chamados à pedra os comparsas sem honra e sem lei que  ofereceram e alienaram a estranhos aquilo  que não era seu. Que fizeram da Igreja da Madeira uma vil moeda de troca. Ou, como há 1500 anos verberava Santo Agostinho de Hipona, os que transformaram a Igreja numa casta meretrix, uma meretriz casta, o mesmo que prostituta cara.  O “Jornal da Madeira”  é o mísero ex-libris a que chegou a Instituição diocesana: sem brilho, sem coluna, sem prestígio.  Lamentavelmente.


27.Jan.17

Martins Júnior          

quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

UMA “CONSTITUIÇÃO DOGMÁTICA” NO FUNCHAL


Este 25 de Janeiro sai-me do computador como um poliedro de muitos rostos. Tem tanto de sério e diletante, como de sarcástico e chocarreiro. Consonante e contraditório, ao mesmo tempo.
Começo pelo tom “grave e sério”. Está na ordem do dia falar de normativos constitucionais, inconstitucionalidades, tribunais constitucionais, numa palavra , invocar  a Lei Fundamental do Estado-Nação, a Constituição. Sempre as houve, desde as constituições monárquicas  às liberais, desde as totalitaristas às republicanas, cada qual com o seu figurino próprio ao serviço da ideologia ou dos interesses dominantes. De todas, porém, a mais original e anacrónica  será aquela que deu à luz o título deste escrito: A Constituição Dogmática. Quem me lê neste momento conhece, de certeza, a máscara e o ADN do (des)qualificativo Dogmático. O dogma não se discute, não admite perguntas nem respostas, não tem apelo nem agravo. É o “status”: inflexível, inamovível, sem olhos, sem ouvidos, sem alma e sem coração. É a esfinge no deserto do pensamento, além da qual ninguém pode passar, sob pena de condenação à pena capital. São seus parentes menores as constituições dos regimes fascistas, as constituições estalinistas, enfim, as ditaduras. Todas fabricadas pelos humanos mortais.
Mas as Constituições Dogmáticas são “gente fina”. São do outro mundo. Procedem dos oráculos divinos, de lá onde mora o Eterno e  Supremo Juiz da História. E o seu fiel depositário é um só, mesmo sem procuração reconhecida:  a Religião - melhor talvez, as religiões. No caso vertente, a Igreja. E, para  nós,  a Católica. Seus delegados e juízes, dotados de infalibilidade dogmática, são os “ministros hierárquicos”, mais deístas que Deus, mais papistas que o Papa. Pela Constituição Dogmática da Igreja, foi excomungado o Patriarca Miguel Cerulário, em 1054 (há quase mil anos!) e, com ele, a Igreja Ortodoxa, desde então separada de Roma. Pela Constituição Dogmática, em 1431, foi queimada viva na fogueira uma jovem francesa, Jeanne d’Arc, por defender o seu povo. Ainda pela Constituição Dogmática foi excomungado, em 1521, Martinho Lutero e, por tal sentença, proliferaram na Europa e no mundo as doutrinas protestantes. E pela mesma Dogmática Constituição têm sido ostracizados, reduzidos ao silêncio, encarcerados no próprio país, muitos pregoeiros da Verdade, lídimos cultores da Sabedoria, teólogos eminentes, mártires anónimos, sobre cujo féretro a mesma Constituição Dogmática manda rezar ofícios sagrados, que mais não são que cínicos impropérios repugnantes perante a barra da Justiça autêntica, seja ela humana, seja ela divina.
Perguntar-me-ão por que andas e bolandas venho eu, hoje mesmo,  com este tão estranho arrazoado.
É que hoje é 25 de Janeiro.Com recheio gordo de 4 “pratos”.   Às companheiras e companheiros viajantes dos  “blog’s”  proponho que descubram  as consonâncias e as dissonâncias, os sabores e dissabores da ementa:
1)    O “JM” (forma sincopada, semi-amputada do ex-“Jornal da Madeira”) tem propagandeado “No Seminário diocesano, três dias de actualização do clero sobre a Constituição Dogmática da Igreja” à luz do Vaticano II. Ouso sublinhar que, para a Madeira, podia ser “do Vaticano I”.
2)    Hoje encerra-se o Oitavário para a Unidade das Igrejas Cristãs, iniciativa centenária de um pastor protestante e depois adoptada pelo Vaticano, conducente ao respeito pelos diferentes credos e instituições inspiradas na fé do mesmo Cristo.
3)    Hoje evoca-se a conversão de Paulo de Tarso que, de feroz perseguidor dos cristãos, passou a defensor incansável de Cristo, coração  aberto para todos, gregos ou romanos, judeus ou pagãos.
4)    O Papa Francisco, na entrevista ao El País (a que fiz referência anteontem) acaba de verberar o clericalismo autoritário, desenraizado da vida, castrador da Verdade Total – a Verdade que é participada por  todos e por cada um dos humanos.
E a pergunta é:
Que sentido faz  hastear na diocese do Funchal a bandeira de uma “Constituição Dogmática” ? Ou: como pode compaginar-se o “prato nº1” com os outros três que se lhe seguem?... Dará em congestão, de certeza. Ou em reacção nuclear.
Poderia reproduzir aqui um extenso rol de citações bíblicas e doutrinais sobre a ilusão em que navegam certos “príncipes da Igreja”,  desactualizados, dogmáticos medievais, julgando-se seguros por terem uma mitra na cabeça, um báculo dourado na mão e um código canónico aos pés. Prefiro apenas procurar resposta a estoutra pergunta:  Porque é que nenhum artista sacro, desde os clássicos aos modernos, se atreveu  a representar Jesus Cristo com o mesmo toque de estilista: mitra filigranada na testa, báculo na mão e cordão  de  ouro ao peito?...
Como Saulo, outrora no caminho de Damasco, capital da Síria, desejo e empenho-me todos os dias para que caiam as escamas do obscurantismo  que ainda nos turvam a luz dos olhos. Dos meus. Dos nossos.

25.Jan.17

Martins Júnior

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

OS CAVALEIROS DA CRISE – uma abordagem de Jorge Bergoglio, Papa



Andamos por aí a navegar – terra, mar e ar. E quem não se sentiu, alguma vez, metido nas encruzilhadas das ondas, no redemoinho dos ventos, no descampado de múltiplas rotas entrecortadas?... Aí é que se põe à prova o discernimento do navegante, a sua capacidade de análise perante a confusão circundante.
É esta a hora e é este o tempo em que vivemos. Acontecimentos fortuitos agarram-nos nessa onda de embates e contradições tais que nos deixam encostados ao “Beco do Fala-Só”. Em todos os continentes e em todas as estruturas, quer as de índole social, confessional ou política, de entre as quais ressalta a inevitável ‘tragicomédia’ do presidente eleito dos EUA. E foi precisamente na hora em que Trump tomava posse, sexta-feira pp., que em Roma dois jornalistas do El País, António Caño e Pablo Ordaz, entrevistavam em Roma o Papa Francisco, cujo comentário  não podia ser mais certeiro e abrangente: “O  perigo é que em tempos de crise busquemos um salvador”.
Certeiro e abrangente!  Basta percorrer, mesmo de levante, o curso da história para nos apercebermos desta  inelutável  fatalidade. Todos procuram um líder  a quem chamam  carismático, seja um guerreiro armado, seja um bezerro de ouro, um arcanjo extraterrestre - seja lá o que for – e entronizam, como o salvador predestinado,   no altar da pátria. Nalguns casos, com pleno sucesso colectivo, noutros com o amargo embuste, devastador de gerações. Pensemos num rancoroso Dracon da Antiga Grécia, reconstituamos um execrável Nero de Roma, rebobinemos o filme de uma ‘Santa’ Inquisição, de um Robespierre da Revolução Francesa,  um Stalin da URSS, um Hitler, um Franco de Espanha, um providencial ‘Salazar´.  Todos ídolos imaculados, todos salvadores da pátria. E eu  acrescento: todos Cavaleiros da Crise. Porque, com  a  aparente generosidade de destruí-la, a crise,  todos a montam e  expropriam até ao tutano  a sensibilidade mórbida de um povo sem norte. É então que  da massa informe do povo nascem as serpentes devoradoras, os ditadores sem alma que, em vez de paz,  pão e liberdade, atulham de vermes e  munições o estômago de quem lhes entregou o poder..
 O nosso arguto Bergoglio, perito na diplomacia que também exercera como núncio-embaixador do Vaticano, apazigua os ânimos com um  indeciso “Vamos esperar para ver”. Mas essa condescendente expectativa não anula o ímpeto das multidões que em todo o mundo protestam, não por aquilo que eventualmente Trump vai fazer, mas frontalmente por aquilo  que ousou dizer contra a  liberdade, contra  a solidariedade entre as nações, contra a dignidade da Mulher, enfim, contra a própria humanidade.
   Aqui chego ao essencial da presente reflexão. Por mais milagreiros e sedutores que sejam os “salvadores da pátria” é preciso, é urgente, que os olhos do povo não adormeçam nem se hipnotizem. É seu dever e é seu direito inalienável seguir atentamente os passos de quem o conduz, permanecer vigilante a  cada salto e a cada sobressalto, por mais exuberantes e auspiciosos que nos pareçam. Os salvadores da pátria não podem andar à solta. Porque a ambição e o poder não têm freio.
Já senti e exprimi, por este meio, o ideal de uma sociedade normal, onde não sejam precisos nem mártires nem heróis. Até na Igreja. Jean-François Bouthors, antes do conclave de 2013, escreveu: “O próximo Papa não deverá ser necessariamente um homem providencial, porque a Igreja não precisa de ídolos”.  E acrescenta:  “Enquanto perdurar a ilusão  de esperarmos do Papa um milagre salvador, a Igreja será incapaz de reencontrar o dinamismo da sua missão”.
Em todos os tempos e em todas as instituições, a normalidade social, tal como a soberania, reside no Povo. Quando esclarecido, vigilante e dinâmico, é ele o Salvador da Pátria.

         23.Jan.17

         Martins Júnior

sábado, 21 de janeiro de 2017

“GUERRA E PAZ” – Um filme a rodar outra vez nos nossos ecrãs


Com armas se faz a guerra e com armas se a desfaz. Com suor se planta a paz e com menos se a destrói. Lado a lado,  caminham connosco, comem e dormem connosco, os arrasadores  demónios do apocalipse e os anjos recolectores do paraíso terreal. Talvez que a única nesga de Paz só exista na fronteira entre as duas insanáveis litigantes , fronteira essa que somos nós, o íntimo de cada um de nós.
No último fim-de-semana julgo ter provado à evidência que Deus não tem mão na paz ou na guerra. É assunto que Lhe passa ao lado. Qualquer requerimento ou prece que Lhe fizerem são liminarmente rejeitados por incompetência primária. A competência e a decisão do litígio é tarefa exclusiva, intransmissível, dos agentes humanos. Remeto, pois, a demonstração para o ‘Blog’ de 15.01.17,  por onde se conclui que misturar Deus com as guerrilhas dos homens assume os contornos de provocação abominável, senão mesmo de blasfémia sem perdão. Bem discernia Francisco de Assis quando a si mesmo se definia como “Instrumento da Paz”.
Não serão precisos altos silogismos  para vermos e sentirmos que a Paz não é o lago inerte, pantanoso e mudo das charnecas. Nem o jardim das flores silentes dos cemitérios. Porquê?... É que ela transporta aos ombros aquele  virulento escorpião  que encontrou moribundo na picada e que, a qualquer momento, inocula sadicamente o veneno fatal nas costas de quem o socorreu. A guerra tem os seus genes congelados em potência, prontos a retalhar, destruir, matar impiedosamente.
Aí, a Paz tem de organizar os seus militantes, tem de fabricar no laboratório da história  os antídotos eficazes para opor-se ao esquadrão facínora. É neste terreno prático, (diremos, lógico-dedutivo) que a Paz toma a veste de Oposição, conceito que ultrapassa as oposições profissionalizadas, essas também, fabricantes do armamento sectário que mina os acessos à Paz verdadeira. Quão difícil é respirar com segurança o ar puro do conforto  familiar, social, psíquico, afectivo, extasiante! Da breve análise dos acontecimentos passados, a Paz não é mais que o curto intervalo entre duas guerras, algo efémero como os quinze minutos no meio de um combate desportivo de noventa minutos. Privilégio único desta geração europeia foi o ter vivido sem guerras fronteiriças  desde 1945. Há 72 anos, portanto, a Europa enterrou o machado de guerra que dividia os seus territórios, reunidos desde então sob o grande pavilhão de uma Comunidade, com estigmas é verdade, mas não armada e aberta ao mundo.
Eu disse: foi  o privilégio. Mas, a partir de ontem, tudo indica que o “intermezzo” da Paz  terá terminado. As imprecações vindas da Mátria da Democracia, as ameaças tribais, atiçadas pelo régulo das cavernas contra a União das Nações Europeias – e contra o Planeta, em geral  - fazem tocar a rebate as trombetas das milícias da Paz para barrar as hordas da nova barbárie americana, capitaneada pela repelente armadura do esquadrão trumpista. Pela amostra do primeiro dia, a Europa  –  nós, aqui e agora – tem de organizar-se  para poder defender-se, não apenas dos terroristas  islâmicos, mas dos jhiadistas americanos de Trump.
Sem maiores análises, começamos a entender aquele antigo aviso das civilizações greco-romanas:  Si vis pacem, para bellum  - “Se queres a Paz, prepara-te para a guerra”.  Paradoxal, mas incontestável. Resta saber que tipo de  arsenal bélico será o mais eficaz.  Paulo de Tarso propôs um dia as “Armas da Luz”, em cujos paióis se guardam o conhecimento, a inteligência, o diálogo, enfim, a estratégia convincente. As manifestações que  pelo mundo inteiro se têm multiplicado contra o “novo perigo americano” de Trump  oxalá configurem uma  pista poderosa e consequente para alcançar a dolorosa montanha da Paz e da Razão.
“Guerra e Paz”, intitulou Tolstoi o seu melhor romance.
“Guerra e Paz”, mais que romance, é o guião deste filme do Homem sobre a Terra, a narrativa de cada um de nós. Quando chegará o dia em que se invertam os factores e  que a guerra seja apenas um breve intervalo entre as longas, intermináveis e produtivas jornadas de Felicidade?!
É esse o nosso trabalho.

21.Jan.17
Martins Júnior    


   

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

“BLACK & WHITE” – REQUIEM POR UMA CASA QUE FOI BRANCA!


Chegada a manhã de 20 de Janeiro, morreram as noites brancas. Começa  o dia negro de luto transitório. O verde das pradarias foi esmagado pela ‘buldózer’ que tudo seca e amarelece até à raiz dos cabelos.
O avejão das cavernas remotas reveste-se de couraças marteladas e com o ferro em brasa  no bico pontiagudo destrói as pontes, vomita  nos rios e aquíferos  das nascentes  e, em vez das sebes floridas entre pátrias, faz emergir tremendos muros de betão ciclópico.
Não será mais América abraçando todo o mundo. Será o planeta enfardado, agrilhoado nos ’bunkers’ do Capitólio.
Nos portões da Casa Branca não haverá mais o riso das crianças nem a ternura de uns olhos repousantes de Mulher  nem os braços de um Homem do tamanho do mundo, tocando os dois hemisférios no coração de quem lhe bate à porta. Só restará um robot disforme de granadas nos punhos,  monstruoso produto do bronze  fundido em falências repetidas e barras de ouro, cheirando ao sangue, suor e lágrimas de vítimas anónimas.
Não mais se ouvirão os pássaros nos jardins circundante porque , apavorados, terão fugido para longe. E ninguém mais caminhará seguro nas alamedas copadas.
Virá o tempo em que já não serão precisos talibãs  da Al-Qaeda  para abater a  majestosa arquitectura da Casa Branca. Ela implodirá às mãos do próprio inquilino, derrubado pelo justo clamor das multidões traídas.
Adeus Casa Branca.
Só foste Branca quando habitada pela família migrante, negra de pele, mas de coração feito de todas as cores do arco-íris.
Adeus Casa Branca.
Ficarás agora de luto pesado, nos alçados e nas janelas,  quando aí entrar um branco de cor ausente.
Até aquele dia em que as auroras boreais possam voar até  à Pátria de todos os povos, construída nos alicerces da Declaração Universal dos Direitos Humanos.        

19.Jan.17

Martins Júnior

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

JARDIM ZOOLÓGICO TRANSFORMADO EM CATEDRAL

Desçamos hoje à terra, acarinhemos os “amigos fiéis”, os que nos guardam, os que nos alimentam, os que nos inspiram, os que nos cantam  e, por vezes, desencantam. Mais concretamente, vamos ao “zoocampus” mais próximo da nossa residência. E, se possível, convidemo-los a caminhar em pacífica romaria até ao adro da igreja dos Prazeres, ou da Sé de Lisboa ou até à colunata de Bernini,  na Praça de São Pedro de Roma.
Porque hoje é dia de Santo Antão.
É dia de sacralizar o reino animal, desde aqueles que ganharam a nossa estimação até aos que se atiçam à nossa sombra. É bucólico, romântico e divertido ver o hissope de água benta debruçar-se carinhosamente sobre os nossos “peluchos” vivos, trazidos com ternura maior nos braços dos seus donos.
Porque é dia de Santo Antão.
E o patriarca dos monges dos séculos III e IV da nossa era, Santo Antão, é o seu Pai Natal abençoado, trazendo ao pé do cajado em cruz um porquinho bem papudo ou um coelhinho matreiro. É um mimo de sensibilidade criativa o ritual de orações e jaculatórias  que lhe são dirigidas neste dia. Cito algumas delas, colhidas textualmente:
Santo Antão interceda junto a Deus para curar o meu cachorro Bento que está sofrendo com problemas na coluna. Que Bento fique bom e volte a andar. Amen. (Renata).
Santo Antão proteja os ‘meus filhos de quatro patas´, o Cacau, o Pitty, o Tandy e o Sansão, porque algum vizinho maldoso está colocando veneno para matá-los. (Anónimo).
Santo Antão, ajuda meu cão Frederico a ter vida melhor, ficar dentro da casa da minha irmã. Amen. (Elisete)
O que, porém, poucos crentes conhecem é a evolução do seu venerando ícone, bonacheirão e pródigo em deslizar  a mão nos  macios pelos do seu lulu. É que a génese da devoção ao Santo Abade tem uma narrativa estranha e diametralmente oposta aos rituais com que hoje  nos sensibilizamos tanto. A sublimação das nossas crenças tem destes contornos – e o hagiológio cristão medieval  mostra-os amplamente – ao ponto de inverter por completo a versão original e traduzi-la numa veste contrária, mas edificante.
É o caso de Santo Antão.  Filho de gente nobre, tendo herdado lautas riquezas, conheceu os prazeres mundanos, mas um dia decidiu distribuí-las pelos pobres e refugiou-se no deserto, onde passou o resto da sua vida, em  mortificações, penitências e orações, sempre espicaçado por remorsos antigos, que lhe devoravam a paz e o sono. Sentia  o demo a rondá-lo, dia e noite, e ao qual se opunha veementemente  com o antídoto dos cilícios e místicas asceses. Mas o demónio, cada vez que era derrotado, redobrava os ataques. ”Enviava-lhe animais selvagens enquanto estava em vigílias nocturnas e em plena noite todas as hienas no deserto saíam das tocas e rodeavam-no. Tendo-o no centro abriam as fauces e ameaçavam mordê-lo.
Sucintamente, são estas as narrativas primitivas.  E  as imagens por que é representado o nosso Santo Abade estão configuradas nos animais que traz na fímbria do velho hábito de eremita. Portanto, os animais foram para Santo Antão as visões disformes, macabras, dos demónios, seus perseguidores.
Mas o milagre da crença popular  e a criatividade imaginativa dos devotos, ao longo dos séculos, trocaram as bolas ao “demónio”. De tal forma que os animais, antes perturbadores e furibundos, transformaram-se em protegidos e amados de Santo Antão. A força da tradição e a sua metamorfose  ao serviço da sublimação das tendências. Curioso e simpático o rio que transporta os sedimentos de outrora!
 E assim se transformou o zoo numa imensa catedral.  Nesta deriva positiva ( e  descontadas certas ridículas superstições como as que acima citei) hoje  é sacralizada a natureza, é exaltada a ecologia, é respeitado o código dos direitos  dos animais, companheiros de viagem em toda a história do homem sobre a terra.

17.Jan.17
Martins Júnior
  

domingo, 15 de janeiro de 2017

REQUERIMENTO LIMINARMENTE INDEFERIDO: Pedido ou Provocação?


É este um apontamento que me perseguiu em toda a quadra natalícia. E porque é hoje,  dia do Santo Amaro,  que na tradição madeirense se queimam os últimos cartuxos das estrelinhas saltitantes, ainda chego a tempo de deixar cair no chão da “lapinha” esta reflexão, tão estranha quanto evidente.
Coincidentemente, duas notícias, ainda frescas da véspera, vieram chamar-me à liça. A primeira tem a ver com o elucidativo trabalho que uma ilustre  investigadora da nossa Universidade acaba de dar a conhecer  sobre o bullying nas escolas da RAM, concluindo que 10% dos alunos são vítimas desse tipo de violência. O segundo caso, mais trágico e repugnante, foi o assassinato, a sangue frio,  de um homem na pacata freguesia do Monte, sob o olhar protector da Santa Padroeira. Para bálsamo dos crentes, ouviu-se a petição: “Que Nossa Senhora da Paz que tem aqui o seu monumento conceda a paz aos residentes nesta paróquia”.
Paz…Paz… Paz… e outra vez Paz! Foi o refrão -  saudação e  oração - que mais encheu os dias, as horas, os cerimoniais litúrgicos do Natal e Ano Novo. “Os anjos anunciam e trazem a Paz… Os profetas garantem a Paz à chegada do Messias… Ele é o Príncipe da Paz”. E clamorosas voam em reboada  instintivas preces: “Senhor dá-nos a Paz, Virgem dá-nos a Paz”!
É a estas frases desarticuladas que eu chamo Requerimento liminarmente indeferido. Por mais estranho que nos pareça,  tal pedido não passa de um falacioso atestado de inimputabilidade, em que toda a responsabilidade pessoal ou colectiva é atrevidamente descartada. Atira-se para a estratosfera da Divindade aquilo que é trabalho exclusivamente nosso. Respeito todas as versões ou opiniões divergentes daquela que, após ponderada reflexão,  tentarei apresentar.
Começo, desde logo, por formular a mais comezinha das perguntas: Qual é o pai e qual é a mãe que não desejam que todos os filhos se entendam e vivam pacificamente como irmãos?... Nenhum, seguramente. Mas esse desiderato só é possível se os descendentes, os herdeiros, fizerem por isso. Podem os progenitores impetrar aos filhos que vivam em paz, mas de nada servirão o seu apelo, a sua oração, talvez as suas lágrimas, se neles persistir uma reiterada recusa de entendimento mútuo.
Em linguagem antropomórfica, apliquemos esta evidência à relação entre o homem e Deus, entre o  mundo e o Supremo Ordenador do Universo. Depressa chegaremos à conclusão de que é Deus quem nos pede insistentemente:  “Pela vossa saúde, entendam-se. Pela felicidade vossa e minha, façam o favor de construir a Paz”. Essa é a  nossa tarefa. De mais ninguém.  Só por requintada hipocrisia e por oportunista desvio psíquico de transfert se endossa para o invisível aquilo que só nós, visivelmente, podemos elaborar. Daqui, não será difícil admitir que Deus – porque respeita a liberdade do ser humano – reconhece-se impotente perante os conflitos pessoais, a violência doméstica, as cenas de bullying, as guerras entre as religiões e entre as nações. Mantenho a convicção de que certas preces e práticas litúrgicas mais não são que uma fuga à responsabilidade pessoal e colectiva.
Porque a Paz não se dá de graça. Não é um pó mágico a custo zero. A Paz paga-se. E a factura chama-se mentalidade, educação, sensibilidade vicinal, visibilidade social, mundividência do presente e do futuro. E sobretudo, renúncia: aos megalómanos complexos de superioridade, à avidez de mesquinhos interesses, ao gesto tribal, à palavra desbragada, selvagem. Perguntem ao novo inquilino da Casa Branca se será capaz de abandonar, por imperativo religioso,  essa asquerosa boçalidade de reeditar, na fronteira com o México, o vergonhoso Muro da vergonha, abatido, em 1989, pelo braço do Homem e  não pelas asas dos  anjos de Belém.
A prosseguir esta corajosa incursão, seria um filão transbordante de considerandos dinamizadores.  Fico-me por aqui, esperando ter contribuído para o desanuviamento ideológico com que a inércia comodista, disfarçada de crença e tradição, nos tem amputado a autonomia de pensamento e acção, conducente à nossa quota de responsabilização pelo mundo em que vivemos. Cada cidadão é um monumento da Paz.
“Natal é sempre que o Homem quiser”.

15.Jan.17

Martins Júnior        

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

OS PORQUÊS?... Episódios marcantes de uma história, ainda por contar


Tendo acompanhado os passos da última viagem de Mário Soares e sendo-lhe tributados  os dias ímpares deste SENSO &CONSENSO, é  caso para indagar sobre  os motivos de tão intensa   dedicação. Todavia, mais do que as palavras e emoções descritas durante a semana inteira, importa chamar à colação os factos mais determinantes neste processo de homenagem. Que interesses e motivações estarão na sua génese?
É nos meandros da memória que vamos encontrá-los. Além da indesmentível grandeza de estadista, nacional e internacionalmente reconhecida e justamente alcandorada, emergem atitudes que, circunscritas embora a territórios insulares de menores dimensões, fazem crescer a estatura cívica e humanista de Mário Soares. É da nossa ilha que estou a falar.
Nenhum outro governante foi tão maltratado pelos madeirenses (representados no governo regional) como o foi  Mário Soares. Os corifeus do regime ditatorial PPD  da Madeira instrumentalizaram, por mais de uma vez, um punhado de arruaceiros “jagunços” para insultar o Primeiro-Ministro, chegando ao ponto de  agredi-lo com objectos humilhantes, atirados de longe como nos pré-históricos cortejos do carnaval madeirense. No entanto, nenhum outro governante, nem os do PPD, foi tão generoso e democrático para com a Região.  Lembro-me da consulta que Mário Soares fez a todos as forças políticas, recebendo-as, uma a  uma,  e aceitando sugestões para o  Programa do seu Governo. Aí manifestou-nos o seu interesse “no prosseguimento do diálogo entre a UDP e o próprio governo”. Isto em 1976. Lembro-me também das volumosas transferências financeiras enviadas para a Região  nos governos de Soares, sem nunca exigir contrapartidas, como as que fez o Primeiro Ministro Cavaco Silva, em 1986, de que resultou o leonino contrato  “Protocolo de Reequilíbrio Financeiro”, que deixou as Câmaras na penúria. E, mais tarde, foi ainda um Chefe do Governo PS, António Guterres, que em 1999  perdoou a dívida da Madeira, no montante de 110 milhões de contos (550 milhões de euros).
Compulsivos argumentos factuais para que os madeirenses estejam gratos a Mário Soares!
A título pessoal, a minha presença quase anónima nas exéquias do Fundador da Democracia em Portugal tornou-se um imperativo de emoção e gratidão. Recolho, entre tantos, apenas três eloquentes momentos, desconhecidos da opinião pública. O primeiro e o segundo aconteceram, quer na Assembleia Regional,  quer na Câmara de Machico, estando, como independente, na ala da UDP e do PS, o que só por si revela a abrangência democrática de Mário Soares.
Celebrava-se com pompa e circunstância o dia da Autonomia, 1 de Julho de 1988, com sessão solene no Salão Nobre da Assembleia, presidida pelo então Presidente da República, Mário Soares, recheada ademais pelo colosso dos membros do Conselho das Comunidades Madeirenses, todos eles escolhidos a-dedo pelo governo regional.  No meu discurso foquei especificamente o despudor da relação Igreja-Governo, através do “Jornal da Madeira” que, com a cara eclesiástica, servia de exclusivo panfleto do PPD, a que ajuntei o testemunho que pessoalmente colhera entre os emigrantes, aquando das visitas que empreendi a Venezuela e Austrália. E fi-lo nos seguintes termos: “Este governo madeirense usa os emigrantes como arma de arremesso político, porque apenas favorece os barões da emigração e despreza o emigrante comum quando, na Madeira, precisa dos serviços da administração pública regional”. Os gritos, os apupos desmiolados transformaram aquele Salão Nobre numa selva enraivecida e tão tresloucada que me impediram de continuar. Passados alguns minutos de barafunda tribal, o já falecido  Dr. Nélio Mendonça, então presidente do Parlamento, repôs o silêncio no recinto, atitude que muito me surpreendeu, dado que a praxis ordinária era deixar correr o mar dos tubarões enquanto usava da palavra. Tempos depois, na audiência que me concedeu em Belém, Mário Soares desvendou o enigma, dizendo: “Perante a anarquia geral, enquanto o meu amigo falava, fiquei atónito e disse ao ouvido do presidente da Assembleia: ou o senhor põe  isto na ordem ou então levanto---me eu a fazê-lo”.  Fiquei esclarecido. E sentidamente reconhecido.
Noutra altura, era eu presidente da Câmara e, passando por Machico, avisou-me, em tom solidário, o Dr. Mário Soares, diante dos presentes. “Aguente-se, padre”!... Ele bem sabia o que teria de passar a única câmara da oposição na ilha da Madeira, face à prepotência da governação regional. Serviu-me de alento e coragem a  premonitória recomendação, cuja sonoridade ainda guardo bem viva e definida.
Em 10 de Junho de 1995, Dia de Portugal e das Comunidades, teve o Dr. Mário Soares a gentileza e a “ousadia” de atribuir-me as insígnias de comendador, um ofício que sempre abjurei, mas resolvi, enfim, aceitar, sabendo a simbologia cívica e  moral que tal gesto significava nessa crucial conjuntura. E fez questão de ser ele próprio a impor-me a condecoração na cidade do Porto. Caiu o Carmo, caiu a Trindade, caiu a Quinta Vigia e caiu, imaginem, o Paço Episcopal. Contra Mário Soares e contra mim. Basta ler o Jornal da Madeira da primeira quinzena de Junho. O mais original e que revela a servidão eclesiástica ao governo foi a homilia do bispo Teodoro Faria na Festa de Santo Amaro, logo seguida de queixa formal da diocese ao “Conselho das Ordens Honoríficas”, acusando Belém de “violar a Concordata entre Portugal e a Santa Sé, pelo facto de comunicar a dita nomeação ao contemplado, designando-o como  Reverendo Padre José Martins Júnior” . É um tratado de esquizofrenia “humano-divina” o que vem publicado no JM, de 15.VI.95. Vale a pena olhar a “beleza” daquele sacro linguado!... Hoje, ao reler essa enormidade, reconheço e afirmo, alto e bom som, aquilo que na altura o pudor não mo consentia dizer: A Igreja diocesana tem sido a barriga de aluguer do governo regional. Oxalá desista de sê-lo,  num futuro próximo. E definitivamente.
A Igreja, cordeirinho imolado no altar da Quinta Vigia, seguiu o “Voto de Protesto e Condenação” que o PPD/PSD aprovou contra a condecoração  no Parlamento Regional em 8 de Junho, revéspera do Dia de Portugal.  (Ler DN, 8.VI.95).
Entretanto, Mário Soares prosseguiu, seguro e sereno, a sua marcha, enquanto a caravana insular ficou no velho estaleiro do calhau roliço.
O quanto, quanto tinha eu para contar nesta nau onde me coube embarcar  no oceano da vida... Fico-me por aqui, transcrevendo em epigrafe a simpatia e a afectividade com que o  Dr. Mário Soares tratou este ilhéu, agora quase octogenário e que ficaram gravadas no Livro de Honra do Município de Machico em 1997.
Retribuo-lhe com os cravos vermelhos que carinhosamente deixei na sua tumba!

13.Jan.17
Martins Júnior



quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

"É A VOSSA HORA"!


Cada vida tem o seu pico de glória. E cada morte também.
Mas entre uma e outra estala, como lousa tumular,  a inexorável incógnita: “Desse brilho meteórico, o que é que ficou”?

Sic transit gloria mundi  –  era o ritual da sagração dos Papas: “Assim passa a gloria do mundo”, enquanto o cardeal ajudante incendiava uma trança de estopa branca sobre uma salva de ouro.

Rolou a pedra derradeira sobre o monumento encimado por três jactos luminosos traduzidos simplesmente em três palavras: “FAMÍLIA BARROSO SOARES”.
O Apartamento da “Rua João Soares”, ao Campo Grande, transladou-se para o jardim das memórias que tem por estranho título: “CEMITÉRIO DOS PRAZERES”.

Fechar-se-ão as páginas do  Livro dos Pesares, secar-se-ão os rios de tinta nas rotativas dos jornais, apagar-se-ão os holofotes dos emissores televisivos.

E de tudo, tudo,   que restará, enfim?...  O silêncio?... A pedra marmórea e fria?... As  rosas amarelas, as rosas e os cravos vermelhos  emurchecidos e mudos, como órfãos abandonados,  curtidos de saudade?...

Heróis, sábios, génios e artistas – cada pátria tem os seus. Acompanhando Mário Soares, seguiram o mesmo trilho Daniel Serrão, Zygmunt Baum, Akbar Hachémi  Rahsandjani,. E logo antes,  Leonard Cohen.

De que valeu a pena tê-los, se deles restou apenas  a memória, que um dia será longínqua e que “se esfuma como a brancura da espuma que morre na areia”? …

Mas valeu a pena!
Porque deles ficará para sempre o grito -  canto e  mandato:
“Sede vós  e fazei  dos vossos filhos – novos “Serrão”, novos “Zygmunt”, novos “Rafsandjani”, novos “Cohen”, novos “Soares”.
"Agora é a vossa Hora". 
A tua Hora!
Para tanto, basta que “ponhas tudo quanto és no mínimo que fizeres”!

11.Dez.17
Martins Júnior  


segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

VELÓRIO E VIGÍLIA


A multidão passa. E olha. Comenta.
E a multidão volta a passar e a olhar e a lamentar.
Eu entro. Não olho nem passo. Eu fico.  À escuta.
E mesmo cá de fora, fiquei lá dentro.
Sem passar e sem olhar. Só a ouvi-lo.
A minha câmara ardente
Arde de silêncio e de perpétua escuta.
E canto.

9.Jan.17
Martins Júnior

sábado, 7 de janeiro de 2017

CÂNTICO À VIDA!


          Hoje, ficarei de pé, só a ouvi-lo!
          Como há 25 anos.  Ele e eu, sempre de pé!
          E isso me basta. Porque é isso que ele espera.

            07.Jan.17

           Martins Júnior

quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

“NA BÉSPA DUI REISES” – Uma certa anatomia dos natais


Se  acontecimentos  há em que o mito se confunde com a realidade, é na composição do Natal  que se consuma essa estranha e romântica simbiose. Com efeito, de tudo quanto enternece e anima a sensibilidade popular, nada é seguro, sob a perspectiva histórica. A começar pela data: o 25 de Dezembro não passa de mera convenção, a partir do século IV,  plagiada das Saturnalia, as festas romanas dedicadas ao deus Sol, cujo pico coincidia com o dia mais longo do astro-rei, requalificando-o os cristãos com o nascimento daquele que foi designado como  “Sol Justitiae”, Cristo-o Sol da Justiça. Não é por acaso que nas igrejas orientais, o Natal é celebrado em 6 de Janeiro. Depois, o requinte meteorológico de “uma noite fria”, quando, segundo alguns exegetas, eram as noites cálidas a característica original daqueles territórios.  Pelo meio, a vaca e o burrinho, que o próprio Ratzinger, enquanto Papa Bento XVI, se encarregou de neutralizar no seu livro “JESUS”, afirmando que do registo evangélico não consta nenhum vestígio de gado  bovino ou asinino. Mais enigmático é o “exército de anjos celestes” – aberrante contradição – logo um “exército” para saudar e apadrinhar o “Príncipe da Paz”!!!
Mas é com isto que se pinta o cenário do Natal. Tirem do presépio estes adereços e verão que os turistas “voyeuristas” (nós e os outros) passarão pela “lapinha” como gato sobre brasas, dirão mesmo “que graça tem aquilo”?... Pois, “Aquilo” é o que mais importa. “Aquilo” é a força nuclear que agitou a sociedade de então e tentou mobilizar as civilizações  futuras! “Aquilo” , o Invisível, que poucos procuram ver.
Curiosa é a tradição dos Reis, nomenclatura que os evangelistas nunca mencionam, mas tão-só os “Magos, vindos do Oriente”. Cientistas ou astrónomos ou astrólogos, os Magos terão sido  conduzidos por uma estrela, que alguns investigadores identificam como um cometa e a tradição pintou-os da cor das três “raças” primárias então conhecidas, branco, preto e amarelo, simbolizando a adesão universal à mensagem de Belém. Esta tradição só começou a sistematizar-se culturalmente a partir do século VIII. Neste “item”, não será despiciendo assinalar a contradição cronológica entre a colagem dos Magos ao estábulo onde nascera o Menino e a vingança de Herodes, “rei” de Jerusalém quando se viu ludibriado pelos próprios Magos que não voltaram ao palácio para dar informes sobre a exacta localização do “recém-nascido rei dos judeus”. Herodes mandou matar todas as crianças “de dois anos para baixo”, significando com isto que os Magos só terão encontrado Jesus dois anos depois de nascer. E encontraram-no não no estábulo mas “em sua casa”. (Mt.-2,11).
A todo este design romântico e fluido chega o poeta e místico Francisco de Assis , que em 1223 (séc.XIII) cria e  inaugura, pela primeira vez, na cidade italiana de Créccio, a simulação de um presépio, a qual se tem perpetuado até aos nossos dias, enriquecida pela fértil imaginação popular, com adereços miniaturais de toda a espécie de motivos autóctones, desde o coreto e  a banda de música, as vindimas e as ceifas, a matança do porquinho, o lenhador autómato a rachar os troncos, a igrejinha, as levadas, enfim, a vida anímica de um povo.
O cortejo real dos Magos caiu na simpatia das classes “superiores”, nomeadamente da Igreja e do Estado. A primeira promoveu o acontecimento, outorgando-se a si mesma o privilégio da hegemonia do poder espiritual sobre o temporal - os reis curvam-se diante do Menino, como seus fiéis vassalos – e mais tarde acumulou os dois poderes na cátedra da Roma Pontifícia. Os Estados, por seu turno, reclamam para os seus titulares o estatuto de paridade com os altos dignitários eclesiásticos, por terem prestado a homenagem iniciática  ao Fundador da Igreja e, daí, à sua propagação no mundo de então. Cada instituição, por labirintos exclusivos e até imperceptíveis, tenta canalizar ao seu domínio o ouro e o incenso da romagem dos “Três Reis do Oriente”, daí tirando os  melhores proventos.  A este propósito cai-me debaixo dos olhos a reportagem do El Mundo, onde se lê: “O Governo de Carles Puigdemont convocou as entidades organizadores da tradicional Cavalgada dos Reis Magos  de Vic (Barcelona), com transmissão na TV3, para transformá-la numa mega-manifestação política a favor da independência da Catalunha”.  As próprias crianças, às centenas, transportarão amanhã bandeirinhas catalãs pelas ruas de Vic, tendo-se esgotado todo o “stock” nas lojas da cidade. Porque é a noite e o dia dos Reis. E eu acrescento, dos “reisinhos”,  de cada “reizinho” do seu burgo ou do seu bairro, do seu partido, da sua capoeira.
Por isso, mais do que as grandes encenações de palco, prefiro nesta noite a alegria pura, descontraída e feliz de cada povo, de cada sítio, de cada família, com os cantares tradicionais, os votos alicorados de um novo ano, as “favas” do bolo-rei, os rajões e as concertinas,  tudo envolto  num beijo de saúde e num abraço de libertação. Porque, hoje, Rei é o Povo!

05.Jan.16

      Martins Júnior