sexta-feira, 31 de março de 2017

ZECA AFONSO E EDMUNDO BETTENCOURT NA BAÍA DA CALHETA



Nada mais belo que atravessar a ponte nocturna de Março-Abril em terras da Calheta! Chamemos-lhe a ponte do amor e da saudade, iluminada pela força astral que nos uniu a todos : José Afonso.
Um grupo de amigos do Zeca - companheiros  na ‘Lusa Atenas’ - juntaram-se e, tocados pelo espinho doce da saudade, fizeram um pacto histórico e juraram: “Passados trinta anos da sua morte, temos de pagar-lhe condigno tributo”.  António Macedo, José Júlio, Luís Filipe, João Dionísio (dispensam o DR) mobilizaram-se nesta nobre cruzada, pediram o consenso da associação “Calheta-Costa do Sol”, do “Grupo Madeirense Fados de Coimbra” e o apoio logístico das entidades e, surpresa de sonho, abriram-se as ribaltas da “Casa das Mudas”. E o sortilégio aconteceu!
         Tecido de canto e poesia, o encontro atingiu o clímax com o esvoaçar romântico das guitarras coimbrãs, o fado clássico, as baladas, os textos e canções de intervenção, nas vozes de Luís Filipe, António Macedo, Jorge Abreu, Carlos Bettencout. Subimos todos ao Penedo da Saudade, descemos ao Choupal, ouvimos o repique da “velha cabra” da Torre da  Faculdade, enfim, regressaram ‘os Amores do Estudante’, vieram ‘O  Cavaleiro e o Anjo’ e nem faltaram ‘Os vampiros, que comem tudo e não deixam nada”. Foi um momento de catarse e libertação poder ouvir e acompanhar, de pleno direito, mensagens e canções nascidas nos subterrâneos da ditadura  cultural e política. Hoje, felizmente - sublinhava o José Júlio -  já ninguém nos virá prender.

         Noutro âmbito do encontro, sugiram os testemunhos vivos de quem conheceu pessoalmente o Zeca, inclusive da minha parte, evocando episódios marcantes da sua passagem pela Madeira, em 1976, e da repressão a que foi sujeito, mesmo após o ’25 de Abril’. Incrível, mas verídico!
         Uma nota singular marcou este tributo: a coincidência de realizar-se na Calheta. Foi desta freguesia e concelho que saiu o grande compositor e intérprete  do Fado de Coimbra, Edmundo Bettencourt,  cujas criações José Afonso, mais tarde, viria a reinterpretar na sua voz inconfundível. Enfim, duas almas gémeas e duas praias distantes – Aveiro e Calheta – entrelaçadas nesta noite memorável!
         Tudo muito terno e mobilizador, impecavelmente sentido e interiorizado pelo público que encheu o auditório das “Mudas”!
         A saudação que a AJA (Associação José Afonso) endereçou desde o Continente para ser lida no final, coroou este inestimável monumento de pura fruição espiritual, artística e social. À mesma hora, realizava-se em Santarém o mesmo evento com memórias e canções, por outros intervenientes, irmanados no espírito de  idêntica mensagem.

         A Fala do Zeca, na lousa nº 1606 do cemitério de Setúbal, em homenagem ao 30º aniversário da sua morte, poema já lido em Machico em 23 de Fevereiro de 2017, foi como que a trombeta de campanha mobilizando-nos a todos para a mesma causa. “Eu não morri, porque vivo em ti”.
         Na ponte pênsil de 31 de Março para 1 de Abril de 2017, prolongou-se o abraço de gerações que, de pé e em espontânea  apoteose, cantaram a alvorada de Portugal/74, enchendo toda a sala com o intemporal Grândola, Vila Morena.
         Valeu a pena!

31.Mar-01.Abr.2017
         Martins Júnior
        

  

quarta-feira, 29 de março de 2017

DE DEMOLIDOR DE PONTES A DESTRUIDOR DE IDENTIDADES


É um ‘não-assunto’ que hoje vos trago. E sem vontade. Precisamente por isso: por ser um ‘não-assunto’. Mas já que se mexeu nos alicerces de Portugal e se empurrou meia ilha para o ‘não-assunto’, eis-me aqui a transformá-lo em assunto do dia. Aliás, já me dei conta do seu parto deleitoso na acta-rábula que o SENSO&CONSENSO publicou em 03/01/17 , para cuja leitura convido os meus amigos.
Dois sinais de trânsito quero colocar à entrada. Primeiro: viva o maior jogador do mundo do futebol, nosso conterrâneo. Segundo: o ‘corajoso’ inquilino da Quinta pode pintar a casa e o roseiral  da cor do craque, pode tatuar-se  da cabeça aos pés do mesmo jeito. Que até fica jeitoso. Mas o que não pode é carimbar assim a ilha secular e obrigar-nos todos à mesma tatuagem, concebida numa noite luarenta e fumacenta na inauguração de um solar do craque.
Quanto ao mais, poucas palavras, mas as suficientes.
A Madeira encolheu e o portador da Taça perdeu. O que antes abarcava um enorme colectivo agora espremeu-se num busto irrisório. Para apresentar a Madeira e reduzi-la a um  par de chuteiras - é preciso ter tanto de ‘coragem’  quanta a miopia de senso. 
Por sua vez, o craque perdeu. E perdeu, porque dele só se ouviam aplausos, vivas, “não há outro maior que o homem das bolas de ouro”. E agora, estragaram-lhe o nome,  obrigaram-no a trepar abusivamente  um pódio que não era o seu, espetaram-lhe a cara no beiral do aeroporto, onde fica ali suspenso, sumidinho. “Cada macaco no seu galho” – comentava-se – e o dele não era aquele. E ele sem culpa nenhuma. E quando a ‘oposição’  dos ventos cruzados chutar para fora os aviões que querem entrar, lá estarão as femininas vozes dos altifalantes moendo a paciência: CR fechado, CR aberto, CR cancelado e outros mimos. Podiam poupá-lo a esta tortura.
CR7 é grande – com ou sem a Madeira.
E a Madeira é maior – com ou sem CR7.
São de um raro preciosismo os novos nossos governantes. É tal a sua originalidade que não fazem o que o Povo pede e tão depressa fazem o que o Povo não pede. Pergunta-se: “Foi você que pediu um apêndice no pescoço do aeroporto”?... Porque o que lá está não passa de um remendo mal deitado no colarinho da aerogare.  Ao menos por coerência, senhores, fizessem  algo de imponente e vistoso, como quadra ao “homenageado à força”. Enfim, coisa de saloio… E abalam-se as estruturas do país – Presidente e Primeiro Ministro – para um improvisado e teimoso carnavalinho de feira, a que não faltou um bodo aos pobres espectadores, sobretudo criancinhas às centenas, fora das aulas, em feriado também obrigatório.
De demolidor de pontes a destruidor de identidades –   titulei este ‘não-assunto’, da autoria do novo chefe da Quinta. Deixe a Madeira em paz no frontispício do nosso pórtico primeiro. Ela é a nossa identidade genesíaca. Ela é maior e mais bela que qualquer um dos seus filhos! Quem sabe se, pelo mundo inteiro, virão reis do oriente e do ocidente, coreanos e lapões, em busca da “ilha CR7” e, por engano, ao aterrar, descobrirem que é a Madeira?!...
Não chega. Mas fica-se por aqui. Porque o “histórico feito” não passa de um vulgar ‘não-assunto’.  Só faltou ensaiar aos meninos (graúdos e miúdos) o hino da Mocidade Portuguesa dos velhos tempos em que o mudaram o “Estádio dos Barreiros” para “Estádio Marcelo Caetano”:
“Lá vamos cantando e rindo
Levados, levados, sim”
Levados, mas não todos. Eu também não.
         E quem pensar de outra forma tem também o seu direito.

  29Mar17
Martins Júnior
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segunda-feira, 27 de março de 2017

UM PROCESSO COM MILHÕES DE VOLUMES E SEM FIM À VISTA


       Hoje sei que  vou em contramão. Vou para a ilha. Para uma outra ilha, indiferente à paranóia ululante dos’ circos  quadrangulares’  onde é rainha uma esfera de couro. Quem for comigo tomará conta de um processo milenar que continua na barra do tempo.
Ele era um operário trintão, tisnado do sal e do sol  lá das bandas orientais. De palavra clara e olhares contraditórios, ora ternos como os de uma criança,  ora faiscantes como brasa, , arrastava as multidões. Chamavam-lhe até “O Sedutor”. Com ele, os mares abriam-se à passagem e os penhascos do medo sucumbiam de espanto. E tudo era caminho chão, tudo manhã de aventura nos corações insofridos. O povo adorava o seu líder operário, que dava voz e força a quem as não tinha.
Mas não era esse o seu tempo. A ditadura dos homens devorava ossos e cabeças, sobretudo dos que ousassem afrontar a lei, o império, o templo. E foi decretado: “Quem disser bem desse homem é preso e posto fora do povoado” .
Ora, um dia o ‘sedutor das multidões’ encontra um cego de nascença e abre-lhe os olhos. E começou a ver. Mas antes que a notícia corresse, era preciso afogá-la na fonte,  na própria boca do feliz contemplado, agora vidente. É arrastado clandestinamente ao tribunal do poder absoluto e apertado com uma lista de quesitos, tudo para convencê-lo a dizer que o suposto  benfeitor era um falsário, um impostor, um criminoso público.. E, “termos em que” não podia ser o autor daquela cura mágica. E se persistisse nesse  seu ‘ embuste’ seria expulso do povoado. Tudo  em vão. O rapaz só contava os factos. E daí não saía.
Já que as ameaças não  resultaram, os pais são intimados ao tribunal para jurar que  aquele não era o seu filho cego e que, ao menos, pusessem em causa o acontecido. “Não sabemos como aconteceu, perguntai ao próprio que ele já tem idade de responder”. Era asfixiante, inelutável, tenebroso,  o medo de reconhecer a verdade dos factos e atribuir o feito ao seu legítimo autor. Porque pairava no ar a inexorável  guilhotina  do momento: “Será réu quem disser bem desse revolucionário impostor”.
Novo interrogatório, pidesco e torturante, ao cego, agora vidente, sujeito ao massacre de lavagem de cérebro para negar a evidência. “Aos costumes, disse nada” e manteve a palavra dada.  À pergunta do réu – será que quereis ser adeptos do homem que me curou? – saltaram os magistrados  de toga,  vociferaram os ministros do templo e caíram como lava os anátemas, as pragas, todas as maldições em cima do pobre cego. Até que o expulsaram do local, enfim,  proscrito e corrido  do próprio templo.
O Templo era, então, mais forte que o Trono. Saiu, pois,  o pobre mendigo condenado no tribunal de  Deus e no Juízo dos homens. Mas a sentença capital tinha outro destinatário, era outro o réu procurado, “Vivo ou Morto”. Acabaram por achá-lo, denunciado por um pérfido  delator, suposto amigo seu . Chutado da terra, assassinado a céu aberto, como um bicho repelente. Ele, o revolucionário pacífico, solidário com os conterrâneos e vizinhos, o construtor de pontes, o Sedutor das multidões!
_________________________
 Foi isto que os Autos bíblicos apresentaram ontem oficialmente  a todo o mundo, em João.9, 1-41. Muitas foram as interpretações, umas místicas, outras metafóricas, outras poéticas e sociais.
Mas a rudeza dos factos não suporta mistificações. É nua e crua. O poder totalitário e o furacão do obscurantismo, quando revestidos da aura religiosa, não olham a meios para chegar aos fins, sempre de um requinte maquiavélico: calar ou manipular a notícia, arregimentar a Censura, distorcer a realidade, formatar e deformar quem se lhes opõe, vale tudo – marketing, palavras de ordem, ameaças, suborno, corrupção – vale tudo até à exaustão. E a exaustão  (antes eram as arenas selváticas, a fogueira da Inquisição, os fornos crematórios) ) hoje é a liquidação fria, o ostracismo social, o assassinato e depois…”quem é o senhor que se  segue?”…talvez um sindicalista, uma mulher activista, um professor, um profeta dos tempos presentes e futuros… e, quem sabe, um Francisco Papa!  
Porque o “Processo de Jesus”  não tem fim à vista, enquanto o mundo não acordar. Enquanto nós, também…

27.Mar.17
Martins Júnior


sábado, 25 de março de 2017

RENASCER AOS 60 ANOS: ALVÍSSARAS, VELHA E NOVA EUROPA!


Não podia fechar este 25 de Março europeu, prenúncio do 25 de Abril português, sem entronizá-lo dentro de mim. Porque eu também sou Europa. Queira ou não queira, ele mexe comigo. Mais que a Hora do Planeta, mais que todas as velas acesas no mega-apagão do mundo, a Criança-Infanta nascida em Roma no ano da graça de 1957 cresceu, fez-se jovem mãe, gerou no seu seio quase trinta rebentos de esperança, entrelaçando num mesmo abraço povos e línguas do norte ao sul, do nascente ao poente deste velho continente. Venceram-se barreiras atávicas de nacionalismos despóticos, abriram-se passagens de nível entre estados através do ‘espaço Shengen´, de uma família “a seis” evoluiu-se para a grande roda dos “vinte e sete” que fizeram crescer um aglomerado de 185 milhões para um total abrangente de 510 milhões de cidadãos-irmãos do mesmo tronco comum. De assinalar que o produto interno per capita subiu de 15.000  para 52.000 euros, segundo as estatísticas oficiais.
É verdade que nem tudo foi um mar de rosas. Por isso Charles Kupman, ex-assessor de Barack Obama, classificou esta comemoração como um “aniversário agridoce”. De  60 anos de progresso, é certo, sobrevieram 10  anos de crise, sobretudo desde 2007,  ao ponto de vermos proliferar o joio da desagregação iminente, a partir do mais recente  caso Brexit. Apesar de  nascida sob o firmamento da “Cidade Eterna”,  os sucessivos tutores têm-se desviado da matriz original impressa pelos seus progenitores. E de  um pacto de Europa Unida, foram-se degradando os seus genes, dando lugar a novos egoísmos centralizadores, a neo-nacionalismos exacerbados e à exploração do mais forte e mais rico sobre o mais fraco e mais pobre. Sempre o cancro insaciável do capitalismo, sobretudo o financeiro, a imperar, como outrora, num continente e num mundo que se previam igualitários e justos!... Neste parágrafo incluo uma outra vertente, a dos cidadãos – nós, os europeus – que deveríamos estar mais atentos e vigilantes nas decisões que, às ocultas, os presumíveis representantes nossos assumem  nos longínquos areópagos  ‘bruxelianos’ sem que deles tomemos consciência alguma. Refiro-me também, neste item, à aplicação dos chamados fundos comunitários que ficam quase sempre nas mãos dos mesmos comparsas do poder político de cada país-membro ou de cada região, com prejuízo do trabalhador anónimo, do camponês, do pescador, do funcionário público. Aqui, tem de haver quem desperte a vigilância popular, para que não se nos atribuam os baldões que o ‘super-tesoureiro’ da Eurogrupo, o holandês Dijsselbloem,  lançou contra os países do sul.
Não obstante este decénio de obstruções e perigos que, à semelhança de uma espada de Dâmocles, pairam sobre a Europa, há um recanto de ponderação e de conforto onde nos podemos abrigar e que se pode compor na seguinte reflexão: Só abraçamos decididamente um bem quando o comparamos com o mal onde vivíamos antes. E só o apreciaremos o suficiente  quando e se, algum dia, o viermos a perder. Aquela amálgama de territórios, separados como hordas ribais, de  ante-1945, essa Europa sangrenta e fratricida, NUNCA MAIS! Basta lembrar as duas grandes guerras (1914-1918 e 1939-1945) as quais  foram geradas dentro da própria Europa, com maior responsabilidade para o conflito franco-alemão. Adeus, guerras dos 10, dos 30, dos 100 anos! Saiam dos sepulcros os milhares e milhões de vítimas inocentes e bradem aos  eventuais povos delirantes,  desejosos de sangue!
Foi belo e comovente aos olhos de quem se sente tripulante destoutra “jangada de pedra” que é a Europa ver os novos timoneiros do Velho Continente -  herdeiros de Jean Monnet, Konrad Adenauer, Jacques Delors – voltarem  ao berço onde nasceu este sonho de uma Europa Unida, o Tratado de Roma! A coroar a Grande  Efeméride “agridoce” surge algo de novo: Francisco Papa, não tanto como o propagandista de uma Igreja, mas como intemerato e apaixonado bandeirante da Paz e da Fraternidade na Europa e no Mundo que, na sua exposição, apontou as pistas do futuro: Sarar as feridas do percurso e Marchar sempre em frente. Mesmo sabendo que o braço de ferro do capitalismo  financeiro não desiste de esganar os mais fracos, opúnhamos  a força maior do exército pacífico  de todos nós, participantes e construtores da enorme Família Europeia.  
A estes quatro parágrafos que, como o trevo das quatro folhas da sorte e da felicidade,  ofereço no 60º aniversário, junto mais uma  cereja  em cima do bolo – esta colhida no cerejal da minha crença bíblica:  o dia 25 de Março, no calendário litúrgico, celebra a Anunciação daquele que mais tarde surgiria como o Messias Libertador  da Humanidade. O voto que faço é que  o documento hoje assinado e reconfirmado pelos “27” em Roma  signifique o arcanjo anunciante de uma Europa Melhor  e de um outro Mundo Novo!

   25.Mar.17

Martins Júnior

quinta-feira, 23 de março de 2017

PARA ONDE SE HÁ-DE FUGIR?...


Para quem viveu o sobressalto, todo o dia  e a toda a hora, da guerrilha colonial por terras de África , não pode ficar quieto perante o que se passa nas principais cidades europeias. Circulando pelas ‘picadas’ da imensa floresta africana, sempre vigilantes ao menor estalido das árvores seculares e com o coração aos tombos, mais estremecentes que as molas do velho ‘unimog’ que pisava um terreno minado, o sonho que nos animava era chegar àquele dia, marcado ansiosamente no calendário da caserna,  para regressarmos à ‘metrópole’ e, enfim, dormir em paz na cidade ou na aldeia da nossa pertença.  Mas o que nunca suspeitámos acontecer depara-se-nos agora no asfalto da nossas avenidas e parques de lazer, dentro da nossa própria casa: a guerrilha urbana. Voltámos às ‘picadas’ da selva em plenas praças civilizadas; os autocarros, os trens e os peões anónimos pisam  crateras  assassinas e petardos  prontos a detonar. Nem escapam as muralhas outrora inabaláveis nem os baluartes onde se fazem as leis  que seguram as nações, como acaba de acontecer no Parlamento britânico, marco primeiro das democracias europeias
         E surge a grande, angustiada incógnita: Para onde se há-de  fugir?... Quem nos defende, quem nos segura?.. Nem nos subterrâneos do metro nem no alto das montanhas, nem nas asas do avião!
         Desde 2011, um pantanal encharcado em sangue - esta Europa, libertada em 1945, igualitária em 1948 pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e reunificada em 1957 pelo Tratado de Roma!  Proporcionalmente mais vitimizada que Portugal nas guerras de África: 2004,  metro de Madrid, 191 mortos e 2000 feridos.  2005, metro de Londres, 56 mortos.  2011, num acampamento de Utoya, 68 mortos a tiro. No mesmo dia, em Oslo, ataque à bomba, 8 mortos. Janeiro 2015, Paris, semanário ‘Charlie Hebdo’, 12 mortos e 12 feridos. Novembro 2015, Paris, ‘Bataclan’,137 mortos. Março 2016, Bruxelas, 35 mortos. Junho 2016, Leeds, assassinada a deputada Jo Cox.Julho. 2016, Nice, 87 mortos, centenas de feridos. Dezembro 2016, mercado de Berlim, 12 mortos, 50 feridos. O ataque de anteontem em Londres, junto ao Parlamento, matou 5 pessoas  e abalou as estruturas de séculos de regime democrático.
         Quer premeditados nos ‘bunckers’  terroristas, quer individualizados pelos chamados ‘lobos solitários’,  assaltos destes o que pretendem é tornar  a nossa Europa num local inabitável. Quanto se possa escrever sobre este cemitério de inocentes, já foi dito. No entanto, não faltaremos à verdade histórica se constatarmos que todo este plano infernal recrudesceu a partir do tresloucado ataque de Bush ao Iraque, em 2003. Recuando no tempo, verificamos também que foram os países europeus, de alto a baixo, que colonizaram os territórios enfeudados ao Corão, daí brotando uma onda, insanável até hoje, de invasões mútuas que levaram os muçulmanos a ocupar e dominar importantes faixas do mundo europeu.
Não se diga, porém, que o móbil deste arremesso cobarde e assassino é o fundamentalismo religioso de qualquer das partes. Trata-se de ‘negócio’ de assalto às ‘torres’ do capital, sem escrúpulos. Longe vão os tempos da guerrilha armada entre as religiões. A matriz religiosa não passa de insaciável  burka encapotada do domínio e da ganância capitalistas.
Depois vêm as fraudulentas lamúrias de um Trump ou de um Erdogan e outros que tais, que afrontam a paz entre os povos com muros tribais e orçamentos escandalosos para abater imigrantes indiscriminadamente. Não será nas próximas gerações que se hão-de cumprir os desígnios inatos do ser humano em sociedade. Só uma longa e árdua estrada da educação permitirá alcançar  o  bíblico Shalom Adonai  de uma paz duradoura. Leis, parlamentos, governos, tecnologias, famílias, universidades, igrejas, povo – se falhar um só destes denominadores fulcrais está o planeta vulcanizado e nós todos moribundos  de pavor. Onde acharemos um esconderijo que nos garanta segurança e mútuo conforto?
Em jeito de rodapé de página, não consigo esquecer que os madeirenses viveram em sobressalto de guerrilha urbana  quando, na década de 70, o movimento bombista ‘Flama’, cobardemente, foi a mão criminosa que na clandestinidade  abateu pessoas e bens neste minúsculo arquipélago. Com a vigilância e o crescimento civilizacional do povo madeirense e das suas instituições, o jihadismo ilhéu afogou-se para sempre  em mares desconhecidos.
É o que se pretende para o  imenso  arquipélago do nosso planeta!  

23.Mar.17
Martins Júnior


terça-feira, 21 de março de 2017

TODO O DIA É POESIA


Não tem palácio ou tenda
Nem templo ou balcão
Onde se a compre ou se a venda
Dá-se de graça a quem passa
No chão na estrela na praça

Olhos do poema são os teus olhos
E é o teu
O coração de onde todo o poema nasceu

A cor do sol é a cor
Com que o pintas
E não há verde no mundo
Sem que o cries e sintas
Vestir-te por inteiro
Da cabeça aos pés
Nem acharás verso nem rima
Senão escritos em cima
Do livro que tu és

Se as pautas que lês
Só deitam notas sonantes do mercado
Jamais entenderás o canto alado
Que te procura e não vês

Só ao amador
Se lhe descobre a cantiga de amor

Não esperes poesia
Acorda-a dentro de ti
Transporta-a para onde fores
E onde quer que chegares
Ela dirá: Estou aqui

Por isso a levada
Que passa na minha terra lavrada
É mais azul que o Danúbio
E é mais ouro que o Douro

Império de Midas
As tuas mãos doloridas
Tocarão a terra o charco ou o longínquo mar
E aí estará  um poeta a cantar

21.Mar.17

Martins Júnior

domingo, 19 de março de 2017

CANTO BREVE PARA UM GRANDE DIA!


A julgar pelas sentenças periféricas que correm de boca em boca, podemos decidir que, hoje,  o forte torna-se  fraco. No dicionário da gíria, costuma  dizer-se que só aos mais frágeis  se dedica e  institucionaliza o seu “Dia Mundial”. E assim é que conhecemos o Dia da Mulher, o Dia da Mãe, o Dia da Criança, o Dia do Doente de Alzheimer, do Diabético, dos Refugiado e outros afins, todos os que se situam no acampamento das dependências  primárias. Para complemento assertivo, até espalhamos aos quatro ventos que não há o Dia do Homem. Porque ele é o forte, o dominador, o herói. Mas chega o 19 de Março e a excepção impõe-se: Hoje é o Dia do Pai, universalmente difundido, muito embora em datas diferentes. Seja qual a sua origem – Elmesu da Babilónia há 4000 anos ou  o Livro judaico do Ben-Sirá ou ainda a efeméride litúrgica  de São José – o Dia do Pai, ínsito desde sempre no subconsciente humano, talvez encontre a sua genética justificação no olhar atento de Sigmund Freud: “Não conheço nenhuma necessidade tão importante durante a infância como a necessidade de sentir-se protegido por um pai”.
Fica então deslindado o equívoco. O Dia do Pai não o reduz a um estatuto de dependência.  Bem ao contrário, institucionaliza e  leva ao trono a figura tutelar do Progenitor. De fraco passa a forte hasteio e necessário protector.
A partir daqui, cresce e impera no homenageado deste dia o seu estatuto, recomeça a sua saga, por vezes heróica, lado a lado com aquela que dentro de si própria fez o milagre de transformar um espermatozóide num exemplar vivo, pleno, um portador futuro do facho olímpico da história. É nesta trilogia iniciática – pai, mãe, filho – que se projecta a arquitectura de todos os tempos e de todas as latitudes. Nisto consiste a complementaridade do binómio Homem/Mulher, no mesmo pé de igualdade e na mesma força propulsora do amanhã, tornando-os intrinsecamente co-responsáveis na instauração do reino maior do planeta. Li hoje o pensamento que não deveria ser estranho a ninguém: “A co-responsabilidade  entre pai e mãe é uma questão de igualdade de género”. Eis a chave para abrir o tão agitado dilema entre machismo e feminismo. Ademais, é à luz deste cenário que nos fere a sensibilidade – por mais   empedernida que seja – de aceitarmos essa híbrida solução, quando interesseiramente procurada, de reduzir um filho a um mero embrulho registado num ‘correio de aluguer’.
Porque hoje é dia de congratulação, esqueçamos por instantes os  deficitários contra-testemunhos  e ergamos bem alto a bandeira bicolor da paternidade/maternidade originais. Permitam-me que inclua neste feixe proclamatório, o pensamento que hoje conjuntamente pais e mães saborearam no convívio solidário que realizámos em cerimónia comemorativa.  Vem no texto bíblico de Jo.4,37: “Um é o que semeia,  outro é o que ceifa e recolhe”. Os pais de hoje recolhem o que os pais de ontem semearam, com suor, lágrimas e, quantas vezes, com sangue das próprias veias!... Compete-lhes agora fazer a sementeira da saúde, das ideias, das palavras para que amanhã os filhos  possam ceifar e alimentar-se do trigo que os pais de  hoje lançaram à terra!...
Que se prolonguem todo o ano os ecos da canção com que  crianças e adultos abriram a manhã deste 19 de Março:

Viva viva o belo dia
Que nos traz tanta alegria
Vinde todos e cantai
Porque hoje é  o Dia do Pai
      

19.Mar.17
Martins Júnior

sexta-feira, 17 de março de 2017

NA MADEIRA, AQUI TÃO PERTO: PÉS DORIDOS, ASAS TRIUNFANTES


Todos os anos, na Madeira, a primavera vem do mar. Em boa hora, a editora ‘Nova Delphi’ faz-nos mergulhar num vasto oceano de saberes e sentires, trazidos por mareantes de todo o planeta, sábios, filósofos, romancistas, poetas, músicos, enfim, uma robusta tripulação de descobridores do mundo das letras e das artes, ancorados na ilha. São tesouros preciosos do conhecimento que aqui deixam ficar para nós, ilhéus, que moramos longe dos grandes centros emissores do saber. Neste ano, a capital insular respirou a atmosfera da criatividade humana, com a mensagem  ‘ao vivo’ e na primeira pessoa de ilustres galardoados nacionais e  internacionais, entre os quais, um Prémio Pulitzer e um Prémio Nobel, este último traído pelos ventos cruzados do aeroporto da Madeira. Aos madeirenses em geral e aos alunos do Secundário foi-lhes oferecida, sem custos, mais uma oportunidade de ouro que, oxalá, tenhamos apreciado e guardado para todo o ano, para toda a vida. Bem hajam os seus promotores.
Em meio de tanta constelação de criativos, descobri uma pérola na paisagem oceânica, tal como os investigadores dos fundos marinhos em busca dos bivalves habitados por finas peças de ourivesaria, ocultadas aos olhos da superfície.  E afigurou-se-me tão luzidia essa pérola, precisamente por ser pertença da maré que atravessamos todos os dias. Tão magra de volume, mas tão plena de profundidade, que não resisto a expô-la a quem tiver o gosto e a sensibilidade de tocá-la com as próprias mãos.
Refiro-me a uma breve crónica de Sandra Nobre, cujo título – PÉS ALADOS -  foi  inspirado  no pensamento da malograda pintora mexicana  Frida Kahlo: “Pés, para que vos quero, se tenho asas para voar”?!
De nada serve transcrevê-lo aqui esse roteiro enorme de uma vida do nada, que vale bem um poema, um filme, um monumento! Por ser tão escasso de folhas e tão infinito de emoções, convido a que o leiam antes que seja atirado para o vão do esquecimento. Ele toca os abismos da miséria humana e sobe até à estratosfera do sublime. Não exagero. Porque é entre o abismo e o sublime que nos movimentamos  enquanto vivemos. Normalmente, os dois extremos são expressos por ordem inversa: “Ascensão e Queda”, Grandeza e Miséria” de um  homem, de um país, de uma civilização. Aqui, o sortilégio domina todo o enredo, numa progressão ascensional que a ninguém deixará indiferente. Porque não se trata de um romance, mas de uma vida concreta, colada às nossas. Não só a do Telmo Ferreira, mas a de muitas crianças, “os meninos das caixinhas”, que o nosso conterrâneo ‘Padre Edgar’ persistentemente acompanhou e a realizadora sueca Solveig Nordlung,  em 1993,  transportou para o cinema sob o título Até Amanhã, Mário, tendo os seus autores sofrido acintosas críticas dos governantes madeirenses. Eu bem me lembro.
Deixo aqui, com quantas forças tenho, a maior e mais sentida homenagem à jornalista/escritora Sandra Nobre, pela sua coragem e pela coerente sobriedade que imprimiu a este percurso, a um tempo, doloroso e glorioso. No mesmo tom, senão mais alto, saúdo o Telmo Ferreira por ter assumido de viva voz  (escutei-o, emocionado)  o drama e a glória da sua vida, hoje radiosa e feliz. Congratulo-me com todos quantos, Henrique Amoedo à cabeça, ajudaram o Telmo Ferreira a transformar os pés doridos em asas triunfantes. Os heróis vivem connosco, nós é que não damos por eles.
Duas notas finais:
A literatura, o romance em especial, devia incarnar sem peias a trajectória das problemáticas sociais, na linha dos nossos Raúl Brandão, Alves Redol, Soeiro Pereira Gomes, Manuel da Fonseca. Nesta linha, apreciei a mensagem do jovem escritor brasileiro Marcelino Freire, presente no evento.
Prosseguindo o pensamento deste autor – “não só os passados Nobel têm lugar neste festival, mas também os futuros prémios Nobel” – peço licença para apresentar aos prestimosos líderes da  ‘Nova Delphi’ a seguinte sugestão: em novos festivais, incluam sempre um escritor madeirense, de preferência residente, porque conteúdos não faltam, conscientes de que assim  promoverão a cultura global e   incentivarão os talentos locais.
Small is Beautiful.

Bem hajam!

17.Mar.17

Martins Júnior

quarta-feira, 15 de março de 2017

GLORIOSO E LIVRE APÓS 500 ANOS DE SEPULTURA - Uma tarde no Funchal



Não é só a Cidade nem é só a Diocese que guardam um vasto património de cinco séculos. Há quem o tenha, também, esse património cinco vezes centenário -  e mais surpreendente e valoroso, precisamente por ter sido algemado e jogado como um demónio para o  inferno que o império vaticano  lhe cavou em vida. Tem por nome  Martinho Lutero, o génio pioneiro em terras germânicas,  que abriu as portas do pensamento e da liberdade,  a partir de Wittenberg,  para a Europa e para todo o mundo a haver.
Foi na tarde de ontem que no Auditório da Reitoria da UMa se procedeu à gloriosa exumação e se fez justiça àquele que afrontou a ditadura do  obscurantismo e da hipocrisia reinantes na perigosa passagem de nível da Idade Média para a claridade solar da Renascença, entendida esta nos seus múltiplos contornos. Duas metas diversas foram protagonizadas pelos intervenientes: uma estritamente histórico-crítica, da responsabilidade dos Prof’s Dr’s Nélson Viríssimo e Viriato Soromenho Marques; a outra, de tendência apologético-confessional, a cargo da Drª. Ilse Berardo,  Rev.ma Pastora  residente da Igreja Luterana do Funchal, co-promotora  do encontro,   e do Bispo José de Ornelas, ilustre madeirense ao serviço da Diocese de Setúbal.
Sem desprimor para cada um dos oradores, foram os Mestres em História  que, de uma forma límpida e transparente, sintetizaram o contexto da época e relevaram a estatura moral, intelectual, coerente e intrépida de Martinho Lutero. Com efeito, fomos descobrindo, passo-a-passo, que Lutero  não foi só o opositor frontal ao Papado ou o destruidor da Igreja, como esta no-lo pintou, ao longo dos séculos, representando Lutero, sempre de martelo na mão, afixando as suas famosas 95 teses no castelo de Wittenberg em 31 de Outubro de 1517, véspera de ‘Todos os Santos’.  Neste aspecto, registe-se a sábia declaração do bispo de Setúbal, na esteira do pensamento expresso pelo Papa Francisco em 19 de Janeiro de 2017: “Lutero não quis dividir a Igreja, mas purificá-la e renová-la Lutero não quis mudar a Fé, mas explicitá-la”.
Para lá deste suposto e propagandeado perfil de “herético excomungado por Roma”,  os nossos dois historiadores traçaram, sucinta mas eloquentemente, a personalidade polimórfica de Martinho Lutero: monge exemplar  e místico, teólogo, filósofo, linguista (traduziu a Bíblia do velho latim para o vernáculo alemão) professor eminente,  poeta e músico compositor, profeta e projectista de uma  sociedade nova, através da criação de escolas de ensino público gratuito (‘a criação de escolas é um serviço a Deus’) igualdade de direitos para as mulheres e para as jovens no acesso às escolas e universidades, contacto directo com a Escritura Sagrada (na sua tradução  em língua alemã). A este plano de imbatível abrangência sócio-cultural e política, apanágio de um visionário dos tempos futuros, juntou a plena assunção da dignidade do Homem, a sua autonomia e a sua capacidade decisória: “A Consciência acima dos Tribunais e a Palavra de Deus acima da Igreja visível”.  Lapidar e memorável a sua resposta diante dos julgadores do Sacro Império Romano-Germânico  na Dieta (tribunal) de Worms, em 1521: “Eu estou aqui”!
Impossível conter nestas linhas a altitude e a honestidade intelectual do Grande Reformador  que mudou o rumo da Europa e, após a sua morte, do universo cultural, religioso e político  de que hoje somos herdeiros. Em Portugal, Antero de Quental nas famosas Conferências do Casino de 1871 em Lisboa fez uma análise consequente dos Decadência dos Povos Peninsulares, próxima do ideário de Lutero,  antecipando-se  ao economista alemão  Max Weber que em 1905 publicou A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo.
Parabéns aos organizadores. Presentes estiveram na I  Parte  os bispos António Carrilho e Teodoro Faria. Saí entusiasmado com a personalidade fascinante de Lutero. Dois travos de tristeza, porém, e de revolta interior:  Primeiro, como foi possível à Igreja subverter sadicamente a grandeza de um Homem e acicatar o ódio dos cristãos contra Lutero e os seus correligionários?...  Segundo:  fizeram-se ali apelos, quase  juras de amor, unidade  e conciliação entre cristãos católicos e cristãos protestantes, evocando visitas dos bispos a igrejas luteranas, ortodoxas, sinagogas e outros templos não católicos da Madeira.  Perguntei então: Como é possível que os mesmos bispos continuem  voltando as costas  a uma pobre paróquia católica que desde há 40 anos não  visitam?...
Como um outro Matin Luther (o King),  desabafo com acesa esperança: I have a dream… o sonho da coerência e da unidade!

15.Mar.17

Martins Júnior     

segunda-feira, 13 de março de 2017

QUADRIÉNIO HERÓICO EM TRÊS ACTOS: 13 de MARÇO 2013 – 13 de MARÇO 2017 --- Poema de todos os dias, sempre repetido e sempre inacabado

                     

                
                 ACTO I

Do princípio ou do fim
Um sopro o trouxe do outro mundo
E logo os rios correram para norte e o mar do fundo
Subiu às nascentes doces da montanha
O balido das ovelhas
Aqueceu-lhe o berço de uma Glória estranha
Vieram vagabundos párias sem abrigo
Vieram mulheres do ofício mais antigo
Náufragos dos Cabos das Tormentas
E de todos os mediterrâneos
Os do lixo humano e os
Olhos sedentos de Sol e de Esperança
Das ilhas-longe que a vista não alcança
Também vieram reis
Rainha de Sabá foi a primeira
Teceu-lhe de ouro a passadeira
Para esconder espinhos e adoçar quebrantos
Que na véspera lhe servira à mesa estreita

O Velho-Menino a todos abraçou
Na praça universal
O sorriso terno de avô
Vestiu de infância
O mármore frio e morto
Das pálidas estátuas da distância
 Finou-se o longo tempo da espera
Ao mundo enfim chegara a Primavera
                                        

                       ACTO II


Mas os muros solenes soturnos
Do império sem pássaros nem buganvílias
Rangeram nos escombros
Abutres de fino escarlate
Demónios asados como anjos em secreto
Lavraram o satânico decreto
‘Venha um Judas que o mate’
Trinta dinheiros de trinta milhões
E outros mais
‘Temos os bancos prenhes de canhões
De ouro e de sangue
Branqueados de orações’

Lado a lado à mesma ceia
Do mesmo pão do mesmo vinho
São lobos em alcateia
‘Vamos depressa
Que amanhã é Sexta-Feira


                   ACTO III


Quem veio do fim do mundo
Traz o princípio a manhã
Em rebento sempre e sem ocaso
E o Velho-Menino afronta o Satã
Dos soturnos abutres
Ilumina o campo raso
Parte as lousas tumulares
Das fétidas ossadas
E traz de volta os argênteos ‘Bons Ares’
Que fazem abrir o sonho e as madrugadas
De novo o sorriso
De  octogenária criança
É Páscoa toda a noite e todo o dia
De quem luta e nunca desespera
Por essa antiga e nossa Primavera

13.Mar.17
Martins Júnior

sábado, 11 de março de 2017

CR7 – CANCELADO 20, ATRASADO 7, DESVIADO 7, FALHADO 34, PÚBLICO IRRITADO 5.000


Não seria assim a ementa da nossa ceia sabatina. Mas, “porque hoje é sábado, amanhã domingo”, vem mesmo a talho de foice esta espécie de reportagem em jeito de rábula prosaica.
Há muito tempo andávamos a comentar o delírio diletante do nosso ‘Ilhéu Primeiro’ quando numa noite de nevoeiro proclamou ao reino insular a irrevogável decisão de paramentar-se de João Baptista para rebaptizar o aeroporto dos madeirenses. Entre amigos, solidários com o CR7 e não com o ideólogo peregrino,  passava de mão em mão um estranho pré-anúncio difundido pelos altifalantes do aeroporto da Madeira:” Senhoras e Senhores passageiros, lamentamos informar que hoje o Aeroporto CR7 está fechado, voltem amanhã que o CR7 está aberto … ou não se prevê quando é que ele abre… Messieurs, dames … Ladies and gentlemen”…    
E hoje foi o dia. Na minha deslocação ao aeroporto, fiquei estarrecido com o mare-magnum de passageiros que faziam rebentar pelas costuras a sala de embarque. Consultei os horários dos aviões e dei-me com uma repetida informação: Cancelado, Delayed, Desviado, New inform… Saltou-me logo à vista a aludida graçola dos vários amigos. Se hoje fosse o 29 de Março – a Grande Festa do Maior Feito do nosso “Primeiro Ilhéu” – os altifalantes morreriam de espasmo e de fadiga:
“Ronaldo–Cancelado 20 vezes… Ronaldo-Atrasado 7 vezes… Ronaldo–Desviado 7 vezes… Ronaldo-Incerto  n vezes” . Ao todo, Falhado o Ronaldo 34 vezes”.  E uma multidão de 5.000 almas de todo o mundo ali  ‘ao deus-dará’, umas de corpo estirado no ladrilho, outras a bater com o nariz nas vidraças e todos irritados por causa do ‘Ronaldo’, que tinha falhado naquele dia”.
         Até os jornais, nacionais e estrangeiros, ficaram empancados, amarrados com cordel cruzado, porque o CR7 continuava fechado. E nem escaparam os 'camaradas da bola' do Paços de Ferreira que  foram obrigados a marcar passos no Sá Carneiro das Pedras Rubras porque o CR7 'deu-lhes tampa'. E por cá ficaram os ambiciosos nacionalistas trajados de luto no banco da Choupana. Ai CR7, CR7! Abre-te mais depressa. Ou manda vir o 'mandarim' meter chave à fechadura.
         CR7, o Grande Ganhador, o Portador das Bolas de Ouro, o Infalível Marcador, o Herói da estatuária desportiva, o Monumento-Museu  da entrada da Cidade --- posto ali ao desbarato no formigueiro de quem chega e de quem sai, ‘Aeroporto CR7 práqui, CR7 práli, Cr7 prácolá’, se ainda está fechado, quando é que fica aberto?!...
         No regresso a casa, em roda de amigos de fim-de-dia, por entre as opiniões contrárias ao rebaptismo do aeroporto da Madeira, sai-se um miúdo adolescente com esta cintilante ressalva, à maneira de douto  advogado de defesa do CR7: “Mas o Cristiano Ronaldo não tem nenhuma culpa de porem lá o nome dele”. E todos concordaram com o petiz, que lamentava a inspiração delirante do ‘Nosso Primeiro’. Que não se estragasse o nome do maior jogador do mundo… que pusessem o seu nome no Estádio dos Barreiros, por ex., no dia em que vai alinhar no Portugal-Suécia… que o aeroporto é só um na Madeira e não precisa de trocar de roupa nem de nome…
         Se o ‘Primeiro da Ilha’ deixar arrefecer a cabeça que lhe ditou tão desajeitada originalidade, lembre-se do dia de hoje em que umas rajadas de 89 Km de ventania foram suficientes para varrer a sua febril inspiração. E ria-se dela, que nós já nos rimos há muito tempo.

         11.Mar.17
         Martins Júnior