quarta-feira, 31 de maio de 2017

SONHO DE UM SOLSTÍCIO DE VERÃO PARA O DIA DA CRIANÇA

A vida toda corro e tropeço
Dentro de mim                                                         
Para achar a criança que eu já fui
E cada tarde é um fim
Cada manhã um recomeço

Sem astrolábio que preste
É o sonho que me leva
Do vento norte ao mar do leste
Assento os pés num chão estranho
Que já foi meu
Não sei se é cinza ou brasa ou treva
Só sei que não sou eu

E sempre cada tarde é um fim
Cada manhã um recomeço

Agarrado
Ao cajado curvo dos anos
Imploro e brado
Aos deuses sobre-humanos
Se viram por aí
Aquele olhar sem mancha
Da criança que eu vivi

Onde ficaram
Ou que estrelas abraçaram
Esses bracinhos de anjo esses  dedinhos de lã
Que hoje tecem a saudade?

E é sempre um fim a tarde
E um recomeço a manhã

Três vezes rondei o equador
E outras mais juntei os polos extremos
E tornarei seja onde for
Sem velas sem mastros sem remos
Para dormir um instante
Boiando em concha  no aquático vaivém
Do ventre da minha mãe

Do que eu era
O que ficou?

‘Descansa Homem/Mulher e espera
O solstício vem mais cedo
Devolver-te em segredo
O Graal que demandas

E a tarde não será mais fim
Nem a manhã recomeço

No empedrado escuro espesso
Que tu pisas
Estão lá as pegadas e o verde campo
E os pèzitos de criança

Dentro das tuas frouxas mãos pesadas
Palpitam gorjeios e cantatas
Das primaveras de outrora

Nos teus olhos baços
Pelos ventos e marés espinhos e sargaços
Escondem-se as pupilas infantis
Mais ricas que os rubis
Que vêm do Oriente

E se o teu coração bater baixinho
Pára e escuta
São os vagidos do menino
Que tu foste
No seio da tua mãe

Não corras mais nem tropeces
Onde estás está também
A criança que tu és
O sonho que mereces’
….
E Maio findo
Da sua noite mansa
Nasceu o Junho lindo
Do Dia da Criança

31.Mai-01.Jun.17
Martins Júnior



segunda-feira, 29 de maio de 2017

A FEIRA DA LIBERDADE, ONDE O POVO É PROTAGONISTA

À mesa do último encontro ‘senso-consensual’, sugeri um percurso aéreo sobre a paisagem cultural da ilha, onde estrelas cadentes brilhavam nos pontos cardeais deste pequeno território. Hoje, vou deambulando pelo rectângulo claro-escuro da calçada entre o Teatro Municipal e o Largo da Sé,  transformado agora  em palco multicolor de todas as artes e de todos os gostos. É a Feira do Livro do Funchal, uma multímoda ‘wikipédia’ de saberes e lazeres, ali à beira-baixa da cidade e à maré-alta de todos as apetências. Folheando o extenso guião da Feira, dificilmente poderia conceber-se  uma simbiose tão perfeita – una e múltipla – envolvendo gerações, territórios, géneros literários, artes plásticas, cinemateca, ludoteca, biblioteca, enfim, uma enciclopédia do mundo no terreiro  da nossa casa.
De entre todas as variantes do programa, é de assinalar a preocupação de trazer à rua a linguagem da cidade e da ilha pela voz de autores e artistas madeirenses. No princípio, no meio e no fim desse roteiro ilhéu, uma nota se impõe: não ter medo de fazer soar a memória do povo na conquista do seu espaço histórico, da sua identidade interventiva e lutadora, nada e criada em diversos extratos sociais, a começar pela actividade braçal, consignada no volume “O Arrais” do jovem Alves dos Santos. A reimpressão da obra de António Loja –“A Luta do Poder contra a Maçonaria” – veio trazer ao de cima e em público o impulso revolucionário de um punhado de madeirenses, de diversas classes e profissões, muitos clérigos inclusive, contra o absolutismo da Inquisição reinante no Portugal do século XVIII.
Mais impressiva, porém, foi a aventura da historiadora Raquel Varela que, em parceria com a investigadora Luísa Barbosa Pereira, aguçou-nos o desejo de conhecer por dentro a transição mais decisiva ocorrida  no último quartel do século XX – “História do Povo da Madeira no 25 de Abril”. Aliás, trata-se de focalizar na Madeira o mesmo olhar com que viu e escreveu a “História do Povo Português no 25 de Abril”. O trabalho de Raquel Varela vale por si próprio, porque enraizado na autenticidade de  testemunhas oculares, a voz de quem entrou, sofreu e venceu as barreiras  de um  neofascismo emergente que os governos civil, militar e  eclesiástico porfiavam implantar no pós-25 de Abril. A Autora não se limitou ao ‘diz-se, diz-se’ da imprensa ou do audiovisual de então, manietados  ou acomodados aos governantes. Desceu ao terreno, ouviu ‘in loco’ contar, pelos próprios, os avanços e recuos da Revolução dos Cravos na Madeira, os operários da construção civil, os camponeses, os pescadores, as bordadeiras, todos os que, sabendo dos acontecimentos de Lisboa,  juntaram a carga opressiva  que traziam aos ombros desde gerações seculares e irmanaram-se  aos heróicos fautores da mudança em Portugal. Machico ocupa um merecido lugar de referência, porque aqui foi o povo genuíno que  esteve na centralidade da alvorada libertadora.
Mas o mérito da elucidativa apresentação de Raquel Varela não se ficou por aí. Enriqueceu-se com o debate público, em plena avenida, onde os ouvintes falaram, chamaram à colação factos e nomes, até agora mumificados no congelador de complexos acumulados de 43 anos de ‘democracia musculada’, um eufemismo para encobrir a mais despudorada ditadura pós-25 de Abril na Madeira. Por isso, afirmo e sustento que um dos valores trazidos por Raquel Varela foi esse mesmo: quebrar o mito e o medo de conhecer a Madeira de quatro décadas, traída pelos herdeiros do 24 de Abril. É gloriosa a história do Povo da Madeira no 25 de Abril! Reergamo-la, corajosamente, para que não façam aos vindouros, o que soberanos ilhéus sem escrúpulo fizeram à nossa geração.
Felizmente que vão surgindo estudos históricos de rigor científico, como a já conhecida obra do Dr. Bernardo Martins, lançada em Machico nas comemorações do 43º aniversário do 25 de Abril. Mas muito, muito falta ainda por dizer. É verdade que a História não pode ver-se nem analisar-se cabalmente, na hora da refrega, o que, para nosso mal, já aconteceu com alguns escritos subsidiados pelos detentores do poder e do capital locais.
A caminho do cinquentenário, é chegada a estação de encontrar as fontes e as raízes do passado recente – e enquanto é tempo útil – para que não perdurem os silêncios cúmplices, as reportagens deturpadas, as campanhas maquiavelicamente orquestradas por escribas colaboracionistas que, por meias-verdades,  esconderam  a inteira verdade dos factos.
Por isto e por tudo o mais, valeu e continua a valer a Feira do Livro  do Funchal.

29.Mai.17
Martins Júnior     


     

sábado, 27 de maio de 2017

CHUVA DE ESTRELAS CADENTES, BRILHANTES

Fim de semana solto e saudável. Que não gratuito e vazio. Muito ao contrário. De um  mergulho na profundidade das coisas  e um alçar de voo para uma liberdade plana e plena. Por isso, só me apetece desenhar um largo cruzeiro, de ponta a ponta, no mapa da ilha. E talvez não chegue para monitorizar a diversidade de iniciativas culturais que nestes dias povoam as terras e os corações, de norte a sul, do nascente ao poente deste dorso de basalto suspenso no oceano. Inscreverei hoje no corpo da ilha uma estrela, talvez um setestrelo e em cada vértice uma fagulha de talento a sobredourar momentos de lazer e frescura mental.
Com o epicentro no Funchal da Feira do Livro, onde a cultura se fez diversa e solidária – e a que “As Festas da Sé” emprestaram uma saudável descontracção – a criatividade correu como um rio e espalhou-se pela “Costa do Sol e do Sul”,  onde um vasto programa encheu a vila e até daria para preencher a ilha toda. Depois, o rio passou pela Calheta,  Ponta do Pargo e Porto Moniz, voltou à Ponta do Tristão, fez escala em Machico na “Semana da Saúde”, tomando logo o pulso da História no ensaio do Mercado Quinhentista. O rio  virou a norte e na estação marcada pela ruralidade emancipada,  Faial e São Roque, transformou-se em poesia, música, fraternidade.
Há quem prossiga caminhos desviantes na interpretação destes fenómenos, equiparando-os levianamente à velha demagogia do ‘panem et circenses’  (pão e jogos) com que a Roma imperial entretinha e domava a cidade. Mas não. Aqui há mais que “pão e jogos”. Neste rodopio envolvente e quem nele participa, um bem maior marca o ambiente. Prova disso, além dos títulos e autores que têm passado na Feira do Livro, destaco a presença do bispo Carlos de Menezes, membro do Conselho Pontifício da Cultura, para debater na “Casa das Mudas”, Calheta,  a tese do seu último livro sobre a momentosa questão ‘Fátima das aparições’: sim ou não ou nim. Em suma e muito sucintamente, um fim de semana produtivo, a toda a linha.
Chamo aqui um pressuposto muito antigo  que certos analistas reproduzem e cujo teor se resume a esta estranha constatação: “A evolução de um povo mede-se pela qualidade dos seus molhos”. Subtraindo o que, em termos estritamente culinários, pode ter de inverosímil, o aforismo pretende significar que a cultura, a sensibilidade, a educação constituem o barómetro civilizacional dos povos. E o cardápio cultural que nos foi oferecido neste fim de semana outro nome não terá senão a vaporização anímica deste corpo vivo que é a Madeira. Que somos nós. Enfim, a cereja em cima do bolo.
Um caloroso  Bem-Haja  a todos os seus promotores, os de cá e os de fora.

27.Mai.17
Martins Júnior


quinta-feira, 25 de maio de 2017

“LA BELLE ET LA BÊTE” ou “A BELA E O MONSTRO” - NUMA VERSÃO TRUMPAMERICANA

                                                  
       Repugna-me visceralmente  moer o teclado em que escrevo e sujar os dedos  nesse pântano viscoso em que nadam e se nutrem determinados homens-rãs capazes de tudo para mostrar-se na pele do monstruoso  ‘boi-ápis’  das lendas. Dá pelo nome de cinismo, hipocrisia, despudor... E se sou obrigado a tragar o cheiro fétido do charco, faço-o de carreira, dele  fujindo a sete-léguas. É o que farei neste momento, com base na caricatura que o jornal italiano ‘CORRIERE DELLA SERA’ traz hoje em primeira página.
         O primeiro êxodo oficial de Trump pelas arábias, depois pelo Vaticano e ainda pelas instituições europeias não podia ser mais demonstrativo, a começar pela hora em que o fez: acusado de conluio com a espionagem russa, de que resultou a sua eleição, contestado pelas multidões, desacreditado  por uma parte dos correligionários republicanos, ao ponto de enfrentar um eventual empeachment, o homem sai para o exterior e tenta ludibriar a opinião pública, exibindo mãos largas de afectos, profissões de fé no Alá dos muçulmanos, no Jehovah dos Muro das Lamentações e no Deus romano dos cristãos.
         A ousadia do encontro com o Papa Francisco é o cúmulo! Digo ousadia, para não dizer garotice, porque teve o desplante de afirmar aos jornalistas no voo para Roma: “ sinto-me muito honrado pelo convite que me fez o Papa Francisco”, quando, afinal, não houve convite nenhum, o que houve foi um ofício de Trump a solicitar uma audiência para o dia 24 de Maio. E o Papa – comenta o diário espanhol ‘ABC’ – que não faz convites a nenhum chefe de Estado, simplesmente recebe todos os que lho pedem.
         Na troca de presentes, a hipocrisia foi tanta que o assumido xenófobo atreveu-se a  oferecer ao Papa cinco livros de Luther King – “espero que goste”  -  ele, o mesmo que persegue os imigrantes  e reconstrói na América os muros da vergonha derrubados na Europa de 1989. Ao sair da audiência, repete comovidamente à comunicação social o que tinha dito ao Papa: ”É um homem fantástico… Parto do Vaticano, agora  mais que nunca decidido a promover a Paz no mundo”. O mesmo ‘pacifista’ que tinha acabado de fechar negócio de venda de  armamento à Arábia Saudita no montante de 110.000 milhões de dólares       

          O protocolo, a meu ver saloio,  do yanque  embrulhou a família ‘real’ – a mulher-manequim Melania, a filha e, de arrasto, o genro – e a todos ensaiou o ritual litúrgico da ordem:  o véu de viúva-virgem na cabeça, o terço para o Papa benzer, depois a visita dela ao hospital do Bambino Gesu  e, por seu lado,  a filha Ivanka  à comunidade ‘Sant’Egídio’ onde encontrou mulheres africanas vítimas de violência. Uma encenação perfeita, milimétrica.
         Muito lhe deve ter custado ao Papa Francisco engolir tanto cinismo. O rosto carregado e sombrio contrastava com os maxilares abertos do riso descarado do visitante. Francisco tinha em mente a reacção do Trump candidato, quando às suas declarações  – “os que em vez de pontes levantam muros não são cristãos” – o dito cujo candidato classificou-as de “vergonhosas”. Apesar disso recebeu-o. Foi uma entrevista rápida e cautelosa, talvez “de cortar à faca,  em que o Papa marcou a diferença entre Trump e Obama: para este concedeu 50 minutos, para aquele apenas 27.  A oferta de uma oliveira, símbolo da paz, esculpida em medalha, e as suas três encíclicas  sobre  a alegria do Evangelho, o amor reencontrado e, mais directo, sobre  ecologia  e  alterações climáticas, são o gesto sancionatório do bispo de Roma contra quem se recusa a manter os Acordos já assinados pelo anterior inquilino da Casa Branca: o Acordo de Paris sobre o ambiente, o Acordo com o Irão sobre o nuclear e, ainda, o Obamacare, sobre um novo Serviço Nacional de Saúde Americano.
Quanto à presença de Trump nas instâncias europeias, deve ser preciso trazer dentro da gravata,  sarcasticamente vermelha, um escudo do tamanho de todo o despudor que há  no mundo para falar àquela Europa que ele, textualmente, tinha apelado à desagregação total, na sequência do Brexit britânico…
Já demorei tempo demais à beira do charco. Mas é este o mundo pútrido que nos oferecem. Só espero que o povo americano não desista de lutar por uma desinfestação das estruturas e faça regressar o seu país e o planeta às raízes democráticas que o criaram e fizeram crescer.

25.Mai.17
Martins Júnior


terça-feira, 23 de maio de 2017

TERRORISMO LEGAL QUE MATA SEM SE VER!



O ferrete em brasa que  desde ontem trespassa o coração da humanidade, mesmo o mais empedernido, não me deixa quieto - nem quem me acompanha nesta rede – para escrutinar a hecatombe silenciosa onde morrem diariamente  milhões de vítimas inocentes, não apenas as crianças de Manchester, mas os caminhantes da vida, em tudo quanto é sítio. Quanto à guerrilha urbana pouco poderia acrescentar aos comentários, lamentações e protestos já conhecidos. Que hedionda  sorte que nos coube, a de entrar no século XXI com a morte metida no bolso, na mala de viagem, debaixo da nossa cadeira de espectadores comuns! Voltámos à barbárie, impotentes e a perguntar-nos baixinho: qual é o comboio ou avião, a rua ou o estádio que se seguem?...
A outra guerra a que me refiro – essa, silenciosa, sofisticada, que passa como enguia sob os nossos pés e que, tantas vezes, deixamos passar impune – tem outro nome: corrupção. Alertaram-me mais impressivamente  para o facto os últimos acontecimentos ocorridos no Brasil de Michel Temer e todo aquele ‘nó de víboras’ (diria François Mauriac) em que se enrola e desenrola a política brasileira. Não sei se lhe chame tragicomédia, charada herói-cómica, sendo-lhe mais adequada a fétida cloaca onde nadam, fermentam e se reproduzem os mais abjectos monstros-parasitas das sociedades. Intragável assistir-se, ‘impávido e sereno’,  aos gritos ululantes dos parlamentares, capitaneados por Eduardo Cunha  e Michel Temer, para condenar Dilma Rousseff  sob a acusação de envolvimento no caso “Lava Jato”. Daí a meses, dias, “vai de cano” o grande inquisidor Eduardo, liminarmente preso pelo mesmo crime: Operação Lava Jato”. E é agora a eminência engomada, Temer de seu apelido e sempre de dedo em riste, que é acusado pelo mesmíssimo crime!  Quem suporta esta diarreia sucessória de bichos engravatados, ao mais alto nível?!... Parece que o povo brasileiro começa a acordar da embriaguez colectiva de sonhar apenas com a cabana, bananeira, , cachorro e violão do samba.
 Não deixa de ser sintomática a coincidência de que toda aquela faixa da América Latina enferma da mesma síndrome: a venalidade e a corrupção  a céu-aberto. Espantou-me, numa visita de estudo em que participei na cidade de Caracas (era o ano 2000, da transição do regime Rafael Caldera para Hugo Chaves) ouvir da boca de um madeirense bem posicionado na capital: “Aqui é assim, todo o sujeito que vai para ministro e não sai cheio e podre de rico não é considerado ministro nenhum”. E no México…e no Chile…até na Argentina da progressista  Cristina Krichner, também julgada por  corrupção.
Da América Latina, passaríamos à Espanha contemporânea, em que a direita “cristianíssima” de Rajoy – com a família Bárcenas na dianteira, além de outras figuras graúdas do PP  - tem sido arrastada aos tribunais e condenada a penas severas. E em Portugal, o sacratíssimo nome do “Espírito Santo” e outros edificantes empresários,  membros da ‘Opus Dei’, que descaro proxeneta lhes tem corrido nas veias! Para terminar, ancoramos no Vaticano, aquele do Banco Ambrosiano (das esmolas dos pobres cristãos contribuintes) ou do IOR (Instituto das Obras Religiosas) também metido beatificamente numa tenebrosa teia de lavagem de dinheiro, agora sob a alçada da justiça italiana.
Este alinhamento monocolor, sob o ponto de vista religioso, tem a ver com a apreciação crítica de certos sociólogos e economistas que atribuem à educação teológico-moral (falsa teologia e falsa moral)  que os europeus colonizadores levaram para outros continentes, em cuja “catequese” apregoavam os brandos costumes e o perdão que Deus misericordiosamente outorga por via da confissão dos pecados. Será, não será?... O certo é que o mesmo paradigma não fez carreira nos países de origem anglo-saxónica.
Muito mais poderia juntar neste vasto campo de investigação.  No entanto, o mais deplorável aconteceu quando a (in)justiça dos humanos legisladores inventou um altar sagrado onde armazenar  intocavelmente  as fortunas clandestinas, porque nascidas do ventre da podridão, dinheiro sujo das armas, drogas, prostituição e quejandos. Legalizar o crime, a fuga aos impostos, a especulação, no antro dos offshores e praças financeiras similares! Eles aí andam, bombistas à solta, sugando o sangue dos jovens, crianças, idosos, matando num silêncio sádico tantos inocentes. Legalmente!!!!!
Sem levar ao cúmulo esta angústia, que não é só minha, mas de todo o cidadão honesto,  é caso para perguntar: Se a uns é lícito roubar e destruir legalmente o direito à felicidade, por que não nos será permitido – dizem os marginais - fazer o mesmo, pelos meios que eles consideram ilegais e ilícitos?...
Depende de cada de nós estarmos  atentos ao destino dos orçamentos locais, municipais, regionais, nacionais e europeus. Porque são nossos. Para que haja higiene nas relações humanas e para que o tal ministro de nome desconchavado, o holandês Jeroen Dijsselbloem, retire o que disse acerca dos povos do sul. Acerca de nós, portugueses.
Nesta guerra de terrorismo capitalista sub-reptício, ainda podemos intervir. Com as armas da razão crítica, esclarecida, legal e vigilante.

23.Mai.17
Martins Júnior

        

domingo, 21 de maio de 2017

EM MACHICO, ZECA AFONSO REDIVIVO!

    

Hoje compartilho convosco a terra.
Terra chamada Machico. E terra-génese da vida, inspiração telúrica, emanação do espírito.
Imprevistamente, na linha meridiana do 21 de Maio – eram doze as badaladas  no “sino coração da gente - o centro da cidade transfigurou-se. Por conta própria. Geração espontânea de um punhado de jovens que inundou a sala de visitas da primeira capitania da ilha com o universo musical e espiritual de José Afonso. Foi o grupo denominado     “Moodin”, da Banda Filarmónica concelhia. Desfilaram diante da varanda dos nossos olhos e da nossa sensibilidade as baladas mais expressivas do cantor de Abril. Os metais, as teclas e as guitarras entrelaçaram-se num feixe inebriante, segurado por uma percussão meticulosamente estruturada.  Zeca Afonso teria ficado extasiado, ao ouvir a variegada riqueza harmónica que as suas melodias suscitaram, numa simbiose de êxtase, por vezes alucinante, de todo o instrumental, composto por dezena e meia de artistas exímios. Os arranjos, o virtuosismo à mistura com o crescendo de um clímax a que a técnica do jazz conferia maior vibração  remexeram  e prenderam todos quantos ali estávamos num abraço comum. Por mais paradoxal que pareça, dois qualificativos exprimem o acontecimento: intimista e apoteótico na sua concepção, execução e interpretação.
Devo manifestar, no entanto, a minha estupefacção por este brinde que o grupo   nos ofereceu. Mas por um outro motivo.  É que tudo nasceu da livre espontaneidade dos executantes. Foi o mesmo corpo numa alma nova. Explico-me. Normalmente, a evocação de José Afonso está consignada a associações público-privadas ou a formações de tendência progressista já catalogadas e firmadas ao longo dos anos. Desta vez, foi Zeca Afonso,  “não rouxinol na prisão, mas pardal na rua”, como bem poderia dizer António Aleixo. Sem paternidade segregada nem ‘sponsors’ da praça oficial. Não levarão a mal os músicos participantes se disser que ali foi José Afonso, irmanado com os filhos do povo,  José Afonso “andarilho, nascido do  maio, maduro maio”, como ele tanto gostava de cantar. Mais convicto fiquei quando o director da Banda Municipal, Manuel Spínola, informou que alguns deles, universitários das faculdades em Portugal Continental, deslocaram-se propositadamente à sua terra para nos trazer esta dádiva tão surpreendente.
Por isso que comecei esta crónica de circunstância com a exaltação da terra, inspiração telúrica, emanação do espírito. Numa altura de tradições insulares do Espírito, ouso dizer que este momento único, vivido no Passeio Público da Cidade, foi a ressurreição do espírito da Liberdade, a emanação de José Afonso no meio do  povo de Machico para quem ele cantou, em 1976, abraçado à estátua de Tristão Vaz Teixeira – a mais sólida testemunha da sua presença nesta terra.
A primorosa apresentação da Dra. Benvinda Ladeira e as justas homenagens de Ricardo Franco, autarca presidente,  aos intérpretes pioneiros deste evento autenticaram com a sua presença este, para nós, histórico concerto. José Afonso deitou  em Machico raízes fundas que hoje produzem flores e frutos de primavera. Bem Hajam!

21.Mai.17

Martins Júnior  

sexta-feira, 19 de maio de 2017

UMA PRECE QUE É PROTESTO


Do muito que ficou por dizer, depois de pensar, sobre a apoteose de Fátima, termino as minhas anteriores considerações com esta oração que é só minha, respeitando todas as outras  que entendam fazer

Vejo o mar e vejo as ondas
Lenços brancos braços nus
Vejo aí náufragos presos
Aos barrotes de uma cruz
Mas não te acho

O chão ferve e canta
A terra é grito e o mar um facho
De sacras labaredas
Mas a ti não te acho

Fizeram-te um trono
Aos ombros de fardas
Com chicotes  espingardas
Dentro
Mas não estavas lá

Não quero ver-te Inês
‘A que depois de morta foi rainha’
Nem Nefretite  faraónica ‘Princesa’
Afogada de oiro até à bainha
Tecida de filigrana e de cambraia
Que não é essa a tua praia
Mas a rota do Egipto
Onde pediste abrigo
Judia refugiada

Não é esse o teu andor

Já ninguém te vê andar
Mulher do Povo Mulher Nossa
Subindo a montanha
Descendo à choça
E dar a mão a quem perdeu os dedos e definha

Aí é que eu te sinto e amo

E se algum milagre peço
É que partas as amarras
Os pregos com  que te ataram
 E serena varras
Do teu terreiro
As eminentes  sedas tecidas de ‘lingerie’
Dos que te cantam agora
Em solene frenesi
Sobre o corpo de um Filho
O Teu que mataram outrora

Não te vi nem tu estás
Nos palácios dos Herodes
Nem nos tronos dos Caifás

Estás na terra
De todos e de ninguém
Mulher do Povo Senhora  Mãe

19.Mai.17
Martins Júnior


quarta-feira, 17 de maio de 2017

O CHAMPANHE DE NOSSA SENHORA

                                                  

Não posso deixar de surpreender-me pelos  milhares de amigos que acederam ao meu  último blog. Congratulo-me, sobretudo, por verificar que, mais uma vez, o “Espírito sopra onde quer” (Jo.3,8)), seja na voz eloquente de um líder planetário, Francisco Papa, seja no fio de luz que emerge, silencioso, no coração do mais humilde camponês, debruçado sobre a terra arada da sua aldeia. Basta ficar atento à sua passagem, porque o mesmo vento, tal como a corrente do rio, não  passa duas vezes debaixo da mesma ponte. Abraçar o Espírito ou repudiá-lo está nas mãos do destinatário/receptor.
E com isto quero dizer claramente que o que sai deste teclado não pretende altear-se como joeira da Verdade, nem muito menos impor-se a quem quer que seja. Bem pelo contrário. Todas as opiniões são discutíveis, abraçáveis ou repudiáveis. Foi o caso de alguém que, a propósito do meu penúltimo comentário sobre a trilogia apoteótica - Fátima, Benfica e Salvador Sobral – achou que a presença do Papa em Fátima não devia ser equiparada aos outros dois vitoriosos  acontecimentos. Nem eu os alinhei no mesmo grau axiológico, isto é, na mesma escala de valores. Pretendi apenas (e não é de pouca monta) situar-me na psique e no gesto dos espectadores ou adeptos ou crentes que se rendem incondicionalmente, alucinadamente, misticamente diante  do “santuário” que mais ama. E é aí, no cerne do fervor anímico que os três acontecimentos se encontram. Em pé de igualdade, quanto à soma das motivações e ao clamor das reacções. Um interessante study case a aprofundar!
Hoje, por exemplo, dar-me-ia um enorme prazer  constatar -  para  valorar ou depreciar -  o labiríntico  e, para muitos, escandaloso  novelo que dá pelo nome de “negócio de Fátima”. Um gordoroso sacro-milhões que se reparte pelos cantos e recantos, do centro à periferia, da centenária azinheira. Os jornais mais sensacionalistas extravasam as manchetes com as promessas, as velas, os terços (até têm registo de certificação e já se esgotaram), medalhinhas, bentinhos, pagelas, brochuras e mais brochuras, imagens, votos pios, leques e talismãs, tudo inflacionado e supostamente abençoado com a marca industrial da casa: Fátima. Também há reportagens, na porta dos hotéis, que divulgam em ‘negro berrante’, o preço de uma noite de cama, 2500 euros. Noutro ramo de negócio, o das bebidas, lá vem o licor de Fátima, o chá de Fátima, o vinho de Fátima e, a coroar o fumegante coctail, chega Sua Excelência o “Champanhe do Centenário das Aparições”, um lote de 1917 garrafas,  rigorosamente numeradas e ilustradas com três pombinhas brancas saídas das mãos de um Papa. Tudo em louvor da Virgem.
É caso para formular a sabática pergunta “Quid júris”? – que dizer a tudo isto?
Não terei o espaço tolerável para estender aqui  opiniões e palpites, tanto da minha parte como de outrem, a dos amigos que me lêem, talvez. Entretanto, atiro-me para a frente e atrevo-me a separar as águas. Nestes termos. Em todo o tempo, mas hoje particularmente em que tudo se reduz a cifras (“é a economia, estúpido!”, comenta-se), não espanta que onde houver um aglomerado populacional, accionam-se os mecanismos e as trocas comerciais. Assim nasceram as cidades medievais. E se, porventura, soarem as campainhas avisando que  “aí chega a Vedeta”, então explode a febre negocial para responder à fome pavlóvica da multidão. Compra-se tudo, guarda-se tudo e leva-se para casa, para um amigo, uma devota, uma avozinha,  uma cunhada do peito.
Ninguém nega que o Papa, sobretudo, o Papa Francisco é uma vedeta mundial, queira ou não queira. Portanto, em sua homenagem abre-se a bolsa e ‘levamo-lo’ para casa, seja numa imagem, numa joiinha ou numa garrafa. Quanto aos alojamentos, funciona a lei da oferta e da procura, queira ou não a Senhora. São benesses do chamado turismo religioso. O mesmo fariam com os grandes artistas, futebolistas, recordistas, conforme a “FÉ” que cada fã professa no seu santuário emocional.  É inevitável a concorrência comercial, cada qual faz pela vida, sem atropelar ninguém, muito menos o Sagrado. O comércio laico não é o que me incomoda.
Perturba-me, sim, e revolta-me a simoníaca frieza com que certos responsáveis da Igreja vendem, de consciência enxuta, uma entidade que lhes não pertence – o Sagrado – a troco do vil metal sonante com que vão comprar prazeres, quintas e palacetes, carros topo de gama, enfim, a luxúria  que destrói o Sagrado. São os que forçam Maria-Mãe de Jesus a ostentar-se como vedeta publicitária, contra a vontade dela. São os que se sentam à mesa da Ceia comum e vão logo trocar o Mestre por milhares ou milhões envoltos no saco dos trinta dinheiros. Mais grave, porque sabem o que fazem.
Não consigo continuar. Apenas fico a pensar que há quinhentos anos houve um Papa que, no Vaticano, vendia  e fazia trocos  sobre o outro mundo – Céu, Purgatório e Inferno. Foi o famoso caso das “indulgências”, que levou Lutero a revoltar-se, fundando então, contra Roma, as religiões protestantes, hoje espalhadas por todos os continentes.
Esta é uma questão candente, inadiável, mas que nunca foi resolvida: as relações entre a Igreja e o dinheiro. Cada qual reflicta, se lhe sobrar tempo, e pronuncie-se. Da minha parte, vou já tomar um copo de água fresca, como se fora o, infalivelmente, delicioso espumante, baptizado de  “Champanhe de Nossa Senhora”.

17.Mai.17
Martins Júnior


segunda-feira, 15 de maio de 2017

O PAPA FRANCISCO E A RIBEIRA SECA

                                           
Jorge Mário Borgollio nunca ouviu falar da Ribeira Seca madeirense. Nem antes nem, provavelmente, depois de ascender ao trono do Vaticano. No entanto, nunca estivemos tão perto e tão sintonizados no espírito da palavra. Terá sido este contraste que inspirou a  equipa de produção do SENSO&CONSENSO  a colocar em epígrafe a  montagem das duas gravuras-supra. De costas voltadas pela distância territorial, mas tão íntimos e comunicantes pela osmose do pensamento  ou, como o próprio Papa costuma definir, pela corrente da oração.
Em nome desta porção do Povo de Deus em Marcha no recôndito suburbano que ‘não é vila nem cidade’, deixo aqui expressa a mais ampla gratidão ao “Bispo de Roma”  presente em Fátima,  pela descoberta de uma ponte anímica que une uma modesta igreja da ilha  ao novo mundo que emergiu das naves seculares da Basílica Vaticana. Quatro pilares seguram esta ponte identitária, inscrita nos quatro tópicos que Francisco Papa desenhou nas intervenções que produziu em Fátima. Ei-las, em síntese:
1º - TEMOS MÃE!  Disse-o e repetiu o líder da Igreja Católica, para separar o original das fotocópias que os homens fizeram de Maria. O original, foi buscá-lo às fontes bíblicas: O Livro do Apocalipse e o Evangelho, ambos de João Evangelista:  “Eis aí a tua Mãe”. – quer dizer “essa Mulher que está ao teu lado”.  que me acompanhou desde a nascença até à morte, enfim, a Maria-Mãe única, histórica. No acento sonoro do pontífice orante  – TEMOS MÃE –  pareceu-nos ouvir a convicção que, desde há mais de quarenta anos, alimentamos e seguimos:  “Mãe (espiritual) há só uma, Maria e mais nenhuma”. Aprendemos que os figurinos, as alcunhas ou  apelidos, que sucessivamente têm posto a Maria conduzem a uma tresloucada confusão e à mais pagã idolatria, misturadas com lendas pias, arremedos fantasiosos e até alucinações místicas, cuja flagrante contradição imagética está bem patente na mesma Virgem, que é ‘branca’  em Fátima e torna-se ‘preta’  na Aparecida do Norte, Brasil!!! Ou, ainda, a absurda e aberrante superstição, tão propalada,  que a Senhora que está numa imagem em Fátima ou em  Lourdes faz mais ‘milagres’ que a outra, singela e pobre, que habita o modesto templo da aldeia mais longínqua.
2º - SERÁ QUE PROCURAM UMA SANTINHA A QUEM SE PEDE UM FAVOR A BAIXO PREÇO?! – Nunca se ouviu de um Papa, de um bispo ou de um padre doutor da Igreja, uma interpelação tão poderosa e tão brilhante. Só faltou aplicar o termo da gíria financeira, low cost. E teríamos uma Nossa Senhora  a preços de promoção ou rebaixa mercantil. Teríamos, digo mal. Temos – é isso que vemos e ouvimos, em pagelas, orações, promessas, peregrinações e velas de cera estearina. Obrigado, Santo Padre. Há mais de quarenta anos, a ‘nossa’ Senhora do Amparo, na Ribeira Seca,  não aceita que a tratem por uma vulgar merceeira ambulante das feiras populares. O que ela nos pede é que a conheçamos, a Maria histórica, aquela que aceitou ser Mãe de um Filho destinado a ‘carne para canhão’ dos ditadores de então.  E que ponhamos os nossos pés nas suas pegadas, feitas de espinhos e dores, mas plenas daquela coragem que leva aos cumes de uma vitoriosa felicidade!
3º - VÓS SOIS AS CHAGAS ABERTAS DE JESUS – foi assim a consoladora homenagem que o Papa Francisco prestou aos doentes que aguardavam a sua bênção. Esta tão sofrida saudação era o eco das palavras do Padre António Vieira, proferida há quatro séculos, em São Luis do Maranhão, perante os ‘devotos’ gestores das Misericórdias do nordeste brasileiro: “As imagens de Jesus Crucificado que estão nas igrejas são imagens falsas, que não sofrem nem padecem. Imagens verdadeiras de Jesus Crucificado são os doentes, os pobres, os desamparados que padecem e sofrem”.  Que conforto ouvir da boca do ‘Representante de Cristo’ aquilo que já aprendêramos, há perto de cinquenta anos!
4º - DEUS QUER UMA IGREJA POBRE DE MEIOS, MAS RICA DE AMOR – A esta chamada, respondemos logo: Presente! Sem nos conhecer, o Papa Francisco estava a falar connosco, que pertencemos a uma comunidade pobre, durante séculos explorada pelos senhorios da colonia,  uma população que vive do seu  braço do trabalho - actualmente escasso e ingrato -  mas que se une, lutando pelo seu lugar ao sol, na conquista de mais cultura, mais amor, mais alegria. Sem saber sequer onde fica a Ribeira Seca, era de nós que se lembrava e de todos os que, como nós, são “EXCLUIDOS, DESERDADOS E ÓRFÃOS” – exclusão e orfandade por parte das hierarquias, mas não de Jesus e Sua Mãe. Ao lado do “Bispo de Roma” estavam as tais hierarquias clericais da ilha.  Almoçaram com ele à mesma mesa os que, há mais de quarenta anos, nos excluíram e nos deserdaram. Terão ouvido a voz do Chefe?...
Nós ouvimo-la e guardámo-la. Para nosso conforto e nossa força. E para nos assumirmos como  SENTINELAS DA MADRUGADA, cumprindo o seu apelo.  Pode crer o Papa Francisco que em 12 e 13 de Maio de 2017, cumpriu-se na integralidade a sábia filosofia das nossas gentes: “Longe da vista, mas perto do coração”. Estamos juntos! 
        
15.Mai17

Martins Júnior

sábado, 13 de maio de 2017

NOBRE POVO PORTUGUÊS – O PURO SANGUE LATINO!

                                                    
Portugal não cabe hoje no mini-rectângulo do seu berço nativo, nem mesmo no  mar imenso que o liga às ilhas-filhas. “Ganhou tudo o que havia para ganhar”. Desde os neurónios da  cabeça até à planta dos pés! Tudo fervilha e canta e pula, como se esta meia ‘jangada de pedra’ levantasse o voo triunfal de outras eras. Este 13 de Maio, bem  poderiam inscrevê-lo ao lado do Dia de Portugal, geminados os dois pela coroa de louros destinada aos heróis, alcandorados ao olimpo dos deuses.
Esperei até ao dobrar da noite para lançar-me, livre e triunfante, na asa branca desta página. E, de repente, acho inútil perder tempo e tinta perante o magnífico triplo salto que nos foi dado observar na pista transatlântica que é o nosso país. Venha a voz macia e quente do nosso Francisco José e cante,  “baixinho” não, mas  a plenos pulmões ao som da guitarra: “Esta noite ninguém dorme”. Na realidade, corpo e alma erguem-se hoje na trilogia do transcendente que define  a condição humana: a espiritualidade, o vigor atlético e o amor  “pelos dois”, por mil, por milhões. A partir do traço-equador de Portugal, viveu-se a mensagem intimista do espírito, através do líder sócio-religioso na Cova da Iria. Descendo à “capital do Império”, um  novo Tejo, vestido de rubro ardente, desaguava em delta aos pés do Marquês do Pombal. Era o tetra.  E mais longe, noutro meridiano europeu, Kiev erguia o coração exaltante de Portugal numa canção onde cabiam os corações do mundo inteiro.
                                               

Dito isto, o que mais me tocou nesta  euforia estonteante  foi o  afã incondicional, irresistível, roçando o irracional, com que nós e os outros – o vulgo – enquanto espectadores ou co-partilhantes, vivemos cada um destes acontecimentos. Tão díspares, na sua análise epistemológica, mas tão iguais e coincidentes nos efeitos e reacções! Seria preciso abordar um investigador neurologista ou sócio-psicanalista para desvendar o enigma. Desde logo, a começar pelas motivações: quer em Fátima, quer no Marquês ou na Luz, as motivações individuais enfeixam-se no mesmo tronco: a fé, a crença, o afecto. Se lá em cima eram a religião e o amor que empolgavam os ânimos, cá em baixo, ouvia-se escancaradamente: “O Benfica é a minha família, o amor da minha vida”, ou, repetindo o mais famoso de todos, Artur Semedo, “o Benfica é a minha religião”. De um lado, uma imagem tutelar e um líder galvanizador;  do outro, uma estátua inamovível tutelando o cobiçado troféu e um condutor de homens atléticos que os levou ao clímax, sósia de si mesmo, Vitória. Depois, é a multidão, o frenesim contagiante e sempre  o mesmo balbuciar de espasmo: ”Não há palavras”… A mesma equação estava  na ribalta de Kiev: o Troféu do Eurofestival, o palco do artista, os iluminados julgadores-votantes e milhares, milhões de corações aos saltos.
Salvaguardando, como disse, a escala de valores, a questão que se impõe é esta: “Qual dos fãs amará mais? E a qual dos três ‘santuários’ prestará  culto maior? E onde o sensímetro para quantificar a lealdade ou a energia dos ânimos?
                                          
É neste banco raso que me coloco, serenamente, para tentar penetrar nos labirintos do psiquismo humano, sem sectarismos de espécie alguma, procurando entender o individual intimista, conectado com o fragor das multidões. É que a multidão, como é sabido, não é apenas a soma parcelar das partes. É outra entidade e ultrapassa a singularidade empírica do indivíduo.
Mas, afinal, onde me fui eu meter?!... No entanto, é algo que me motiva e me arrasta: mergulhar na profundeza do nosso composto psicossomático. Fica para o silêncio do meu quarto. Porque hoje  é Festa, garbosamente tricolor: a brancura do Papa do Povo, o vermelho do Benfica e o negro-espiritual do Salvador Sobral. Venha cá o Fernando Pessoa  e emende,  não diga mais: “Portugal, hoje és nevoeiro”. Não, que é dia de cantar: “Levantai hoje de novo o esplendor de Portugal”!

13.Mai.17
Martins Júnior        

quinta-feira, 11 de maio de 2017

ÁGUAS DANÇANTES – LEVADAS CANTANTES





Hoje vou poupar as redes sociais à inflação dos dois ‘éfes’ que, de manhã à noite, vão entupindo os canais oficiais da informação. Deixo, pois, sossegados Fátima e Futebol  -  os dois tufões (ambos respeitáveis) que até sábado varrerão florestas, cidades, telhados e cabeças deste país.
Prefiro as breves viagens na minha terra, as que nos trazem aragens calmas e saudáveis, que perpassam à nossa porta e pedem licença para entrar.  São os livros, que hoje se ofereceram aos ilhéus. Na Ponta do Sol, a evocação da Primeira República, pelo investigador Gabriel Pita, à luz do romance histórico “DA CHOÇA AO SOLAR” do Padre João Vieira Caetano,  (1917) apresentado pela Prof. Luisa Paolinelli. No Funchal, a candura do “QUINAS  ” da escritora Violante Saramago Matos, cristalino como um repuxo matinal, porque inspirado e ilustrado pelas crianças das escolas de Câmara de Lobos e Calheta.
O terceiro sopro de frescura ecológica veio ter comigo na apresentação das “LEVADAS DA MADEIRA”, uma obra antológica primorosamente enriquecida pelos textos de escritores portugueses e estrangeiros sobre a epopeia incrustada no basalto da ilha, desde o início do povoamento. A iniciativa do Prof. Thierry dos Santos - com posfácio do Prof. Nélson Viríssimo e fotografia de Francisco Correia – traz um novo traço, ainda não revelado, e um olhar polissémico sobre as nossas levadas, nos seus multiformes contornos, desde o ecológico e literário até ao pragmático e social.
Apreciei a produção poética de escritores madeirenses sobre o mesmo tema (para mim, uma surpresa) e verifiquei que o cantar gorgolejante dos nossos canais de rega ultrapassou a rudeza rural das gentes com quem se entrelaçam as nossas vidas. E associei-me ao ritmo das águas correntes, reproduzindo aqui a letra da canção que, em 2012,  incluí no CD “TERRA DA MINHA SAUDADE”, a qual, composta há mais de duas décadas, foi coreografada no palco da Ribeira Seca, como homenagem à luta quotidiana  dos camponeses desta localidade. Homenagem, sobretudo, à água que fertiliza os nossos campos – tão bendita e sagrada como a água de Fátima – e aos heróicos construtores das levadas “que abraçam toda a Madeira”.

Água que corres baixinho
E vens do alto da serra
Tu és o nosso caminho
Dás o pão à nossa terra

Pão nosso de cada dia
Amassado de amargura
Também nasce da levada
Vem da nascente mais pura

Refrão
 ‘Levada Nova’ da serra
Que vem da ‘Fonte Vermelha’
Passas na Ribeira Seca
Cantas com ela à parelha

Água que vens de lá de cima
Bem vês a nossa canseira
Do povo do nosso campo
És a mãe e a companheira

Levadas da nossa terra
Que vivem à nossa beira
Lá andam de terra em terra
Abraçam toda a Madeira

11.Mai.17
Martins Júnior