quinta-feira, 13 de julho de 2017

“O HERÓI SERVE-SE MORTO”


        Passou-se um mês…e para o grande vulgo nada se passou. Desceu à terra fria um gigante, um herói…e hoje já ninguém dá por isso. Os dias sucedem-se às noites e estas sentam-se ociosas na almofada dos poentes. Enfim, mais uma peça “inútil” a abater à carga!
         Dando cumprimento à palavra dada após os 500 textos do “Senso& Consenso”, escolhi este 13 de Julho para trazer à mesa fraterna dos que  ainda não embotaram os sentidos o Grande, Imenso, Alto e Brilhante ALÍPIO DE FREITAS, ele que via o invisível quando, no fim da vida, se lhe queimaram as pupilas para o mundo e definitivamente se apagaram em 13 de Junho. Não vou erguer-lhe o mausoléu da obra que construiu ao longo de oitenta anos, intensamente, apaixonadamente vividos na luta pelos camponeses escravos no Brasil e em Moçambique, nem lembrarei as torturas sofridas durante a ditadura militar brasileira. Porei de lado os estatatutos de padre, jornalista, professor universitário.  Dele falou e cantou José Afonso na “Baía de Guanabara/ Santa Cruz na fortaleza/ Está preso Alípio de Freitas/  Homem de grande firmeza”.
         Hoje apetece-me ‘curtir’, entre a mágoa e a valentia, o “desfado” ao qual se candidatam irresistivelmente os verdadeiros heróis, os que não esperam louros nem rosas brancas na tumba nem monumentos nas praças. São os que morrem em combate, cientes e conscientes de que nunca avistarão a palma da vitória. E, por isso, cinco luas passadas, já ninguém dá pelo seu rasto. Foi assim Alípio Freitas. Conheci-o em Lisboa, aquando do lançamento do meu CD em Lisboa, na Sociedade Portuguesa de Autores e na Associação José Afonso. Apalavrámos uma sua presença na Madeira e, imprevistamente, ficámos com a sua ausência para sempre. Dói-me muito não  ter concretizado esse sonho. Rebobino o filme da vida  e a ferida cresce  (sinto-o agora, mais que nunca) ao lembrar-me que estaria ele  encarcerado  na prisão da Praia Grande de Santos, em 1972, quando pessoalmente contactei com padres e bispos  da Teologia da Libertação (recordo em especial Duarte Calheiros, de Volta Redonda, Rio de Janeiro; Hélder da Câmara, de Olinda e Recife) ) e não consegui visitá-lo. A ditadura militar era implacável.
         Aperta-se-me o coração ao constatar forçosamente que aos heróicos bandeirantes da Verdade e do Bem está reservado um patíbulo infrene e aos corcundas do espírito, malfeitores sem lei, sanguessugas ajuramentados  espera-lhes um trono real! Que maldito solo é este - e até quando? -  em que a sociedade, o povo, beijará os pés a um facínora e crucificará no madeiro quem lhe traz o Novo Dia, a sua hora libertadora?! Por esse chão minado passou o Maior, o Protótipo do Heroísmo. Mas pior lhe aconteceu: continuou a ser lembrado, só para lhe beberem até ao tutano o sangue e com ele se locupletarem à mesa dos Judas de todos os tempos. Razão tinha Antero de Quental, ao discutir diante do Crucifixo: “De que  serviu o sangue/ Com que regaste, ó Cristo, as urzes do calvário”?
         Um mês após a curva de caminho em que ‘deixou de ser visto’ Alípio de Freitas, vislumbro, com ele, o cortejo dos “Humilhados e Ofendidos”, de toda a História, mas sempre firmes na liça e na luta até ao final, sem avistar a Terra Prometida (esse o maior espinho no peito do bíblico Moisés) acode-me à emoção a sentença escrita pelo eloquente poeta moçambicano, Reinaldo Ferreira: “O Herói serve-se morto”. Duro, mas exacto, como o gelo da pedra fria.
         Mas a mágoa transfigura-se em força e valentia. Os braços mutilados do Combatente desfazem-se em cinza, mas ficam de guarda as armas do Herói, o seu talento e o rio subterrâneo do seu ideário  que, um dia, incerto na hora  mas certo no zodíaco do tempo, dará flores e fruto.  Para conforto meu, leio hoje no “El Mundo”   que  o assassinato cruel de Miguel Angel Blanco pelos etarras é hoje reconhecido como o marco inicial para a extinção do terrorismo interno em Espanha. Já nos advirtia o Mestre:”Uns são os que semeiam, outros são os que recolhem”. Deles diria Pessoa: “Valeu a pena”!   E de Alípio de Freitas diremos nós: “Essa é a tua glória”!

13.Jul.17

Martins Júnior

sexta-feira, 7 de julho de 2017

500 DIAS = 5 PAUTAS, 5 DEDOS, 5 SENTIDOS, 5 ESTROFES…

   Quando me seduzi pelos tempos ímpares, desde Outubro de 2014, comprometi-me a fixar 500 textos. Acabei de cumpri-los hoje mesmo. Soavam as badaladas de cada dia ímpar e logo batiam dentro de mim os apelos do dever assumido, dever-prazer de estar com quem, longe ou perto, geminava comigo ideias e sensações. E a quem deixo a grata expressão do meu reconhecimento.
Faz de tudo este pombo-correio das redes sociais. Transporta no bico penugens de afecto, semeia “canções ao vento que passa”, espalha mágoas e atira setas certeiras em alvos incertos, esbanjando perdulárias risadas de primavera  sem data. Por outras palavras, tudo se escreve nas águas correntes, conforme ao gosto do autor e ao sabor do incógnito espectador. Pela parte que me toca, o compromisso nunca foi o de encher  canais ou poluir o ar que os outros respiram, mas sim o de conectar-me com a força anímica que move montanhas e alavanca os espíritos.  Porque, afinal, “nenhum homem é uma ilha”!
Tocado pelo mesmo impulso, decidi caminhar por nova pista, paralela à anterior, num projecto mais amplo e consistente. Porque “o tempo é a medida de todas as coisas” e fica sempre escasso, estabeleço uma pausa estival nos “dias ímpares”  permanecendo, no entanto, com os meus “compagnons de route”, amigas e amigos, apenas duas vezes por semana.
Tirando a “prova dos zeros” aos 500 dias anteriores,  reduzo-os aos 5 dedos da minha mão aberta, ofereço-os como os 5 sentidos do meu todo e  componho-os como se fossem  5 estrofes sonoras nas 5 pautas da sinfonia de cada vida.  Quanto desejaria, enfim, que ficassem como 5 estrelas alumiando as 500 noites do SENSO&CONSENSO!
Estamos juntos!

07.Jul.17
Martins Júnior  
    

quarta-feira, 5 de julho de 2017

“FADO E DESFADO”, VIDA E MORTE, ANA MOURA E MARISA


“O Meu Caso” é o dele, José Régio, o teu, o meu, o nosso – comentava  assim Jorge de Sena o teatro do autor do ‘Cântico Negro’. Cada um tem o “seu caso”.  O “meu” hoje sai fora dos redemoinhos cruzados das questões que têm agitado a opinião pública e a publicada. Hoje entro pelo postigo do meu mundo, que guarda, no seu silêncio subaquático, a vida e a morte. E que há de mais alto e profundo, mais retumbante e mais íntimo, mais certo e incerto do que as duas alcovas  em que andamos todo o tempo inconscientemente embalados: o berço e a tumba?!...
Faço, pois, uma pausa no deslumbramento ou na censura sobre os grandes “casos”  que nos cercam e sento-me no banco de pedra do meu terreiro  (se quiserem, podem  sentar-se ao meu lado) para viver um “caso”, este “caso”.
Ao longo dos quase cinquenta anos de vida em comunidade, hoje foi a terceira vez que a família do corpo presente, -- o que foi “ pó erguido e agora pó caído” -- pediu que a última despedida do templo fosse uma canção, não daquelas alienantes que temerariamente adivinham o outro mundo, mas um sopro  de gratidão e saudade nascida no coração deste mundo.
Da primeira vez, veio a filha mais jovem da "Teresinha" (assim lhe chamavam em vida) e pediu-me que realizasse a última vontade da mãe: ”Quando o meu caixão sair da igreja quero ‘ouvir’ aquela canção do sr. padre ‘Festa, Festa do Povo, do Povo que trabalha e faz o mundo novo’. Porque é essa a canção que alivia as minhas dores quando não posso  sofrer mais”. E assim se cumpriu, com a mágoa apertada ao peito.
Da segunda vez, o criativo e brilhante animador das festas e convívios da nossa comunidade, o Carvalho, foi ele próprio que, ao aproximar-se o meridiano que segura o fio da vida, fez o testamento vital do seu desejo: “Ao sair da igreja, peço  aos meus amigos e  companheiros da alegria que toquem e cantem  quadras ao desafio do ‘bailinho’, como quando eu cantava com eles”.  Alguns não tiveram coragem, outros cumpriram. E a morte fez-se vida naquela hora final.
Hoje, foi o  terceiro caso.  A  mãe, “estátua jacente”, de oitenta e cinco anos de idade, juntou-se ao filho, de quarenta. Ela, aqui, na ilha.  Ele, em Londres, mês de Abril,  prematuramente descido ao húmus do berço derradeiro. Três meses os separaram, mas uniu-os hoje o salmo ondulante da “Chuva” com que a voz de Marisa sublimou a inspiração de Jorge Fernando. Foi uma oração ouvida e seguida por todos como um  cântico auroreal de eucaristia. Mais uma vez, cumpriu-se a última vontade.
 Recordo ainda esse dia  de sol, em Lisboa, quando o lutador dos tempos modernos, o saudoso amigo e conterrâneo nosso,  Paquete Oliveira, saiu  da Basílica da Estrela, envolto na magia esvoaçante do “Desfado” de Ana Moura. Foi a marcha emocionante para a entrada na alameda da Casa Comum dos Olivais.
Não me sai da retina o cortejo final de Zeca Afonso pleno e perfeito na sonoridade das canções que criou,  enchendo as ruas da sua cidade.
Para quem cumpriu o seu mandato na Ilha Verde ou no Planeta Azul, o fim é o ‘descanso dos heróis’ e o que o vulgo chama de caixão, logo deixa de sê-lo, para transformar-se em pódio de vitória e trono de glória imorredoira.
No banco de pedra do meu terreiro vejo também “O Meu Caso”, o dele, José Régio, o teu, o meu, o nosso!

05.Jul.17
Martins Júnior



segunda-feira, 3 de julho de 2017

FERNANDO PESSOA PERGUNTA, MACHICO RESPONDE


Em cada ano, chegado o mês de Julho, a Descoberta renasce e toma o encomiástico  sobrenome de Redescoberta. É assim em Machico. E é-o na Madeira. Porque nisso deve consistir o corpo de toda a efeméride evocativa dos primórdios do ‘Achamento’. E mais que o corpo, é o seu espírito que deve enformar as comemorações do nascimento da Ilha para a História.
Já ontem referi as encenações proclamatórias da Autonomia e observei a liturgia enfaixada com que os titulares e os títeres do poder pretendem engalanar-se aos olhos do vulgo, sem que para isso tenham factualmente contribuído.
Muitas e sonoras parangonas, frases feitas, estados de alma sôfrega de mais Autonomia, clamorosos panegíricos aos 600 anos! Faltou apenas o essencial – o essencial apenas – faltou ali Fernando Pessoa a apostrofar os patrioteiros regionais com o mesmo tom com que se dirigiu ao “Mar Salgado’… “VALEU A PENA”?!
Viro as costas aos vernizes do “teatro das operações” oficiais, incandescentes da hipocrisia encobridora de interesses corporativos, partidários, jogos assolapados do poder político-económico --- e volto-me para Machico, o Pórtico das Descobertas, e pergunto, olhos nos olhos, aos meus conterrâneos e a mim próprio: Valeu a pena terem aqui chegado Tristão e Zargo?... Que diriam se voltassem ao berço que eles deitaram neste solo para criar e fazer crescer 598 anos de vidas, sonhos e ambições?
Deixo para o julgamento da História as décadas e os séculos que não foram nossos e cravo os olhos na majestade deste vale: “Que fizemos deste mar, deste céu e desta terra que nos deram para cuidar como inquilinos e possuidores?... Sente-se cada um de nós senhorio e colono, benfeitor e beneficiário, dono provisório e utente inteiro desta nesga de húmus vivo, que sendo nosso deixará de sê-lo mais tarde?... Que remos e velas temos içado para fazer deste ecológico berço de outrora uma baía de humanismo e  esperança no futuro?... Que passos temos dado para alcançar o cume destas montanhas que nos chamam a amar o sonho e o ideal de um Povo Melhor?...
“TUDO VALE A PENA SE A ALMA NÃO É PEQUENA”. Respondeu Fernando Pessoa. Mas queremos mais: Que o corpo acompanhe a alma! Mais que um fugaz estado de alma, Machico quer plasmar no concreto quotidiano o plano produtivo que animou o Visionário Infante no promontório de Sagres que tornou a Ilha numa sementeira fértil e promissora para a economia, para a arte e para a ciência dos oceanos.
Esta é a nossa hora, porque em toda a hora soa aos nossos ouvidos a sábia palavra: “Não perguntes o que é que a tua Pátria pode fazer por ti. Pergunta, antes,  o que é que tu podes fazer pela tua Pátria”?
À interpelação de Fernando Pessoa, Machico responde:
Por nós, aqui e agora VALEU A PENA!  

03.Jul.17

Martins Júnior

domingo, 2 de julho de 2017

COM A AUTONOMIA ME DEITO E COM A AUTONOMIA ME LEVANTO!


      No arrazoado semântico deste enunciado quero sintetizar a elasticidade material do conceito de Autonomia, extensivo aos mais diversos sectores de uma sociedade organizada. Descendo à profundidade da análise, verificamos que o privilégio autonómico não se esgota num único estatuto social ou administrativo, antes pelo contrário, distribui-se e estrutura-se em diversos planos, todos convergentes para um mesmo objectivo: a realização concertada do serviço público. Ao fim e ao cabo, nisto reside o valor inestimável do Princípio da Subsidiariedade, solenemente reconhecida pelo Tratado de Maastricht.
         Assim, é na intersecção dinâmica de todas e de cada uma das   Autonomias que os poderes públicos levam a cabo a construção do denominado  social welfare. Neste entendimento dir-se-á da Autonomia o que se atribui aos direitos: a minha Autonomia acaba quando começa a Autonomia do outro.
         Para nós, Madeira e Machico, as duas datas justapostas – 1 e 2 de Julho – são a materialização  perfeita do que venho afirmando. Com efeito, oficialmente, o 1 de Julho releva a Autonomia da Região. E o 2 de Julho, Dia do desembarque das caravelas henriquinas no Cais do Desembarcadouro, representa a Autonomia da Freguesia de Machico, consignada à sua Junta.
         Duas Autonomias, ambas respeitáveis na sua essência qualitativa, embora diversas na extensão quantitativa dos poderes e atribuições. Por isso, posso constatar e afirmar que ontem, 1 de Julho, anoiteci com a Autonomia da Região e hoje, 2 de Julho despertei com a Autonomia da minha Freguesia. E porque “a História exalta o triunfo dos vencedores”, (dos mais poderosos)  e, em proporção inversa,  subverte os poderes menores, assim também a nossa comunicação social abre-se toda à efeméride regional, deixando nas pregas do esquecimento a Autonomia Local. É a vida, diria alguém. Vida injusta, refractária, antipedagógica! E que devemos corrigi-la.
         Mas, se as sebentas diárias assim procedem, o mesmo não deveria acontecer com quem detém competências governativas hierarquicamente  superiores. A coincidência cronologicamente similar das duas datas tem de suscitar nos poderes regionais o culto das Autonomias Locais, Câmaras e Juntas de Freguesia, mais que não fosse  por imperativo constitucional. Saturámo-nos, num passado recente, das barbaridades de quem, da torre da vigia, bradava e espumava que “Machico era o terceiro mundo”  ou que “Para Machico nem um tostão”.  Pior fica, hoje, ao inquilino da mesma torre esticar os maxilares e, de forma grotesca, imitar  ‘o velho ocupante’ esganiçando uns pregões de feirante barato com aleivosias do mesmo género, que “as Câmaras onde a Oposição governa são uma nulidade e um prejuízo para a população”. Ele, que deveria envergonhar-se de o repetir (até porque nem jeito tem para isso) pois, se recorresse à memória, lembrar-se-ia que a sua primeira ascensão à presidência autárquica foi-lhe dada de bandeja pelo ‘velho inquilino, seu mecenas’, quando o verdadeiro presidente eleito bateu com a porta…
         Juntei hoje as duas Autonomias num mesmo palco. Mas que diferença!... Lá nos salões nobres, os enfatuados rapazes do poder (conheço-os suficientemente nessa veste e de  um passado ainda fresco) alinhadinhos, espartilhados numa importância indisfarçadamente balofa a espadanar  “Autonomia, mais Autonomia e ainda mais Autonomia”, eles que nada fizeram para que a Constituição de Abril reconhecesse os direitos insulares. O cepticismo leva-me a bocejar de um humor amarelo torrado.
         Ao contrário, em Machico, batiam as doze badaladas e em pleno campo aberto do centro da cidade, a expressão genuína da Autonomia Local  proclamava a Liberdade, conquistada a pulso pelas gentes de Machico (alguns já no reino inacessível) apesar das bastonadas, coronhadas, machadadas  infligidas na dignidade “Deste Povo/ Que trabalha/ E faz o mundo novo”.

         01-02.Jul.17 
Martins Júnior