sexta-feira, 31 de agosto de 2018

QUEM OS VIU E QUEM OS VÊ?... QUEM NOS VÊ E QUEM NOS VERÁ?...



Na transição de cada duodécimo do calendário, vem-nos à memória uma outra frase batida: tal como o clima transitivo, também a vida é, toda ela, transitiva - a vida, o clima, o regime, tudo é transitivo. E somos nós  os criadores, conscientes ou não, da transição
Os regimes transitivos. Têm-me fustigado no mais íntimo as notícias de dois regimes exemplares:  Nicarágua de Daniel Ortega  e  Myamar de Aung Suu Kyi, a líder-de facto do povo birmanês.
Quem se não lembra da sangrenta luta sandinista contra o ditador Somoza? Quem poderá esquecer o povo nicaraguense, a família Ortega, os intelectuais, com especial relevo para a Igreja na oposição, com especial relevo para o escritor e poeta jesuíta Ernesto Cardenal, mais tarde ministro da Educação do seu país. Todos heróis da reconquista da liberdade para o massacrado povo da Nicarágua. No entanto, que atmosfera se respira  em solo nicaraguense?... São recentes as agressões de Daniel Ortega contra os mais elementares direitos humanos. Perseguições, represálias e prisões sucedem-se em série, dizem as crónicas. “39 anos após a revolução, o herói sandinista tornou-se um tirano”.
Myanmar – antiga Birmânia. Uma mulher corajosa anti-regime é presa e assim permanece durante 15 anos. Libertada em 2010, mais  reforça a sua liderança na luta pela paz e contra a descriminação racial. O seu maior troféu foi o Prémio Nobel da Paz, em 1991. Ganhou, por mérito próprio, lugar cimeiro na galeria  dos heróis. Entretanto, agudizam-se as reivindicações dos ‘royingya’, aos quais o governo de Myanmar recusa conceder nacionalidade. É então que o governo intensifica uma tremenda vaga de expulsões daquela pobre etnia, ao ponto de um alto comissário da ONU ter exigido a demissão de Suu Kyi, pelo seu silêncio face aos trágicos acontecimentos e a devolução do prémio recebido em 1991. O êxodo forçado dos ‘royingya’ para o mísero Bangladesh tem sido equiparado a um genocídio humano.
E a pergunta – o pesadelo – é: Como foi possível tamanha contradição? Mais que as alterações climáticas, assusta-me a medonha capacidade do “Bicho-Homem”  em deitar por terra tudo quanto lhe custou a erguer! Que alucinante transição é esta de destruir com tanta indiferença o que gerações construíram com dor e amor ?!
O fenómeno não é novo. Pertence ao ciclo da história. Se rebobinarmos o filme, detectamos que até as grandes instituições – os seus homens e mulheres -  percorreram cegamente os mesmos trilhos. Lembremo-nos de uma Igreja que, de perseguida, passou a perseguidora, de proletária, a milionária, imperialista. Mais recentemente, está à nossa porta essa mesma maldição (dos homens e das mulheres de hoje) que transformaram o Eldorado de uma Venezuela num antro de miséria e abandono.
Neste tempo transitivo, somos nós os responsáveis pelo rodar da carruagem em que viajamos! Quem nos vê hoje e quem nos verá amanhã?
31-Ago-01.Set.18
Martins Júnior

quarta-feira, 29 de agosto de 2018

QUEM QUER FAZER DA “SENHORA” UMA SEM-ABRIGO NA CIDADE?...




         Nunca se sabe de onde se solta um vespeiro. Tantas e tantas vezes, de onde menos se espera. Aconteceu nestes dias e parece que está para durar a batalha campal no terro nu da extinta e ‘mártir’ Capela das Babosas,  símbolo do idílico remanso da freguesia do Monte.
Confesso que  já tinha dado por findo o tempo-de-antena sobre o caso. No entanto, se fosse possível alinhar as diversas intervenções públicas nos poros de um carvalho antigo, dir-se-ia que um vendaval, semelhável ao tal vespeiro, tomou conta das redes sociais, cá do burgo. Tudo à volta do magno dilema: reconstruir – ou não - a dita ermida. A que se anexa um apêndice não menos saltitante: com ou sem o dinheiro do governo.
Do debate, deveras animado, apenas me interessa aferir o barómetro ideo-pragmático dos intervenientes, as motivações, as fés, os impulsos de quantos escreveram o seu parecer, enfim, uma enciclopédia de mil títulos contraditórios expostos na feira das liberdades. A todas as opiniões é devido aquele inalienável direito que a todos os seres assiste: o direito de existir. Seguramente, o estendal de sentenças pendurado no fio da ‘net’ daria um excelente study case  para psicólogos, sociólogos, bruxos, economistas e, sobretudo, teólogos especialistas em exorcismos e quejandos.
Porque empenhar qualquer esforço apologético (pró ou contra) neste ‘peditório’, acho-o tão inútil como as escaramuças medievais sobre o sexo dos anjos, limitar-me-ei hoje e apenas a observar duas das falanges defensoras da reconstrução, dotadas do mesmo ardor patriótico-religioso com que os cruzados foram guardar (?) os Lugares Santos em Jerusalém.
Na primeira falange estão os devotos, a diocese, os reverendos, os vendedores de velas, os feirantes. Entre eles, recortei uma voz misticamente bem timbrada: “Dêem um tecto a Nossa Senhora da Conceição”, à qual respondeu o respectivo eco: “Não há paz no Monte sem a Senhora voltar para sua casa”. Acaso, quem proferiu tal e enorme sentença saberá de quem está a falar? De que Senhora?... Ai, uma Senhora-Virgem na rua, ao rigor do tempo, quem na acode? Ai, que já temos mais um “sem-abrigo” na cidade do Funchal. E é uma jovem refugiada, de gesso ou de pau, sem eira nem beira…Quero sublinhar que o ridículo e a eventual  ‘blasfémia’ desta interpretação estão só na boca de quem pediu um “tecto para Nossa Senhora”! Os povos primitivos, os pagãos e os idólatras não pediriam melhor…
No outro pelotão do exército pró-Babosas estão os que, extravasando os limites do debate – a citada Capela – alegam a necessidade de construir igrejas e templos, onde reunir-se a assembleia dos cristãos. Inteiramente de acordo. O espaço físico é condição determinativa para agregar os correligionários e simpatizantes do mesmo credo. Não é este o caso das capelas. Estas (segundo rezam as crónicas) são normalmente feudos exclusivistas, pois os grandes senhorios e fidalgos de outrora faziam garbo em possuir uma capela privativa dentro do seu palacete, a qual, por especial condescendência do morgado, era aberta ao povo (caseiro e escravo) em certas datas do ano. Noutras circunstâncias, as capelas não constituíam o fórum da comunidade, antes tinham (e ainda hoje têm) origem em devocionismos locais ou regionais, hipotéticas aparições à mistura com medos e superstições.
E para quem tanto se preocupa em “arranjar um tecto para Nª Senhora”, aconselha-se uma volta à ilha e registe quantas casas, santuários, estalagens, nichos, oratórios, capelas e  capelinhas tem a Senhora da Conceição para recolher-se e deixar de ser mais um “sem-abrigo” na “Singapura do Atlântico”. Aqui, poder-se-ia lavrar em letra de lei: ”Não ofendam mais Nossa Senhora, que já está muito ofendida”. Tenho para mim que, assim como o Vaticano é o muro da vergonha que não nos deixe ver a verdadeira face do Cristo, assim também as milhentas capelas e títulos-alcunhas que, ingenuamente, dedicam a Maria só servem para encobrir, também ingenuamente, a beleza, a coragem e a persistência da verdadeira, da histórica Mãe de Jesus.
Para concluir e não mais voltar a estas manobras de diversão (a Madeira, a Igreja e o Povo  não terão problemas mais importantes e decisivos que a Capela das Babosas?...) acrescentarei que as igrejas-edifício material têm de inscrever nos seus códigos uma função eminentemente social. Elas são também “casas-do-povo”, pertença da comunidade e, como tais, deveriam estar abertas à cultura, a sessões e concertos, como felizmente já vem acontecendo nesta ilha. Igrejas e capelas, apenas como monumentos, são sarcófagos anunciados.
Já o disse o Papa Francisco: “A Igreja tem de sair para a rua”. Tem de abrir-se ao Povo!    

29.Ago.18
Martins Júnior         


segunda-feira, 27 de agosto de 2018

IGREJAS E CAPELAS: QUEM AS FAZ E MANDA NELAS?


                                                      

Foi deveras acalorado o debate que no areópago da net provocou a hipotética reconstrução da Capela das Babosas, engolida pelo furacão de 2010. Maior fricção se eriçou entre os participantes quando veio à tona essa peregrina decisão de reerguer a ermida a expensas do governo.
Peço autorização para entrar na liça, levado não pela emoção de momento, mas pela análise fria da história. Depressa chegaremos à conclusão de que a construção de santuários, basílicas, templos, capelas e capelinhas estão para os governos como a banana para os macacos. Nenhuma instituição está tão interessada em levantar igrejas e catedrais como    o poder político. É uma irresistível atracção dos governantes para assentar arraiais no campanário da aldeia como no carrilhão das catedrais. Aliás, o próprio termo ‘basílica’ significa  ‘mansão do rei’, Santuário Real. Aliás, foi este o argumento com que o Sumo-Sacerdote impediu o profeta Amós de proclamar os oráculos divinos no templo de Betel, pois “este - avisou o Pontífice – este é o Santuário do Rei” (Amós, 7,13).
Não menos sintomática é a coincidência entre a construção das mais sumptuosas basílicas e a motivação que lhes deu origem. Quase sempre tem por inspiração e ocasião uma guerra ou um feito arrasador perpetrados pelos construtores do sagrado monumento. Começando  na primeira basílica construída em Roma pelo Imperador Constantino (Basílica de São João de Latrão, actual sede oficial dos bispos de Roma, os Papas) em agradecimento pela vitória alcançada contra o rival Maxêncio, em 312,  até ao especioso Mosteiro da Batalha ou de Nossa Senhora da Vitória, Portugal, mandada erigir por D.João I (1387-1388) para assinalar a vitória  contra os castelhanos, em Aljubarrota – há sempre um engenhoso móbil, estranho à fé e à pura espiritualidade.
Citei apenas dois exemplos, iniludivelmente comprovativos das motivações sobre as quais assenta o grande volume das construções eclesiásticas: a passada de leão, disfarçada de pomba branca da religiosidade popular. Fala-se, então, da fé do povo só para cobrir de um manto diáfano instintos obscuros. A ostentação de formas, mais evidenciada no barroco, demonstra bem a preocupação do poder absoluto distribuído e mutuamente segurado pela Coroa e pela Mitra. Mau presságio para os crentes: quando é o governo o maior interessado em construir igrejas e casas paroquiais: estamos perante mais um embuste dos açambarcadores de feira Aqui assenta como luva na mão o velho axioma: Time Danaos, etiam dona oferentes – “Cuidado com os gregos, mesmo quando te oferecem presentes”. Neste contexto, os madeirenses já tiveram treino e espectáculo que cheguem.
Antes, no meio e depois deste passeio breve pela história, forçoso é voltar às fontes. Definiu bem o Mestre a essência de todos os templos e santuários, quando um dia exacerbou os pontífices do judaísmo: “Podeis destruir este templo, porque em três dias  sou capaz de reconstruí-lo”. E logo a seguir o texto esclarece: “O templo a que Jesus se referia era o seu próprio corpo”. (Jo.2, 19-21).  Sublime e peremptória definição, porque um corpo indefeso e doente merece mais atenção do que as quatro paredes de um santuário.
Quanto à extrema necessidade de um templo para a fé, o Mestre é lapidar, eloquente, quando falou à Samaritana: “Mulher, podes crer que nem neste monte  nem em Jerusalém adorareis o Pai. Vai chegar a hora – e é esta mesma – em que os verdadeiros adoradores do meu Pai adorá-lo-ão em espírito e verdade” (Jo.4, 21-13).
Que dirá a história e que dirá Jesus diante do apetite de algum povo e diante de uns restos de parede que um governo pretensamente quer levantar do chão?  
Não posso sair deste “templo” reflexivo, sem reescrever dentro de mim o que proclamou o Padre António Vieira, há mais de quatrocentos anos, na super-aristocrática Igreja da Misericórdia em São Luis do Maranhão, nordeste brasileiro, onde o povo não tinha hospital, nem sequer enfermaria:
“Melhor fora que houvesse hospital e não houvesse igreja. Mas se outra forma não houver, converta-se esta igreja em hospital, que Deus ficará mui contente disso”!!!

27.Ago.18
Martins Júnior
  
          

sábado, 25 de agosto de 2018

“BABOSAS” DO MONTE EM DEBATE: SIM OU NÃO ?


                                                      

Mais uma vez o debate. É dele que se faz a luz e dele é que nasce o dia. Debater é viver.  Porque ele vem do alto. Da montanha ou  da cidade.
E hoje ele aí está em Carta Aberta. Das muitas encruzilhadas que trazia comigo para debate em fim de semana, abandonei-as todas quando me caiu nas mãos essa eloquente Carta Aberta aos governantes ilhéus. Ela vem dos altos da cidade, do extenso “São Roque” e traz a marca do arauto mais corajoso desta ilha, Padre José Luís Rodrigues.
Leiam-na - com a mesma frontalidade com que foi escrita. Está aberto o debate. É a Capelas das Babosas, no Monte, sob o título de Capela da Senhora da Conceição. Reconstruí-la… ou não? Para cúmulo, reconstruí-la com o dinheiro do governo, que é dinheiro do povo?...
Também quero entrar na mesa, mas prefiro saborear a clareza e a segurança do texto referido. Ao mesmo tempo, ressoam-me aos ouvidos fervorosas sentenças  difundidas na rua, nos templos, nas reportagens tais como esta: “O Monte nunca mais terá sossego enquanto a imagem da Senhora não voltar para a sua Capela nas Babosas”!
Enquanto fico à escuta de mais interpretações neste debate, limitar-me-ei a reproduzir o diálogo em  que fui interveniente com o bispo Duarte Calheiros, em sua humilde casa de Volta Redonda, na periferia da grande cidade do Rio de Janeiro, no ano de 1972. Do século passado.
O bispo acabara de chegar no seu Volkswagen oval, conduzido pelo próprio. E foi esta a minha pergunta:
- Senhor Bispo, andei toda a manhã pelas ruas da  cidade e não vi a Sé da sua diocese. Onde fica, porque quero visitá-la.
O bispo, um robusto homem dos seus 60 anos de idade, sorriu, pegou-me pelo braço. Levou-me à varanda que dava sobre a cidade. E, sem mais delongas, atira-me com esta capciosa provocação:
- Padre português, você vê acolá aquele pavilhão de zinco cinzento?... É uma grande oficina, onde laboram três dezenas de metalúrgicos? … Essa é a minha Sé. A sede da diocese. E mais à esquerda, você repara naquela fábrica. Para ela trabalham mais de 100 operários. Essa também é a minha catedral. E mais lá ao fundo, quantas vê você, padre jovem português?... Todas esses telheiros são os altares da minha diocese. Entendeu agora onde fica a minha Sé Catedral?!
Entendi. E de tal forma que jamais esqueci. O templo, a igreja, o altar estão onde estão as pessoas. Na vida real, no trabalho, na luta, na acção.
Por hoje, aqui me quedo. Está aberto o debate. Saia Luz!

25.Ago.18
Martins Júnior

quinta-feira, 23 de agosto de 2018

CAMPA RASA OU PANTEÃO: QUEM TEM RAZÃO?


                                                                    

                Nesta estação ligeira, embora acalorada pelo sol e pela floresta indefesa, paira nos ares a sombra inquietante de um quase-fantasma: o debate. Ele aí está ao virar da esquina, ao dobrar a folha do jornal. Pode, pois, arvorar-se em tarja larga o axioma: Debater é Viver.
         E o debate faz bem. É saudável. Não precisa ser apaixonado, gárrulo, maniqueísta. Debate, exige-se-o dialogante, ponte pênsil entre duas certezas opostas. Porque, ao fim da refrega suspensa, chegamos sempre à síntese final: a razão está dos dois lados. Por outras palavras: no debate sério e transparente, o pêndulo da verdade balanceia-se entre um extremo e outro, há parcelas de luz divididas entre as penumbras em litígio. Daí, a serenidade e  a objectividade, como pilares fundamentantes do verdadeiro debate.
         Sem esquecer o facto inicial que deu o mote a estes dias – o debate – chega-nos imprevistamente , mas muito oportunamente, a questão difundida nas redes e na comunicação social: ZECA AFONSO NO PANTEÃO NACIONAL! Sim ou não?
         A Sociedade Portuguesa de Autores, promotora da iniciativa, levanta um mausoléu, um trono, um altar e aí cita Luís Vaz de Camões, exaltando o Cantor de Abril “entre os barões assinalados… os que da lei da morte se vão libertando”.  Porque ele merece. Porque todos os portugueses são-lhe devedores da Liberdade que ele cantou, sofreu e ajudou a implantar em Portugal.  E continua o clamor apoteótico: “Ditosa Pátria que tal filho teve”!
         Mas do outro lado do rio da História, está alguém que não cita Camões nem Pessoa, mas que em silêncio vai curtindo uma saudade irmanada com o pensamento do Zeca: “Ele recusou sempre os louros do regime, voltou as costas aos medalhões decorativos da hipocrisia oficial. Até deixou marcado em caracteres de dor macerada mas reconfortante o seu último desejo: sepultar-se em campa rasa… Como, pois, renegar a última vontade do seu autor?... Seria uma traição ao pensamento e à coerência existencial de Zeca Afonso”!
         Este o argumentário sentido do outro lado da ponte do debate.
         Então, em que ficamos? Quem tem razão – a SPA ou a família do precursor de Abril? E quem se atreverá a dirimir a questão? Em boa verdade, ninguém. Porque ambas as partes têm razão. “É o drama deste mundo – escreveu Gilbert Cesbron – todos têm razão”. Porque tudo depende da cor dos olhos que vêm a paisagem, o rio, o debate.
         E que farão as “hostes” em confronto? Gritar, terçar armas, guerrear por causa de Zeca Afonso? Mas como, se ambos os redutos pretendem o mesmo objectivo – estar com Zeca Afonso?!...
         Eis aqui o paradigma de todos os debates. Há sempre parcelas de luz nas duas frentes em litígio. Daí, os dois pressupostos estruturantes de qualquer debate: Serenidade e objectividade.
         Pela minha parte, confesso a minha tímida oscilação entre os dois pilares da ponte pênsil e o meu coração balança entre os dois. Entretanto, ao recordar essa tarde memorável em que me juntei à multidão-povo genuíno, cantando pelas ruas da cidade todas as “Grândola’s” do mundo,  antes de vê-lo romper a terra-campa rasa onde quis  ficar, deixo aqui expresso o meu voto, num breve excerto, transcrito nos “Poemas Iguais aos Dias Desiguais”,  por ocasião do 30º aniversário da sua morte:

FALA DO ZECA NA LOUSA 1606
Nem mausoléu nem flores
Nem mesmo campa rasa
Nem tubas nem tambores
Não me tragam rosas bem-me-queres
Porque eu não estou aqui
Nunca foi esta a minha casa

Vagueio errante mas não errado
E estou sempre onde estiveres
--------------------------------
Eu estou em ti
Tu és o meu país
Que desbravo e cavo
Para encontrar
Vermelho como um cravo
O corpo morto do meu povo cativo
------------------------------
Eu não morri
Porque vivo em ti

23.Ago.18
Martins Júnior

terça-feira, 21 de agosto de 2018

NOVO MILAGRE DO DEBATE




Todo o debate é útil. Seja qual o seu desfecho. Umas vezes, levará a mudar de rumo, a erradicar todo um passado. Outras vezes, obrigará a voltar ao porto de partida para reiniciar a viagem que, entretanto, perdera a bússola. Outras, ainda, ficará na estação de serviço, aparentemente hibernando, ou em hospital de campanha em gestação prolongada até que chegue o dia, o ano, a década e até o século para ver o sol nascente. Sempre é útil o debate. O pior -  porque inútil e putrefacto – é o seu contrário, o silêncio cadavérico do molusco orgulhosamente, hermeticamente gradeado na sua concha.
Serve a introdução para todo o processo histórico, seja ele entre as quatro paredes do apartamento ou entre instituições, pátrias e continentes. Hoje, decidi ultrapassar (mas sem nunca esquecer) a efervescência de tantas crises que todos os dias nos caem nas mãos e onde o debate está ao rubro, parece que “sem terra à vista”: são as ameaças de guerra, são os êxodos de migrantes forçados, batidos na sua pátria e chutados da pátria alheia. São ainda os debates ideológicos que não requerem pressa nem esgares de alma.
Ultrapasso, portanto, todo esse mar revolto e trago à ribalta do dia o milagre do abraço que o debate de 65 longos anos realizou entre famílias forçosamente desavindas, separadas, mutuamente hostilizadas. Refiro-me ao memorável encontro na estação  turística de Qumgang, Coreia do Norte, entre irmãos que desde 1953 jamais se tinham visto. Muitos já terão partido sem ver a luz que as trevas da ira lhes roubaram. Mas o feito aí está. Tão grande e proclamatório como a queda do Muro de Berlim, em 1989!
A fúria cega entre dois homens originou a Guerra das Coreias e a mais horrenda separação de pais e filhos, a fuga desesperadas entre irmãos da mesma casa. Seis décadas transcorridas, outros dois homens realizaram o maior milagre, qual é o de voltar a unir braços e corações. O mago taumaturgo deste feito: o debate! Tivessem continuado os dois regimes – irredutíveis fratricidas – de costas voltadas, enclausurados cada qual no seu cavername sectário e nunca o Sol do Amor teria retomado a sua marcha de outrora na asiática paisagem. Se foi dolorosamente comovedora a separação, não menos emocionante, positivamente comovente foi o reencontro.
Eis a decisiva fecundidade do debate. Sem esquecer o último tema deste blog – o debate sobre o Celibato na Igreja, oportunamente proposto pelo pensamento consistente, coerente e transparente do Padre José Luís Rodrigues – seja-me permitido aditar que a questão em apreço é inimiga da pressa e do preconceito, por mais fervorosos e piedosos se apresentem. Daqui a 50 ou 100 anos, ainda haverá debate sobre a mesma praxis. Porque há mais de 50 e 100 anos já o caso era tema de prós e contras.
E se, para unir as duas Coreias foram precisos 65 anos, quanta décadas não levará o debate sobre um facto consumado há mais de 1000 anos?...
 O debate sério e consciente nunca perde o seu condão, semelhantemente na linguagem bíblica: “A Minha Palavra é como a água das chuvas: não volta às nuvens sem produzir o seu efeito”. (Isaías, 50, 10-11).
21.Ago.18
Martins Júnior

domingo, 19 de agosto de 2018

PADRE JLR FALOU PARA O MUNDO E PARA A HISTÓRIA



José Luís Rodrigues, prestigiado padre madeirense, já tem registo de marca: pensamento consistente, coerente, transparente! É, porventura, o único sacerdote da diocese do Funchal que reúne numa perfeita simbiose o tão custoso tríptico que define uma Personalidade – consistência, coerência, transparência.
De entre muitas provas dadas, avulta o magno desafio que acaba de lançar “urbi et orbi” : um debate global sobre o Celibato dos clérigos. Embora motivado pela recente notícia dos 300 padres pedófilos da Pensylvannia, EUA, o seu desafio vem de mais longe e agiganta-se no meio da mediocridade em que vegeta o clero madeirense e, no caso vertente, a própria instituição eclesiástica.
JLR é um jovem, mas detentor de uma maturidade caldeada no chão da vida das gentes. Ele caminha na esteira intelectual dos eminentes teólogos Anselmo Borges e Bento Domingues, com quem está sintonizado nestas e noutras questões
Dos socalcos dos meus 80 anos, saúdo a sua coragem e acompanho-o no seu projecto. E, desde logo, associo-me à iniciativa, colocando-me na lista de inscrições para formular algumas teses que oportunamente aprofundarei, fruto do percurso de décadas entre as estantes da biblioteca e as pègadas do quotidiano. As minhas e as de colegas sacerdotes que, já do outro lado do Universo, deixaram rastos de luz que ainda perduram.
A título de ensaio, transcrevo um dos veementes apelos que a escritora canadiana acaba de proclamar em Carta Aberta dirigida  ao Papa Francisco: “Seja valente, chegou a hora. Por isso, peço-lhe que tenha coragem de dizer BASTA. Como autoridade suprema da Igreja, este seria o acto mais importante, mais valoroso e mais cristão de todo o seu mandato”.
Mas o Papa apresenta-se impotente nesta matéria. Porque, maior que ele, é tremendamente poderoso o lobby gay na cadeia hierárquica da Igreja, a começar pelo Vaticano. O celibato é o fruto maduro e musculado de todas excrescências que o Império dos Eunucos foi construindo contra a Igreja-Comunidade de Jesus. Para abolir o celibato, o Papa deveria eliminar primeiro as causas e a casuística ridícula, senão mesmo aberrante, com que os seus antecessores  macularam e vilipendiaram a túnica inconsútil do Nazareno. Por outras palavras, deveria purificar o cristianismo, fazê.lo regressar às origens.
Mas, como e para quando?
Quando houver sacerdotes e ristãos da fibra do Padre José Luis Rodrigues: consistente, coerente, transparente. Façamos a nossa parte.

19.Ago.18
Martins Júnior  

sexta-feira, 17 de agosto de 2018

SIGNOS GENITAIS NUM TEMPLO ROMÂNICO!





Após os considerandos – plenamente lógicos para uns, estranhamente pesados para outros – colhidos no cenário da nossa memória colectiva em redor do ‘malfadado’ Largo da Fonte, fica-nos a incomensurável versatilidade do espírito humano, sobretudo quando abandona o primado da razão para resvalar inconscientemente pelas ravinas do mito, do sensitivo, do imediato, tantas vezes agarrado a determinadas formas de religiosidade primária. São incontáveis os ícones e talismãs que a imaginação popular recria e às quais atribui uma valoração cirúrgica, como  um meticuloso  receituário de farmácia cegamente formatado para cada mazela do quotidiano.  Mais vulgarizadas são  as velas, com ou sem pavio, naturais ou electrónicas, que obedecem como ‘escravas do Senhor’ ao tinir da moeda caída na caixa da santinha. Mais impressivo, porém, é o impacto das procissões em que nos braços dos romeiros e das romeiras passeiam-se garbosamente pernas, braços, barrigas, cabeças de criança, tudo moldado em escantilhões de cera ou estearina barata. Supõe-se que, pela ética do pudor, outros órgãos e membros não se despem na sacra via pública, ainda que de cera se tratasse.
    O menos e o mais que se pode dizer é a exigência de respeito por parte dos espectadores. Concorde-se ou não, manda a sã urbanidade que se respeite a relação contratual do crente com o objecto ou com o sujeito da sua crença.
Andando eu a cogitar sobre esse estendal de ‘promessas’ deambulando pelas ruas e ruelas, eis senão quando cai-me nas mãos uma breve nota do jornal EL PAÍS, cujo conteúdo se encaixa como carapuça no crânio, a propósito dos signos e cortejos rogatórios. Trata-se, imaginem só, da notícia sobre uma determinada igreja, da época românica na região da Cantábria, que ostenta nas colunas, nos arcos e nos capitéis, objectos ritualmente sacrílegos para um templo: são os órgãos genitais, tanto de homem como de mulher. Cinzelados na pedra milenar e acusando já a erosão dos tempos, eles lá estão bem visíveis e apelativos. Digo “apelativos”, porquê?... Precisamente porque (diz a tradição local) essas ‘escabrosas’ configurações servem para afugentar pragas e maldições. Mais concretamente, livram de perigos iminentes, concitam a benevolência divina, numa palavra, são os ícones e os signos que o Homem do século XXI tributa aos patronos das suas causas...
A misteriosa versatilidade da imaginação humana quando confrontada com a nebulosa dos seus problemas!
Porque o assunto é muito sério e abarca miríades de incógnitas, ainda sem resposta, voltaremos a debruçar-nos sobre a distância abissal que nos abrem os cultos e superstições em que inconscientemente navegamos.
17.Ago.18
Martins Júnior   

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

O “ANTI-MILAGRE” DO MONTE


                                                             

          Tão cedo sairei, limpo e liberto, daquele concêntrico Largo do Monte!... Do meu último solilóquio que – precisamente  por ser intimíssimo -  julguei não encontrar eco algum, mas afinal descobri que, entre os muitos que  acompanharam o texto, alguém sintonizou-se comigo e desabafou: “E não me falem de "milagres" que se me revoltam as entranhas...”.
         Por isso, embora “paralisado entre 13 e 15 de Agosto”, cheguei hoje à conclusão de que o maior feito que aconteceu no terreiro da idolatrada  miniatural   Senhora do Monte  só pode ter um nome: Anti-milagre.
         No visionamento das reportagens das comemorações, apetecia-me apostrofar, mesmo de longe, todos aqueles figurantes, desde os eclesiásticos e ‘caixeiros’ políticos até aos crédulos fiéis obcecados a queimar os dedos no pavio da estearina e perguntar-lhes: “Que fazeis aqui?... pedinchar graças, pagar promessas, ver milagres”?
“Não – calculo eu. O que viestes fazer foi comemorar o Monumental Anti-milagre de 2017”!
Milagre seria se a vetusta estatueta carregada de ouro aliviasse a dor ciática daquele velhote, levantasse do chão o coxo caído, “enchesse de bens os famintos” (Lc. I,53)  ou fizesse florir agora as cerejeiras. Mas não foi isso que Ela viu a seus pés. Foi um ‘portento’ maior:  Um velho tronco, que resistira a aluviões e nortadas, abrigo secular de pássaros e  generoso verde-sombra dos devotos visitantes solta-se furioso  naquele dia e naquela hora (nem antes nem depois) e chacina de um só golpe 13 vítimas. Nem o mais calibrado apontador de morteiro seria capaz de fazê-lo em campo de guerrilha, com direito a cruz-de-guerra. Soberanamente o Anti-Milagre!
Todos viram, todos gritaram, vieram as ambulâncias, os agentes funerários E a dulcíssima Senhora onde estava? Não viu, não sentiu, não deu por nada?... Aí sim, no seu terreiro, era a hora de accionar o Milagre para anular o Anti-Milagre. Esconjurar o perigo assassino. Em vão! Ter-se-ia escondido com medo de ter sido Ela a causa temporal ou o pretexto circunstancial daquele “crime”, Anti-milagre?... Foi por Ela, só por Ela, que as 13 vidas ali se dirigiram e, num ápice, saíram mortas. Castigo de Deus, também não. Foram lá “pagar” (que termo blasfemo!) promessas à Senhora…Apontem-me um só episódio no Evangelho em que Maria e seu Filho estivessem de banca a receber dinheiro ou cotos de velas!
Era outra (e ainda é hoje) a verdadeira Maria, aquela que nunca esperou milagres. Para dar à luz não pediu a Deus uma maternidade, uma estalagem, uma pensão rasteira, uma enxerga, sequer. Procurou, lutou,  não conseguiu: aceitou a manjedoura de um rude palheiro. Herodes planeou matar-lhe o filho bebé, mas Ela não pediu a Deus a magia de  um misterioso ‘bunker’. Agarrou na criança, aconchegou-a ao colo e lá vai Ela, fugitiva refugiada, afrontando desertos e perigos, até alcançar lugar seguro em terras do Egipto. E no alto do Calvário – estátua da dor e da coragem – não conseguiu evitar o assassinato do Filho. Mas aguentou, firme, até ao fim. Estóica, sobre-humana, Mulher Eterna!
Esta, a Senhora, autêntica e única, não mora na penumbrosa estatueta do Monte nem em nenhuma outra que tenha balcão de velas milagreiras. Pelo contrário, Ela é aquela que luta pela Vida e pela Justiça Social, conforme as leituras bíblicas deste 15 de Agosto: “Derrubar os poderosos soberbos dos seus tronos e exaltar os humildes; encher de bens os famintos e aos ricos exploradores despedi-los de mãos vazias”. Assim cantou e proclamou em alta voz nas montanhas de Judá, (Lc.I, 51-53)

15.Ago.18
Martins Júnior
    
    

segunda-feira, 13 de agosto de 2018

PARALISADO ENTRE 13 E 15 DE AGOSTO!


                                            

Entre 13 e 15 de Agosto, tolhem-me os braços e paralisam-me as mãos. Viva, inquieta, só a minha cabeça. Vejo-me, só, ardendo num velório sufocante. Chamem-lhe vela ou círio, promessa ou ex-voto, chamem-lhe  fé ou talismã – tudo fumega em redor da Virgem de Fátima, da Senhora da Guadalupe, do Sameiro, Senhora da Agonia ou Padroeira do Monte.
Não consigo escrever uma linha que seja, sem que me respondam a esta angústia em chamas: Quantas toneladas de cera teria aquele carvalho para despenhar-se e matar 13 fervorosos portadores-pagadores  de promessa na tarde desse dia?... Ai, o fatídico número 13, prenúncio de tragédias tantas?
Por outras palavras:
Não estaria lá (ou estaria, decerto) a Senhora do Monte, mais poderosa e altaneira que o carvalho centenar, para suster a sua queda e ‘curar’ da mais injusta e cruel morte repentina aquelas 13 testemunhas da fé?...
Ou:
Se contra factos não há argumentos nem presunções pias, pergunta-se se a Virgem Milagreira (“Senhora que faz favores a baixo preço”, como censurou o Papa Francisco em Fátima) não será Ela uma invenção abusiva da nossa fraqueza, um desmedido interesse do nosso egoísmo?...
Seja qual a resposta, ficam os nossos olhos presos ao chão com 13 vidas inocentes, chacinadas sem dó nem piedade! O enorme e velho carvalho estará sempre de pé no velório do nosso psiquismo, não como grito exclamativo, mas como eterno, insuperável ponto de interrogação, a grande incógnita que me tolhe os braços e paralisa as mãos entre 13 e 15 de Agosto.
Contra factos não há presunções nem argumentos.

13.Ago.18
Martins Júnior

sábado, 11 de agosto de 2018

“A BILHA DE ÁGUA E O PÃO COZIDO NA CINZA”…


                                                           

…”Elias, exausto, comeu do pão cozido nas brasas e bebeu da água da bilha. Fortalecido, caminhou quarenta dias e quarenta noites até alcançar o monte Horeb”…
                                    (Leituras do domingo, 12)


Tão pouca a ração
Para tão alta empresa
E tão curto o bordão
 Para caçar tão dura e longa presa
Onde quer que ela se esconda

O tamanho da onda
Que me chama e atravessa
Não há quem a meça
E o sal do deserto
Fique longe ou aqui perto
Não tem peso que se o conheça
Nem amaro que se o veja

Talvez que eu seja
A bilha de água que a tua sede almeja
E tu talvez o pão
Que anseio
Escondido na cinza da tua mão
Lavrado no braseiro ardente do teu seio

Será perto então
O longe da montanha
E será doce o sal amaro do deserto

11.Ago.18
Martins Júnior

quinta-feira, 9 de agosto de 2018

À MINÚSCULA CABEÇA DE UM FÓSFORO…

                                                                     

        Chegam-me à ponta dos pés, rasam-me os dedos das mãos e atacam-me os neurónios. São as labaredas que se soltam das serras de Monchique, das planuras-florestas da Califórnia e até das sempre verdes paisagens nórdicas do velho continente. Por cima das chamas e do furacão de gritos e protestos das vítimas e dos ‘bombeiros de bancada’, um risco de vertigem atravessa o espaço e petrifica-se aqui mesmo diante de mim, como uma estátua flamejante: é a cabeça desse minúsculo fósforo que fez a ignição primeira.
         Entre muitas, duas são as sensações que me fumegam os neurónios: saudação e respeito.
Saudação ao fogo que  “Prometeu agrilhoado”  roubou aos deuses, poema épico à luz que devassa as trevas, fermenta a seiva criadora e jorra as fagulhas do génio no cérebro humano!                                           
Respeito, que é medo e auto-humilhação perante o embrião que é gigante, implacável devorador!  Minúscula cabeça de um fósforo que depenas as montanhas, subjugas cidades, engoles bibliotecas: minúscula cabeça que fazes rolar cabeças sem rótulo e mentes liderantes, faustosos galões e tronos presidenciais! Cabeça de fósforo, seio procriador onde confluem a indomável força do macho e a intocável leveza da fêmea! Como é possível que o universo da ciência e da técnica – jóias preciosas do humano arsenal – não te dominem nem refreiem, minúsculo pingo fosforescente?...
                                                    
Minúsculos somos nós, quando te vemos rubro cavaleiro andante, soberano sem coração no pódio das nossas montanhas, vagabundo sem máscara roubando habitações, ceifando vidas a eito! Minúsculos, impotentes somos nós!... Porque assim quisemos.
“Em vez das lamúrias e imprecações ao vento, em vez dos rios de dinheiro comburente em sofisticados ‘hélis’ ou presunçosos  rodados, façam isto enquanto é tempo: agarrem-me, amputem a primeira ignição e nunca percam de vista esta minúscula cabeça que habita na ponta de um fósforo”!
Assim falou o vertiginoso raio de fogo que se soltou de Monchique para Machico, junto de mim. E para todo  o mundo. Só que o seu aviso não é de ontem ou de hoje ou de amanhã. É de sempre! Saibamos todos, governantes e governados, escutá-lo e cumpri-lo. Tanto basta para que a chama seja vida!   

09.Ago.18
Martins Júnior



    

 

terça-feira, 7 de agosto de 2018

O CARDEAL NAMORADEIRO


                                                   


Em tempo que é passatempo, lá vai este ‘contra-o-tempo’. É do século XVI.
Aqueles olhinhos de fresta no alvaiade de um rosto encimado por uma cereja em forma de tricórnio cardinalício pertencem ao eminentíssimo Ascanio da nobilíssima família Colonna, detentora de distintos cargos na Santa Sé, onde se conta o de arcebispo-bibliotecário do Vaticano. Ascendeu à púrpura de príncipe da Igreja, com o título de cardeal e, no seu portfólio, brilha com excepcional fulgor o privilégio de ter sido  Mecenas do imortal Miguel Cervantes, que lhe dedicou o poema Galateia.
O pitoresco de todo este cenário está na descoberta que acaba de fazer a historiadora Patrícia Marin Cepeda na biblioteca do mosteiro beneditina  de Santa Escolástica, em Itália. Foi uma mera coincidência: investigava ela a personalidade e a obra de Cervantes, quando imprevistamente lhe salta aos olhos um grosso volume, cuidadosamente seleccionado e atado de uma forma singular. Abriu-o e eis que lhe faíscam nada menos que 500 cartas de amor dirigidas ao eminente, culto e piedoso cardeal Ascanio Colonna. Refere Raquel Vidales, jornalista do El País, que as remetentes – casadas, solteiras e até uma freira - eram todas oriundas de nobres famílias de Alcalá, onde  em tempos vivera  Ascanio,
A autora da reportagem, com um misto de arrobo libidinoso e picante ao mesmo tempo,  puxa para título  uma dessas declarações de amor, assinada pelo pseudónimo literário Hernarda, Pastora de Henares: “Não tenho outra glória no mundo senão ser a tua escrava”. E ainda estoutra, da autoria de Ninfa Castalia: “A senhora (…) deseja-te mais que a vida, mais que a própria alma”.
As respostas do cobiçado cardeal não são menos espirituais e espirituosas. Mas pouco interessam de momento. A historiadora promete aprofundar aquele maço de manuscritos e publicar o que achar útil para a compreensão da época clássica, em que a Igreja promoveu muito impressivamente as artes e as letras. E outro não é  também – além de pura diversão – o objectivo deste apontamento: interpretar a história, os seus contornos, as consequências, compará-las e, daí, extrair conhecimentos positivos para entender a evolução dos tempos. Chegaremos bem depressa àquele axioma bíblico que vem de muito longe: Nihil sub sole novi – “nada de novo acontece debaixo do sol”, nada que já não tenha acontecido.
E já agora, a talho de foice. fazemos votos que o nosso ilustre conterrâneo, recentemente nomeado arcebispo-bibliotecário do Vaticano (cargo idêntico ao titular da família Colonna) possa desentranhar dos fundos tumulares daqueles Arquivos segredos ocultos (que já não serão)  para interpretarmos valorativamente o percurso do condição humana, peregrina  ao longo da história.

07.Ago.18
Martins Júnior