quarta-feira, 31 de outubro de 2018

A PONTE ONDE HABITAMOS: 31 Outubro- 1 Novembro-2 Novembro


                               

Todo o mundo num triângulo
Toda a história numa tríade
E num tríduo breve
A  longa  e tortuosa via
Que nos dilata e sepulta

Suspensa ponte sombria
É esta onde desgarra a turbamulta
Entre bruxas santos demónios, vagantes esqueletos
Em delirante dançante carnaval de inverno

Outro eu
Procuro-me nos malfazejos duendes aboborados
Nos eleitos de um deus aureolados
Ou nas caves tumulares que suportam estátuas e ruas
Sem nome

Onde estarei
Em que ângulo ou em que  dia ou em que  antro
Não sei
Porque em todos me encontro
E danço e morro e canto

Enquanto for minha a ponte
Aí serei duende santo demónio morto-vivo
Carnívoro e vegano planície e monte
Inteiro e livre, jamais cativo
Enquanto for meu o triângulo
E enquanto minha for a ponte


        31Out- 1Nov-2Nov
        Martins Júnior

 N. B. - Imagem retirada do google





segunda-feira, 29 de outubro de 2018

DEUS – O MAIS ENXOVALHADO NA ELEIÇÃO BRASILEIRA


                                                         

É a marca dos grandes duelos, mais visível sobretudo no campo desportivo e na arena política: Os vencedores são freneticamente ovacionados e os vencidos sempre vilipendiados. Ainda que empacotada numa subtil embalagem de falsa diplomacia, a humilhação do derrotado não esconde o gosto sádico do ganhador.
Abstraindo-me das muitas e preocupantes questões suscitadas pelo resultado eleitoral de ontem no Brasil, lanço apenas este repto aparentemente ingénuo:  quem terá sido a entidade mais enxovalhada no discurso do vencedor?... As respostas tão extensas e diversas quantas as cabeças e os postos de observação. Hoje, cabe-me responder.
Quem teve a paciência de ouvir um robot travestido de Hitler esticado e mal esganiçado deve ter ficado enjoado de tanto ouvir do cano de um fusil de caserna a palavra mais sagrada que a um humano é permitido pronunciar: DEUS. Foi tremendo e nauseabundo presenciar ao vivo a profanação do nome de Deus no meio dos três “bês” explosivos, mutuamente repelentes: bíblia, bala, boi, os três pilares da vitória do quarto “b”: Bolsonaro.
Aliás, toda aquela encenação caipira, tresandando ao mofo de sacristia – com uma espécie de ventríloquo vomitando, de olhos pedrados, baforadas sem nexo, pedaços de ‘navalhada, o Jesus, o milagre, a salvação’ – mais parecia uma sessão de macumba espírita a céu aberto, diante de  parolos mafiosos, enfim, um caldo de ´pocilga para lavagem de cabeças ocas. ‘Deus práqui, Deus prácolá, Deus pracima, Deus prabaixo’, terminando com o paranóico refrão de “Brasil acima de todos e (aqui a garganta sobe) Deus acima de todos”. Triste espectáculo digno de uma novela do homem das cavernas. E não houve ninguém que lhe gritasse o 2º mandamento do Decálogo!
Compaginando as anteriores “promessas” de um candidato, cujo programa inclui deportação ou  cadeia, fusilamento, repressão, xenofobia, violência, outras reminiscências não me ocorreram ontem senão as dos bárbaros saqueando Roma, os Cruzados marchando sobre Jerusalém, os bispos facínoras da Inquisição que matavam em nome de Deus e, de seguida,  rezavam os ofícios em volta do inocente condenado ardendo no meio da fogueira. Os jihadistas muçulmanos não fariam outro discurso: matar em nome de Alá. O quarto “b”  reprime, explora, expulsa, prende, fusila e embrulha tudo numa embalagem com o endereço de Deus!
Para nós, portugueses, não é novo esse monumental embuste. Já tivemos um outro “b” de Santa Comba Dão, que esmagou homens, mulheres, famílias inteiras durante 48 anos com a satânica bênção de uma Igreja que se satisfazia com a farisaica trilogia: “Deus, Pátria, Família”.
 Não é esta a maior inquietação para o Brasil, para Portugal, para o Mundo. Sei que há questões mais incisivas e perturbadoras. Mas entendo  importante denunciar, lá e cá, a peçonha assassina de quem se apresenta com uma cruz ao peito e  esconde atrás o revólver fatal.
Não nos tomem por tolos. Não é culpado só o quarto “b”. Compete aos homens da verdadeira Igreja de Cristo impedir a violação do 2º mandamento: “Não invocar o Santo Nome de Deus em vão”!

29.Out.18
Martins Júnior            

sábado, 27 de outubro de 2018

O QUE É E COMO SE PAGA A FÉ – Esboço de Peça em Três Actos



I
Jesus percorre a estrada entre Jerusalém e Jericó, acompanhado da multidão. Numa das bermas, um cego grita repetidamente: “Filho de David, tem compaixão de mim”. Um dos doze, talvez Pedro, repreende o homem: “Não vês que é feio gritares assim?”  Mas o cego dobra os gritos, cada vez com mais força e aflição: “Jesus, tu és o  Messias, vale-me, nesta hora. A um gesto do Nazareno, o tal apóstolo diz ao cego: “O Mestre quer que vás acolá falar com ele”. O cego larga o bordão e de repente dá um salto  sem saber onde iria cair.
II
O Nazareno vê o cego  prostrado à sua frente e pergunta-lhe: “Ó homem, o que é queres de mim?” – “Senhor, fazei que eu veja”. E de imediato se lhe abriram os olhos e ficou a ver. Depois, olhou o cego e explicou-lhe quem tinha sido o autor do milagre; “Fica sabendo que quem te curou foi a tua fé”. Não lhe pediu nada em troca, nem o cego tinha nada que lhe oferecesse, O homem seguiu a multidão, cantando e louvando o Messias.
III
         A cena passa-se no último quartel do século XX
         Um ilustre causídico, amigo do peito,  veio à Madeira como advogado nos vários  processos que o governo e a diocese  entenderam mover contra mim. Ganhou todos os litígios forenses e nunca me cobrou um centavo. Entretanto, ao longo de vários anos, juntei um razoável pecúlio e fui a Lisboa entregar-lhe tal poupança, como honorário simbólico para todo o seu extraordinário trabalho em meu favor. Desapontado, quase ofendido, o ilustre jurista afasta o envelope que lhe coloquei em cima da mesa, fita-me com olhar directo e atira-me este repto; “Sendo assim, queres dizer que de hoje em diante acabou a nossa relação de amigos para tornar-se uma obrigação entre advogado e cliente, um contrato de vendedor e comprador. Recuso”. Foi então que senti com maior emoção e profundidade a generosidade autêntica e a genuína gratuitidade de tudo o que se faz por amor.
         E porque hoje é sábado – todos os fins de semana trazem mensagens que transcendem o tempo – debrucei-me sobre a narrativa de Marcos, capítulo 10, versículos 46-52, que hoje é lida em todos os templos. E pergunto: Não fossem o ânimo, a força de vontade e a insistência do cego, teria o Mestre intervindo nesta conjuntura?...  Razão tinha, pois, para esclarecer: “Foi a tua fé que te curou. Não fui eu”. Que reação teria Jesus se o cego lhe quisesse “pagar” a consulta de  oftalmologia e a consequente solução milagrosa?... Teria sido igual ou diversa da atitude tomada pelo supra-mencionado advogado?...
         Nos dias que correm, perante certas feiras pseudo-religiosas, urge seriamente questionar: Quem deu autorização para classificar o Supremo Senhor como o pior e mais egoísta de todos os comerciantes, agiota banqueiro e vendedor de promessas?...

         27.Out.18
Martins Júnior
  
   

quinta-feira, 25 de outubro de 2018

CORPO QUE ERA SÓ ALMA


Tragam-lhe apenas lençóis de linho branco
De mil dobras
Que deles fará o seu próprio caixão
Berço de menino embalado em trovas
Escritas por sua mão

Cordas da tumba não
Não as tragam que ele traz miríades de pautas
Entrançadas abraçadas
Ao corpo que era só alma

Também não chamem coveiros
Que ele não desce à terra
Bastam os que até ontem
Lhe ganharam a guerra
No lodaçal onde medram

Não há tão vasta planura
Para tanto fulgor tanta lonjura
E o infinito império
Daquela sua divina arte
Não há cemitério
Que o contenha e o guarde

                               *      
E quantos responsos
Ofícios salmodiais
Te doarem à partida
Serão apenas prelúdio e escolta
Aos acordes triunfais
Sonatas alelluias madrigais
Que soltaste à tua volta

Não esqueço
Quando nasceste
Victor Vencedor
Fechaste as antigas trevas
E anunciaste a manhã de um Abril Maior

Agora
Enquanto esperas por mim
Faz como outrora puxa a carteira de aula
E destes ossos versos sem ritmo certo
Põe-lhes carne e sangue timbrados sonoros
Sopra-lhes esse espírito criador
E faz deles um eterno fraterno Cântico de Amor

         23.Out.18
Martins Júnior
  

terça-feira, 23 de outubro de 2018

QUE “NOVELAS” EXPORTARÁ O BRASIL PARA PORTUGAL?


                                                      

Corro atrás dos furacões para entender as vertigens dos humanos. Todos eles, os furacões, são viajantes. Viajantes contagiantes. Não têm morada fixa. Pelo contrário, carregam aos ombros toneladas de destruição e por onde passam deixam rasto e não se satisfazem enquanto não abalam os alicerces do mundo.
Assim também os regimes devoradores da liberdade – as ditaduras, os fascismos, venham de onde vierem. Nascido no incestuoso parto italiano, o fascismo de Mussolini depressa infiltrou-se no Portugal de Salazar, na Espanha de Franco até estrebuchar-se no nacional-socialismo (execrável ironia) da Alemanha hitleriana ou no estalinismo russo.
Como cidadão do mundo, junto-me a todos aqueles que durante esta semana têm o coração aos saltos, face ao suicídio anunciado da maior e mais poderosa comunidade da América Latina – o Brasil. Analistas, historiadores, jornalistas, comentadores, escritores, artistas de renome, todos unânimes e apavorados com a vitória do fascismo arrasador. É certo que quem lá está e vive o dia-a-dia é que pode pronunciar-se cabalmente. Entretanto, perante a narcótica, perturbadora paisagem que se depara aos eleitores brasileiros e a todos nós, observadores, suscitarei sinteticamente três  tópicos de reflexão.
Primeiro: haverá alguma distinção entre os chamados assassinos maus e os assassinos bons? Será possível colocar sequer essa hipótese?
Segundo: que critérios tem um povo que desculpa e até branqueia os roubos e os crimes dos ditadores, mas não perdoa um milímetro aos que lutaram por ele?
Terceiro: como podem os auto-simulados pregoeiros do Evangelho compaginar a mensagem salvífica de Cristo com os ódios programados, a instauração do racismo, a expulsão do imigrante, a  escravização do pobre e a humilhação da mulher?
Em resumo: repugna-me se tiver de dar razão ao piropo, tipo novela de mau gosto, que lá ouvi em 1972: “O brasileiro está feliz se tiver palhota, bananeira, cachorro e violão”…
Estou longe. Estamos longe, é certo. Mas o histórico grito do Ipiranga do “7 de Setembro” já não será de Liberdade, mas de ditadura. Quem sabe se  aqueles que, domingo próximo, votarem fascismo não serão vítimas irreversíveis do voto entregue na urna, transformando as águas do rio libertador em manchas de sangue inocente espalhado pelas becos e avenidas?! E o pior é que essas ondas de sofrimento e desespero   não ficarão pelo Brasil. Virão desaguar também à nossa costa.  Mas aí, já será tarde para mudar de caminho. Oxalá me engane. Oxalá nos enganemos todos os que  nesta semana  alongamos  os nossos  olhos para as terras da Vera-Cruz!

23.Out.18
Martins Júnior    

domingo, 21 de outubro de 2018

NO MAIS FINO PANO CAI A NÓDOA: AS CUNHAS, AS NOMEAÇÕES, PROMOÇÕES E AFINS


                                                        

        Em cada fim de semana, há sempre um caudal de luz que se projecta para a semana seguinte. Desta vez, conta-se em poucas palavras porque a realidade aí está todos os dias debaixo dos nossos olhos, colada ao nosso corpo – o corpo social de que fazemos parte.
         É sobretudo nesta época com antecipado faro eleitoral ou de sazonal dança de cadeiras que as máscaras caem da cara dos protagonistas de cena e seus répteis serventuários: as cunhas, as nomeações, os “lugarzinhos” de médio e alto topo são os episódios deste teatro quotidiano. Nos “passos perdidos” dos parlamentos, nos meandros governamentais, nas comissões decisórias, chegando mesmo aos “peões” de infantaria do xadrez societário, sem poupar – pasme-se – aquela instituição que, por imperativo fundamentante, deveria estar imune a esta sarna peçonhenta que mina determinadas promoções clericais, desde os ridículos canonicatos até aos eminentíssimos cardinalatos.
         A quem se incomodar com esta última observação convido a compulsar o legado que nos deixou Marcos na sua biografia acerca do Mestre da Galileia, (Mc. 10, 35-45). Os dois irmãos Tiago e João foram ter com Jesus (seus primos) e pediram-lhe, às escondidas, que lhes reservasse os dois primeiros lugares, quando fosse restaurado o reino de Israel. Em termos actuais, nada mais nada menos que o alto cargo de primeiro ministro e respectivo ministro adjunto. Os restantes apóstolos ficaram indignados com a atitude dos dois irmãos. E a estes, o Mestre respondeu: ‘Vocês nem sabem o que estão a dizer. Isso não me compete a mim decidir. E comigo, quem quiser ser o primeiro deverá ser o servo de todos. Porque mandar é servir’.
         O episódio e a respectiva resposta chegam para iluminar a semana inteira. A vida toda. A história toda. Servem para tocar a rebate a consciência dos decisores na distribuição criteriosa e justa dos pelouros. Sobretudo servem de antídoto ao vírus que ataca as entidades eclesiais quando vêem nos cargos mundanas promoções de vaidades anti-evangélicas e quando caem na tentação de promover, não os mais capazes, mas os calculistas parasitários quase sempre estrategicamente rastejantes ao poder.
         Só a vigilância interventiva dos constituintes – o Povo – poderá barrar a ascensão gratuita e mafiosa da mediocridade aos cargos de decisão. Desde há mais de vinte séculos nos advertia o Mestre da Galileia que “não sabia nada de finanças nem consta que tivesse biblioteca”, mas era o sábio conhecedor absoluto da condição humana.
          21.Out.18
         Martins Júnior
           

sexta-feira, 19 de outubro de 2018

TODOS OS ANOS, PELO OUTONO…




Todos os anos pelo Outono – pontualmente entre 19 e 20 de Outubro -  “o coração, sino da gente” repicava desde a ilha até Lisboa, batia à porta de um velho amigo e juntava-me  à festa: Parabéns, José Manuel, mais um ano!
         Hoje, o coração bate de novo. E “porque morrer é (apenas) deixar de ser visto”, volto ao amigo octogenário para ovacioná-lo e dizer-lhe: Os anos já não contam para ti, mas todos os teus dias são nossos. Nossas as tuas palavras, nossos os teus gestos, atitudes, riscos e decisões, nosso o auto-retrato da coragem, da superação dos contrastes até à síntese global.
          Coragem, superação de contrastes, síntese existencial!
         Desde os bancos da “Casa Verde”, José Manuel foi o aluno brilhante, o colega horizontal no trato, o animador desportivo e, no fim da jornada, o padre exemplar, o pedagogo espiritual, o chefe de redação e director de jornal, o governante de Abril na Região Autónoma, o alvo dos ditadores regionais. Saltou o muro e foi o sociólogo, o mestre, o conferencista, o provedor criterioso e atento,  o esposo e pai, construtor infatigável de um mundo em marcha para a Vida!
         Imagem viva do caleidoscópio existencial, ele fez das suas oito décadas de vida uma doação plena, sem intermitência. Sinto-me feliz por afirmar que toda a sua vida foi um sacerdócio, naquilo que tal missão possui de mais nobre e libertador.
E é esse, precisamente, o traço que recorto mais impressivo, nesta data: após a sua opção pelo estatuto de esposo e pai, Paquete Oliveira não deixou de ser o Sacerdos de outros tempos, pela transparência de ideais e pelo empenho em alcançá-los, não para prestígio pessoal mas pelo imperativo de servir a grande causa comum da Humanidade. Numa altura em que paira na ordem do dia, a nível da Igreja, a dicotomia sobre o acesso do Sacerdos ao matrimónio, proponho como protótipo e guia aquele que, em 20 de Outubro de 2018, ostenta no firmamento da nossa história a luminosa constelação de oitenta e duas gloriosas estrelas!
Como quem “vê o invisível”, contemplo-as e inscrevo-as dentro de mim, enquanto bate em ritmo novo o “coração, sino da gente”.
A todos os seus - a minha mensagem!

19.Out.18
Martins Júnior

quarta-feira, 17 de outubro de 2018

“POBRE UMA VEZ, POBRE PARA SEMPRE” – o estigma hereditário


                                                           

           Contra o atávico estigma que traz gerações acorrentadas ao cepo da pobreza e da exclusão, venho bradar – Marchar, Marchar!!!
         É esta a minha única saudação, de punho cerrado e olhar vigilante, neste Dia Mundial para a Erradicação da Pobreza. Arrumo, por hoje, na prateleira a interminável bibliografia académica sobre os casos, as causas empíricas e as variantes desse grito deprimido e depressor para a condição humana – a pobreza. Tenho ocupado o meu dia pendular entre os duas estratégias de guerrear o monstro que se colou à pele e aos ossos da sociedade em que nos habituámos a viver: uma, de carácter curativo e assistencialista, a outra de decidida militância ressocializadora.
A primeira conforta as mentes pusilânimes, direi mesmo doentias que, na sua frágil boa-fé, correm como almas penadas para acudir às ocorrências pontuais de quem estende a mão à caridade e à compaixão itinerantes. Tremendamente injusto seria malsinar ou denegrir tantos gestos de apoio imediato a quem sofre à nossa beira, carente de pão, de saúde, de amor. O problema é quando o provisório passa a definitivo, pior ainda, quando o agente filantropo (ou por piedosa devoção) faz desse gesto cirúrgico a obra-prima do seu programa existencial e por aí se queda, feliz, realizado. Há   instituições e respectivos figurantes cujo esforço operacional não tem outro efeito senão o de manter a pessoa num perpétuo estatuto de pobreza e dependência que se transmite de pai para filho até à quinta geração. “Pobre uma vez, pobre para sempre” – é esse o anátema que tais organizações, inconscientemente talvez, põem aos ombros de várias gerações.
A outra estratégia, essa de carácter dinâmico, resilientemente reprodutivo, consiste em lançar a corda à vítima para que seja ela mesma a sair da fossa em que caiu e reconquistar a  autonomia livre e construtiva. É o velho mas sábio método de “dar a cana em vez de dar o peixe”. Ressocializar-se é incluir-se, é derrubar a inexorável bruxa da exclusão. Assim como o estigma da pobreza persegue gerações, também a  pedagogia da ressocialização leva gerações a alcançar. Exige um olhar penetrante, contínuo, militante. Detectar os sintomas, investigar as causas -  as próximas e, sobretudo,  remotas – e “lançar o arco de uma nova ponte” para a vida!
Exige também coragem – cívica e política! Recordo-me de assistir durante décadas no Parlamento ao ‘chumbo’ sistemático de uma proposta de “Criação de um Observatório Social”, precisamente sobre esta problemática. Por isso, qual não foi a minha surpresa quando recentemente li na comunicação social madeirense a notícia do Protocolo celebrado entre o Governo Regional e a Rede Europeia Anti-Pobreza, cujo objectivo alcança exactamente este desiderato: erradicar a pobreza nas suas raízes (como define o próprio vocábulo) não pela costumeira via da subsidiodependência, mas pela difícil e lenta auto-inclusão no tecido social envolvente. Ao seu presidente, Padre Agostinho Cesário Jardim Moreira, (na foto) um bem merecido aplauso pela iniciativa pioneira na Região e votos de sucesso nessa tão nobre quanto hercúlea missão. Apreciei - e com isso me congratulo - a afirmação de independência no pensamento e na acção, então proferida: “A pobreza não é de nenhum partido”. Os madeirenses confiam e esperam. 
     
 17.Out.18
Martins Júnior

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

DIMINUIDOS E DESPEDIDOS ou A IMPOTÊNCIA DO PODER


                                                                   

        Se há cenas mais humilhantes no teatro da “comédia humana”, (porque prenhes de cinismo e hipocrisia) uma delas é a que hoje mesmo nos ofereceram  todos os  canais da comunicação em Portugal. Mais que a final de um campeonato perdido, mais que um repentino ataque de afonia ao tenor de ópera em palco, mais que a desilusão de um concurso falhado!
         Para o monóculo do meu observatório diário, não importa qual o governo, qual o partido ou quais os figurantes da cena descrita. É um episódio comum a todos os tempos e a todos os lugares. Nem tão pouco me ocupa o mérito ou demérito, o empenho e o “des-empenho” dos intervenientes. Detenho-me apenas no dentro mais dentro – psicológico, social, talvez invisível – dos actores que ‘ontem’ enchiam toda a ribalta  e ‘hoje’ arrastam-se (ou são arrastados) às recuas para os bastidores ou para os fundos de um palco que já foi seu.
Para ilustrar, em alto ou baixo-relevo, o quadro que aqui trago, nada melhor que rebobinar o filme ( mais um “puxa p’ra trás”) e ver a primavera em flor nos punhos acetinados e nas gravatas brilhantes daquele dia (há três anos foi) em que os sonhos de bem servir o povo, sobretudo o chefe, escorriam na tinta com que assinavam o Livro de Honra da tomada de posse. E os aplausos, as juras,  os dentes de alvor a cada abraço que compunha o ‘beija-mão’ da praxe. Lado a lado, coloque-se a fita filmada hoje: Os mesmos, mas discretos, fugidios, os descartados, como espinhas na roda do prato, mas mesmo assim com um sorriso cor das folhas de outono, mais o emotivo abraço do encenador (“muito obrigado, pelo excelente papel que fizeram” – “ora essa, nós é pedimos para sair de cena”) enfim, um espectáculo do mais viperino contorcionismo de circo. Devo dizer que , apesar do verniz encobridor, mantenho o maior respeito e até simpatia pela coragem, embora diplomática, dos actores que certamente contavam perfazer o quarto acto da peça para que foram convocados.
Mergulhando mais a fundo, imagino que eles no seu íntimo estariam a curtir uma mágoa, talvez protesto – “mais não fizemos porque não nos deram mais dinheiro das Finanças, nem fomos nós os principais culpados das fífias ocorridas” – mágoas essas que farão parte da sua memória futura. Partem diminuídos e despedidos  para que outros fiquem aumentados e promovidos!
Com este breve arrazoado, junto-me àqueles sábios “de experiência feitos” que assistiram e escreveram as fragilidades, as oscilações imponderáveis  e, consequentemente, o descarte a que ficam condenados os que abraçaram generosamente a “bandeira da pátria”. É, em resumo, a impotência do poder. Repito: de todos os tempos e lugares. A todos eles, atrever-me-ia a receitar a sabedoria que o Mestre Nazareno doou aos seus discípulos, quando estes lhe vieram contar os sucessos da sua campanha entre os judeus: “Ao acabar o vosso trabalho, dizei apenas: somos servos inúteis, só fizemos o que devíamos fazer”.
Fecho aqui as janelas do meu observatório, guardando na retina a “reprise” (perdoem o galicismo) dos mesmos sorrisos, dos mesmos abraços e das mesmos deslumbramentos daqueles que hoje entraram em campo para jogar os últimos “vinte e poucos minutos” do grande campeonato quadrienal. E que ninguém se esqueça do Sérgio Godinho: ”Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida”! Ministerial, claro.

15.Out.18
Martins Júnior               


sábado, 13 de outubro de 2018

O LUME NÃO QUEIMA O VENTO


                                                     

É a fúria dos elementos que fecha esta semana de Outubro e é a mesma raiva dos ventos que abre a manhã de Domingo.
Terça-feira, nove, chegaram até nós as reminiscências das aluviões de 1803 que enlutaram centenas, milhares de famílias no Funchal e em Machico. Em onze, o mar revolto “entrou” pelas galerias do Teatro da cidade e bramiu, bravio, na “Ode Marítima”. Em treze, aos pavorosos fenómenos atmosféricos alegadamente ocorridos em 1917, juntou-se de rajada o furacão “Leslie” com destino a Portugal Continental. Por mais estranho que pareça, o turbilhão que fende os rochedos e devasta as cidades inspira no ânimo dos povos sentimentos de evasão extra-terrestre, recorrendo às divindades, queimando bulas sacras contra as trovoadas, acendendo frágeis luminárias em intermináveis cortejos medievais, onde a emoção, o medo e uma suposta fé se misturam com outras tantas amostras do chamado “vil metal”. Nos “Milagres”, no “Monte”, em “Fátima”, o dinheiro derrete-se entre as chamas industriais de um fogo quase místico, como se fosse capaz de aplacar Eolo e Neptuno na sua fúria devoradora.
Em dois traços, o que se pretende é agradar a Deus, presenteando-O com dinheiro. Ora, “porque hoje é sábado, amanhã domingo”,  são-nos oferecidas ferramentas e soluções para dirimir este grave dilema: Estará Deus sentado ao balcão do Além, aguardando que lhe abrandem a “ira” com dinheiro?
Leiamos o texto de  Marcos, 10, 17-27.
Um homem apresenta-se ao Mestre: desejoso de aderir ao seu grupo e às suas propostas de vida, pergunta-lhe quais as credenciais e as exigências – a lei de Moisés, ao que ele responde: “Mestre, tudo isso tenho cumprido, desde a minha infância”. Mas o homem queria mais. “Então, vai todos os teus bens, dá aos pobres e depois vem comigo”
Fiquemos por aqui. A resposta é inequívoca, sem hesitações nem reticências. Em poucas palavras, está a chave do dilema. Reconstituamos nós a síntese do argumentário proposto pelo Mestre. Ele não disse: pega nesse dinheiro todo e dá-mo, para comprovativo da tua fé. Ou: toma o teu dinheiro e deposita-o no altar do templo. Ou: manda erguer uma capela, uma imagem, um santuário condigno para Mim, Ou ainda: aluga milhares de círios e fá-los desfilar na procissão votiva, ou faz uma doação à igreja, um cálice de ouro, uma âmbula de prata, uma custódia de diamantes. Nada disso receitou o nosso Cristo. Só isto: dá aos pobres.
Nesta expressão magnânima “dar aos pobres” pode estar incluso um outro normativo: “Restitui o que deves, paga o justo salário aos teus trabalhadores, dá àquele que não tem com que te retribuir”. Não pensem os grandes capitalistas que, perante a Justiça Suprema, ‘vão tapar o sol com a peneira’, isto é, que vão comprar com dinheiro o Juiz do Universo, com legados pios, alfaias bordadas a ouro, enfim, com os bastões de cera mole, ostentados garbosamente, ao bom estilo farisaico.
A todos quantos, de consciência ingénua e ainda obnubilada pela inércia de pensamento, ressoa, mais forte que o furacão “Leslie”, aquele imperativo do Mestre: “Dos teus bens, dá aos pobres”.

13.Out.18
Martins Júnior      


quinta-feira, 11 de outubro de 2018

DENTRO DE NÓS UMA “ODE MARITIMA”


                                                   

Era noite e fez-se manhã clara – “ai, a frescura das manhãs em que se chega”. O mar alargou  berço da baía, galgou a muralha, alagou as avenidas  e entrou vitorioso no Teatro nobre da cidade. E ali, durante uma hora inteira, retumbou pela fala de “Pessoa” aquela epopeia breve, a que Fernando chamou de “Ode Marítima”.
         Era dele a fala, mas a voz, rediviva. foi a  de Pedro Lamares. Eloquente a transmissão do pensamento heterónimo “Álvaro de Campos”, ora bonançosa e terna, ora cava e longa como o Cabo das Tormentas, tocando as raias do paroxismo exaltante, supra-lunar.  A extrema exiguidade de adereços – o intérprete, só, em palco sob um discreto feixe luminoso - emprestava à cena o ambiente do laboratório náutico, onde se dissecou toda a logística e toda a simbólica do “navio”,  tal como os peritos do subconsciente profundo desfibram e autonomizam cada um dos mil neurónios do psiquismo humano. Empolgante!
         Façam enxárcias das minhas velas/ Amarras dos meus músculos/ Arranquem-me a pele, preguem-na às quilhas/ E possa eu sentir a dor dos pregos e nunca deixar de sentir/ Façam do meu coração uma flâmula de almirante/ Na hora de guerra dos velhos navios… Ah, todo o cais é uma saudade de pedra.
         Vale a pena revisitar o Teatro e o Poema. Num tempo de duvidosa oferta da arte de Tales, em que predominam as produções herói-cómicas, algumas delas de um humor rasteiro, é de aplaudir e partilhar o emotivo e pesado labor de Pedro Lamares na apresentação da “Ode Marítima”. É tal a versatilidade do seu talento, na dicção e na interpretação, que nos cativa a todos e faz-nos descobrir dentro de nós uma centelha de Fernando Pessoa. Ficou-me um búzio encostado à alma,  vou escutando,  balbuciando estes tímidos  ecos, como se fossem a tradução, dentro de mim,  da monumental “Ode Marítima” de Álvaro de Campos

Dentro de nós uma ilha
Que logo damos por ela
Dentro de nós o mar
E dentro dele o navio que somos
Mas raro ou nunca tardamos encontrar

        11.Out.18
         Martins Júnior


terça-feira, 9 de outubro de 2018

MACHICO – INFANTE RENASCIDO


                                                              

Eis a grande nova de 2018: Machico despede-se definitivamente da tumba bicentenária em que o sepultaram, para fazê-lo renascer no cimo da montanha mais alta  da nossa história!
         Nesta breve crónica, circunscrita ao Dia do Concelho, peço folga e chama para alçar, desde o seio da baía até à fímbria altaneira de todo o vale, a bandeira virgem dos tempos que traz gravada para sempre a certidão de nascimento – a autêntica – de Machico-Infante, menino de ouro, de há seiscentos anos. Foi este o mote e foi a glosa de todos os oradores na sessão solene, hoje realizada nos jardins do vetusto Solar de Machico, podendo então considerar-se este dia como o adeus definitivo à falácia histórica que relegava a “capitania primeira da ilha”  para a trágica aluvião de 1803. Enfim, por coincidência quase providencial, repor-se-á Machico no justo lugar que a história lhe doou. Aguarda-se, apenas, que os órgãos autárquicos – Câmara e Assembleia – deliberem esse apoteótico e merecido regresso às origens,
         Recapitulando matéria dada, o 9 de Outubro de 1803 possui, no cômputo cronológico, a exígua soma de 215 anos. Ora, Machico, no grande planisfério da história orgulha-se de somar a opulento espólio de 600 anos de vida. Primeiro, como porto acolhedor de Tristão e Zargo. Depois, oficialmente como capitania em 8 de Maio de 1440.  Fica, pois, no século XV e não no século XIX, a raiz da sua nobre e valorosa árvore genealógica.
         Entre 1419 e 2019 far-se-á a ponte luminosa por onde passará entre palmas e flores o Menino-Infante de outrora. Enfim, Machico deixará de vir escoltado pelo pavio de velas estearinas, portadoras de credulidades obscurantistas. Pelo contrário, será a primavera de Maio e será  o sol de Julho que  acompanhá-lo-ão nesta viagem até nós. O “Nosso Dia de Aniversário” (afinal, somos todos filhos de Machico, de corpo ou de espírito) já não será mais a noite lúgubre de lamentos e tornar-se-á a manhã clara e promissora, tal qual a viu a aventureira marinhagem da nau “São Lourenço”, quando aportou no improvisado cais do Desembarcadouro. Abandonar-se-ão os acordes plangentes da marcha fúnebre e, em seu lugar, campeará a “ode triunfal” do futuro, da ciência e do humanismo integral.
Enfim, em 2019, Machico voltará ao centenário  berço hexagonal, a que tem direito. Parabéns!

         09.Out.18
Martins Júnior
        
          

domingo, 7 de outubro de 2018

NEM CARNAVAL, NEM CIDADE MARAVILHOSA, NEM PAÍS ABENÇOADO POR DEUS


                                    

Fiquei aguardando pelas projecções eleitorais após o fecho das urnas. Apesar da tendência das sondagens mais recentes, devo dizer que algo semelhante a um abalo global, mistura de terra-mare-moto, tomou conta de mim, ao receber via TV a notícia que o mundo democrático mais temia: Bolsonaro está à beira de resolver tudo à primeira volta! E o resultado é este: Brasil e Europa – todo o mumdo -  à beira de um ataque de nervos.
Hoje, será parca a análise dos factos, na expectativa da contagem final dos votos de 147 milhões de brasileiros,  Mas a mancha negra já escorre sobre o mapa. Dou a palavra a Cecília Baeza, Professora de Relações Internacionais na Universidade Pontifícia de São Paulo: “Muitos milhões de cidadãos eleitores, afastados da política, desconhecem a adesão de Bolsonato à ditadura militar, a apologia da pena de morte e a forma degradante como trata as mulheres. Preferem ver nele o protótipo do bom cristão, não corrupto, um político honesto e um homem forte”. Para tanto, o ditador da extrema-direita tudo fez para apagar a imagem do caudillo populista, como descreve a mesma investigadora: “Ele soube captar um conjunto de frustrações, inclusive, recuperar a religiosidade de certas camadas populares, ao ponto de converter-se aos evangélicos, num contexto onde  a mistura entre o político e o religioso é cada vez mais forte”. A tudo isto associa garantias securitárias entre um povo inseguro.
No entanto, deduzidas as estratégias manipuladoras de Bolsonaro, o maior ferrete que dilacera o corpo e a mentalidade dos milhões de eleitores é o desencanto das políticas do PT, agravado pela prisão de Lula, o escândalo do suborno dos deputados, a operação “Lava Jato”, numa palavra, a corrupção de um regime que, apesar de ter feito prosperar a economia, não conseguiu vencer a obsessão pelo dinheiro sujo. Retomo aqui o título que escrevi recentemente: “Maldito petróleo que encharca eleitos e eleitores” (27-09-18).
Em 1931, Jorge Amado, descrevia as campanhas eleitorais brasileiras, explicando à filha Júlia as eufóricas, empolgantes intervenções dos fogosos oradores políticos: “Sabes, filha, isto é o País do Carnaval”. Antes fosse… Mas o que hoje se passa não é um corso carnavalesco na cidade maravilhosa ou na “Aparecida” de um país abençoado por Deus. Trata-se de um sério aviso à navegação. E é, sobretudo, um tremendo libelo acusatório contra quem governa apenas para as plateias de circunstância. A história não perdoa. Paga-se tudo, mais cedo ou mais tarde. E o mais dramático, criminoso mesmo, é isto:  o pagante é todo um povo, Pagam os inocentes, pelos criminosos.
Esperemos os agoiros – bons ou maus – do dia de amanhã. Não deixa de ser sintomático este paradoxo: Há um mês, 7 de Setembro, o Brasil festejava o libertador grito do Ipiranga, a sua independência em 1822.  Será que hoje, 7 de Outubro, terá o mesmo povo lavrado o decreto da sua submissão ao jugo da ditadura?

07.Out.18
Martins Júnior