sábado, 27 de outubro de 2018

O QUE É E COMO SE PAGA A FÉ – Esboço de Peça em Três Actos



I
Jesus percorre a estrada entre Jerusalém e Jericó, acompanhado da multidão. Numa das bermas, um cego grita repetidamente: “Filho de David, tem compaixão de mim”. Um dos doze, talvez Pedro, repreende o homem: “Não vês que é feio gritares assim?”  Mas o cego dobra os gritos, cada vez com mais força e aflição: “Jesus, tu és o  Messias, vale-me, nesta hora. A um gesto do Nazareno, o tal apóstolo diz ao cego: “O Mestre quer que vás acolá falar com ele”. O cego larga o bordão e de repente dá um salto  sem saber onde iria cair.
II
O Nazareno vê o cego  prostrado à sua frente e pergunta-lhe: “Ó homem, o que é queres de mim?” – “Senhor, fazei que eu veja”. E de imediato se lhe abriram os olhos e ficou a ver. Depois, olhou o cego e explicou-lhe quem tinha sido o autor do milagre; “Fica sabendo que quem te curou foi a tua fé”. Não lhe pediu nada em troca, nem o cego tinha nada que lhe oferecesse, O homem seguiu a multidão, cantando e louvando o Messias.
III
         A cena passa-se no último quartel do século XX
         Um ilustre causídico, amigo do peito,  veio à Madeira como advogado nos vários  processos que o governo e a diocese  entenderam mover contra mim. Ganhou todos os litígios forenses e nunca me cobrou um centavo. Entretanto, ao longo de vários anos, juntei um razoável pecúlio e fui a Lisboa entregar-lhe tal poupança, como honorário simbólico para todo o seu extraordinário trabalho em meu favor. Desapontado, quase ofendido, o ilustre jurista afasta o envelope que lhe coloquei em cima da mesa, fita-me com olhar directo e atira-me este repto; “Sendo assim, queres dizer que de hoje em diante acabou a nossa relação de amigos para tornar-se uma obrigação entre advogado e cliente, um contrato de vendedor e comprador. Recuso”. Foi então que senti com maior emoção e profundidade a generosidade autêntica e a genuína gratuitidade de tudo o que se faz por amor.
         E porque hoje é sábado – todos os fins de semana trazem mensagens que transcendem o tempo – debrucei-me sobre a narrativa de Marcos, capítulo 10, versículos 46-52, que hoje é lida em todos os templos. E pergunto: Não fossem o ânimo, a força de vontade e a insistência do cego, teria o Mestre intervindo nesta conjuntura?...  Razão tinha, pois, para esclarecer: “Foi a tua fé que te curou. Não fui eu”. Que reação teria Jesus se o cego lhe quisesse “pagar” a consulta de  oftalmologia e a consequente solução milagrosa?... Teria sido igual ou diversa da atitude tomada pelo supra-mencionado advogado?...
         Nos dias que correm, perante certas feiras pseudo-religiosas, urge seriamente questionar: Quem deu autorização para classificar o Supremo Senhor como o pior e mais egoísta de todos os comerciantes, agiota banqueiro e vendedor de promessas?...

         27.Out.18
Martins Júnior
  
   

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