É
mui diversa a interpretação que tenho da Europa. Que outros contabilizem os
euros que metem e os euros que tiram da caixa comum. Que muitos mais se
pavoneiem da abolição de fronteiras e se gozem da livre circulação de pessoas e
bens. Da minha parte, compulsando a trajectória dos 62 anos volvidos sobre o
Tratado de Rima, dois momentos decisivos sinalizam esta velho continente: primeiro, o cansaço da guerra;
segundo, o tédio da paz.
Coloco-me
na madrugada europeia, aquela em que os visionários de um mundo novo – Jean Monnet,
Robert Schuman, Konrad Adenauer, Alcides De Gasperi - soltaram os acordes da
Paz entre as nações, emocionalmente expressos na inspiração beethoveana do Hino da Alegria
que hoje encheu a grande abóbada comunitária. O móbil fundamental, direi instintivo,
de tão ingente tarefa nós já o sabemos: o cansaço - e mais que o cansaço – o sufoco
das guerras, as de 14-18, as de 39-45, as dos Sete Anos, as dos Cem Anos,
enfim, a túnica da gloriosa Europa ensopada em sangue e valas comuns.
Impunha-se, pois, a necessária catarse de milhares e milhões de inquilinos,
fugitivos da hecatombe suicida. Como? Lançando pontes, juntando forças,
entrelaçando corpos e almas num mesmo abraço de reconciliação, única trincheira
de sobrevivência da “espécie europeia”. Foi o sonho tornado realidade. Aqui,
bem poderia Fernando Pessoa esculpir no pedestal de tão alto monumento: “Deus
quer, o Homem sonha, a Obra nasce”.
Foi
esta, sem dúvida, epopeia maior que a conquista dos mares e as invasões astrais
que, antes e depois, empreendeu o génio humano. A livre circulação dos cidadãos
europeus terá sido, porventura, o mais expressivo testemunho simbólico dessa almejada Paz. Em
contraste com as antigas “muralhas das cidades” e o pavor de atravessar
fronteiras sob a ameaça de cair a inexorável “espada de Dâmcles” sobre as
nossas cabeças, abriram-se as portas da liberdade e a paz da confraternização
entre povos e línguas. E assim se foi escrevendo uma esteira de luz diante das
gerações vindouras.
Mas,
paradoxalmente, parece emergir da terra europeia o magro e fatídico fantasma
que dá pelo nome de tédio da Paz. O bicho-homem não tem paladar para sorver e
fruir por muito tempo o fruto suave e doce que lhe oferecem os seus
progenitores. E agora é o que se vê: o regurgitar de pulsões tribais, o ódio traumático
aos vizinhos, o cancro da xenofobia! E tudo isto comandado pelo espectro que,
feito para a alegria, só semeia guerras e convulsões - o monstro-dinheiro, a
avidez insaciável do “vil metal” ou, em termos formais, o capitalismo selvagem
Teremos
nós de esperar mais um rio de sangue, teremos nós de crucificar uma ou mais
gerações para reaprendermos o saboroso gosto da Paz?...
Aqui
fica o apelo dos corajosos visionários, os pioneiros daquela Europa igualitária
que sonharam para nós. Descendo, porém, às profundezas do nosso subconsciente,
descubramos talvez que dentro de cada um de nós existe essa Europa, a dois tempos
e duas velocidades, balanceando entre o cansaço da guerra e o tédio da Paz.
Compete-nos educarmo-nos para o genuíno espírito europeu e lançar o repto aos
detentores do poder para que não deixem destruir dentro de si e do seu povo as
sábias papilas gustativas, doadas a todo o ser humano, que nos fazem rejeitar o
vírus da guerra e amar infinitamente as férteis doçuras da Paz.
Que
sobre nós não recaia a maldição condenatória do “povo eleito” de Jerusalém: “Ai,
povo, povo, que rejeitas as águas puras das nascentes e vais dessedentar-te com
a água podre das cisternas rotas”! (Jer.2,13).
09.Mai.19,
Dia da Europa
Martins Júnior
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