terça-feira, 23 de julho de 2019

PERGUNTAS ESCONDIDAS NO CHÃO DA RIBEIRA SECA


                                                     

Podem chamar-lhe idílica e mágica, podem bordá-la da mais fina filigrana ou enclausurá-la no gineceu da maus cândida açucena. Mas o que ele é, de verdade, – a Ilha, qualquer Ilha – resume-se a um conceito-objecto denominado campo experimental virgem, reserva integral do pensamento, numa palavra, laboratório vivo e único, de onde pode sair o vergel mais perfumado e onde, paradoxalmente, pode medrar um antro de ossadas pútridas, infestantes.
Neste caso, a Ilha, a nossa, não foge à regra. A olho-nu, ela desdobra-se a quem quer “vê-la” e não apenas “olhá-la”. Na orografia, na produção agrícola, na criação artística, no desporto, na organização sócio-política … e na administração eclesiástica. Aqui, tudo é diferente, porque tudo é possível. Aqui, a originalidade ganha foros de anormalidade. Porque “fica tudo em casa” e ao que ousar sair tem logo o mar por todas pontas, onde tudo se afoga ou muito dificilmente consegue navegar. É o drama – e a glória – de ser Ilha.
Propus-me penetrar hoje no “dentro mais dentro” do recente caso Ribeira Seca, cujo protagonista foi e é, sem sombra de dúvida, a Igreja Católica e a sua hierarquia pós-25 de Abril na Ilha da Madeira. Para apreender mais seguramente as premissas desta análise, socorro-me do texto do abalizado filósofo e teólogo Prof.Dr. Anselmo Borges, transcrito no ‘blog’ anterior: o paradoxo de uma Igreja universal marcada, de um lado, “pelo descentramento de corações de um Deus-Amor e, de outro, por uma máquina dogmática centralizadora e um aparelho político-jurídico (denominado Código de Direito Canónico) à procura de visibilidade”. Citando Olivier Robineau, este paradoxal estatuto “tanto pode dar lugar a um São Francisco de Assis como a um Torquemada”. Por outras palavras, tanto pode produzir um santo como um inquisidor-assassino. Neste dilema, a questão que se nos depara inexoravelmente é esta: em que Igreja acreditar? Qual delas é válida? A  do “Deus-Amor” que produz um Santo ou a do aparelho político-jurídico que dá à luz um ‘piedoso monstro’,  um implacável torturador de corpos e almas?
Os dados estão lançados. É só jogá-los, lê-los, analisá-los sobre o tampo verde desta mesa chamada Madeira. Sejamos claros e directos. Sem azedumes, mas com toda a objectividade:
Um Bispo, peça-chave do regime salazarista no aparelho político-jurídico eclesiástico e seu indesmentível serventuário, chega à Madeira em 1974 e a decisão canónica mais solene que toma é suspender um padre católico, sem processo algum e sem direito ao contraditório. O padre não exercia então qualquer cargo político-partidário. O Bispo incendeia a opinião pública através do diocesano Jornal da Madeira, amaldiçoa o padre e os paroquianos, recusa-se a dar o Crisma e – brade aos céus! – proíbe  a venda de hóstias para a Eucaristia daquele povo cristão e católico, o que levou o mesmo povo a adquirir uma máquina para o efeito. O Bispo morreu.
Sucedeu-lhe um Bispo madeirense e, depois, um Bispo algarvio. O madeirense notabilizou-se por um episódio escandaloso, único na histórica Madeira de 600 anos: pediu aos governantes que mandassem 70 polícias ocupar a igreja. Sem mandado judicial. O povo resistiu. Passados 18 dias e 18 noites, os agentes policiais desocuparam a igreja, deixando-a livre para o povo que retomou normalmente a vida espiritual no seu templo.
O terceiro Bispo não deixou por mãos alheias os seus pergaminhos nesta história singular: aproveitando a vinda da Imagem Peregrina à Madeira, proibiu que ela entrasse na igreja, ficando a imagem, escoltada por muitos policiais, à entrada do adro, apinhado de gente de toda a Ilha. E lá se foi, sem nele ter entrado, perante a indignação contida da imensa multidão.
Porque a História não se compadece com novelas sombrias e  sem rosto, estes três Prelados têm nome: Francisco Santana, Teodoro Faria, António Carrilho.
Um outro Bispo – o quarto, neste roteiro estritamente narrativo - chega à Madeira em Fevereiro de 2019  e no exíguo espaço de quatro meses apaga o “rasto viscoso e sujo” de 42 anos de prepotência anti-evangélica: revoga a suspensão do padre, abre os braços a um povo irmão e, sem escrúpulos doentios nem subserviências de espécie alguma, visita aquela gente, entrando e abençoando aquele templo que os seus antecessores tinham amaldiçoado. O povo, que durante 42 anos (mais 8)  se manteve sempre fiel à sua igreja nativa, rejubilou de coração em festa no abraço de todos os irmãos com o seu Pastor Diocesano. Pacificou-se a Ilha, enfim! Este Bispo tem nome: Nuno Brás.
Retomando a questão inicial – que é, afinal, o que mais interessa em toda esta saga do incrível – falta responder à pergunta fundamental:  Em qual Igreja acreditar? Na de Francisco Santana, Teodoro Faria, António Carrilho?... Ou na Igreja de Nuno Brás?!
Obtida a resposta no íntimo de cada um, postula-se inevitavelmente uma outra mais profunda: Onde estará a verdadeira Igreja de Jesus Cristo?
É inesgotável o filão de ideias e perspectivas que o caso Ribeira Seca encerra. “O Caminho faz-se caminhando”. E enquanto caminhamos, termino esta longa reflexão com a parábola do “Bom Samaritano”, parafraseando a pergunta que Jesus fez aos hipócritas “doutores da lei judaica”, leia-se lei “jurídico-canónica”:
Qual destes quatro Bispos vos parece ter sido o Próximo do Povo de Deus?

23.Jul.19
Martins Júnior

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