Podem
chamar-lhe idílica e mágica, podem bordá-la da mais fina filigrana ou
enclausurá-la no gineceu da maus cândida açucena. Mas o que ele é, de verdade, –
a Ilha, qualquer Ilha – resume-se a um conceito-objecto denominado campo
experimental virgem, reserva integral do pensamento, numa palavra, laboratório vivo
e único, de onde pode sair o vergel mais perfumado e onde, paradoxalmente, pode
medrar um antro de ossadas pútridas, infestantes.
Neste
caso, a Ilha, a nossa, não foge à regra. A olho-nu, ela desdobra-se a quem quer
“vê-la” e não apenas “olhá-la”. Na orografia, na produção agrícola, na criação
artística, no desporto, na organização sócio-política … e na administração
eclesiástica. Aqui, tudo é diferente, porque tudo é possível. Aqui, a
originalidade ganha foros de anormalidade. Porque “fica tudo em casa” e ao que
ousar sair tem logo o mar por todas pontas, onde tudo se afoga ou muito
dificilmente consegue navegar. É o drama – e a glória – de ser Ilha.
Propus-me
penetrar hoje no “dentro mais dentro” do recente caso Ribeira Seca, cujo
protagonista foi e é, sem sombra de dúvida, a Igreja Católica e a sua hierarquia
pós-25 de Abril na Ilha da Madeira. Para apreender mais seguramente as
premissas desta análise, socorro-me do texto do abalizado filósofo e teólogo
Prof.Dr. Anselmo Borges, transcrito no ‘blog’ anterior: o paradoxo de uma
Igreja universal marcada, de um lado, “pelo descentramento de corações de um
Deus-Amor e, de outro, por uma máquina dogmática centralizadora e um aparelho
político-jurídico (denominado Código de Direito Canónico) à procura de
visibilidade”. Citando Olivier Robineau, este paradoxal estatuto “tanto pode
dar lugar a um São Francisco de Assis como a um Torquemada”. Por outras
palavras, tanto pode produzir um santo como um inquisidor-assassino. Neste
dilema, a questão que se nos depara inexoravelmente é esta: em que Igreja
acreditar? Qual delas é válida? A do “Deus-Amor”
que produz um Santo ou a do aparelho político-jurídico que dá à luz um ‘piedoso
monstro’, um implacável torturador de
corpos e almas?
Os
dados estão lançados. É só jogá-los, lê-los, analisá-los sobre o tampo verde
desta mesa chamada Madeira. Sejamos claros e directos. Sem azedumes, mas com
toda a objectividade:
Um
Bispo, peça-chave do regime salazarista no aparelho político-jurídico eclesiástico
e seu indesmentível serventuário, chega à Madeira em 1974 e a decisão canónica
mais solene que toma é suspender um padre católico, sem processo algum e sem
direito ao contraditório. O padre não exercia então qualquer cargo
político-partidário. O Bispo incendeia a opinião pública através do diocesano
Jornal da Madeira, amaldiçoa o padre e os paroquianos, recusa-se a dar o Crisma
e – brade aos céus! – proíbe a venda de
hóstias para a Eucaristia daquele povo cristão e católico, o que levou o mesmo
povo a adquirir uma máquina para o efeito. O Bispo morreu.
Sucedeu-lhe
um Bispo madeirense e, depois, um Bispo algarvio. O madeirense notabilizou-se
por um episódio escandaloso, único na histórica Madeira de 600 anos: pediu aos
governantes que mandassem 70 polícias ocupar a igreja. Sem mandado judicial. O
povo resistiu. Passados 18 dias e 18 noites, os agentes policiais desocuparam a
igreja, deixando-a livre para o povo que retomou normalmente a vida espiritual
no seu templo.
O
terceiro Bispo não deixou por mãos alheias os seus pergaminhos nesta história
singular: aproveitando a vinda da Imagem Peregrina à Madeira, proibiu que ela
entrasse na igreja, ficando a imagem, escoltada por muitos policiais, à entrada
do adro, apinhado de gente de toda a Ilha. E lá se foi, sem nele ter entrado,
perante a indignação contida da imensa multidão.
Porque
a História não se compadece com novelas sombrias e sem rosto, estes três Prelados têm nome:
Francisco Santana, Teodoro Faria, António Carrilho.
Um
outro Bispo – o quarto, neste roteiro estritamente narrativo - chega à Madeira em
Fevereiro de 2019 e no exíguo espaço de
quatro meses apaga o “rasto viscoso e sujo” de 42 anos de prepotência anti-evangélica:
revoga a suspensão do padre, abre os braços a um povo irmão e, sem escrúpulos
doentios nem subserviências de espécie alguma, visita aquela gente, entrando e
abençoando aquele templo que os seus antecessores tinham amaldiçoado. O povo,
que durante 42 anos (mais 8) se manteve
sempre fiel à sua igreja nativa, rejubilou de coração em festa no abraço de
todos os irmãos com o seu Pastor Diocesano. Pacificou-se a Ilha, enfim! Este
Bispo tem nome: Nuno Brás.
Retomando
a questão inicial – que é, afinal, o que mais interessa em toda esta saga do
incrível – falta responder à pergunta fundamental: Em qual Igreja acreditar? Na de Francisco
Santana, Teodoro Faria, António Carrilho?... Ou na Igreja de Nuno Brás?!
Obtida
a resposta no íntimo de cada um, postula-se inevitavelmente uma outra mais
profunda: Onde estará a verdadeira Igreja de Jesus Cristo?
É
inesgotável o filão de ideias e perspectivas que o caso Ribeira Seca encerra. “O
Caminho faz-se caminhando”. E enquanto caminhamos, termino esta longa reflexão
com a parábola do “Bom Samaritano”, parafraseando a pergunta que Jesus fez aos
hipócritas “doutores da lei judaica”, leia-se lei “jurídico-canónica”:
Qual
destes quatro Bispos vos parece ter sido o Próximo do Povo de Deus?
23.Jul.19
Martins Júnior
Tudo tretas dos limpa bolsos dos incautos!
ResponderEliminar