É
nas manhãs de domingo que descubro a luz que irradia para a semana inteira. Ela
– a luz – surge de dentro das folhas jacentes do Livro que vem de longe, das
areias do Oriente. Livro, umas vezes
enigmático como a esfinge do Egipto, outras vezes assertivo e cortante
como a espada de Dâmocles sobre a cabeça da humanidade.
Já
na semana passada compus o debate aberto entre nós e José Saramago tentando
contraditar, em parte, a tese do “nosso” Prémio Novel da Literatura quando
sugere que a Bíblia é um estendal da atrocidades, as mais cruéis, desumanas,
injustas e que quem a lê perde a fé.
Não
está longe da verdade histórica a afirmação de Saramago, pois a narrativa do
povo judeu, que o Livro condensa, está ensopada em sangue inocente, com o aplauso
do justiceiro Deus Iahveh. Mas há excepções. E demonstrei-o através de um homem
corajoso, paladino do direito e da justiça social – o Profeta Amós.
Hoje,
a estrada de domingo trouxe revérberos ainda mais intensos sobre esta questão.
Pudesse eu reencontrar Saramago (como o fiz na sua casa da “Rua da Madeira”, em
Madrid, um ano antes de morrer, a propósito do seu aniversário natalício no
mesmo dia que o meu) e talvez me não reproduzisse a observação crítica que ele
próprio tinha feito a um ilustre clérigo, hoje laureado na hierarquia eclesiástica:
“O senhor dita dogmas, mas não responde às minhas objecções, não apresenta
argumentos para contrariá-las”.
Pois,
mais uma vez abro o Livro, em Amós, cap.6, 1-5) e fico atordoado com a
veemência furibunda (nem as mais agressivas catilinárias de Cícero se lhe
aproximam) contra os magnatas
governantes de Jerusalém, esses que vivem na opulência, sem um pingo de justiça
e mágoa pelo povo que vive na miséria, arruinado de dia para dia.
Eis
o que diz o Senhor omnipotente:
«Ai
daqueles que vivem comodamente em Sião
e
dos que se sentem tranquilos no monte da Samaria.
Deitados
em leitos de marfim,
estendidos
nos seus divãs,
comem
os melhores cordeiros do rebanho
e
os vitelos mais gordos do estábulo.
Improvisam
ao som da lira
e
cantam como David as suas próprias melodias.
Bebem
o vinho em grandes taças
e
perfumam-se com finos unguentos,
mas
não os aflige a ruína do povo.
Por
isso, agora partirão para o exílio à frente dos deportados
e
acabará esse bando de voluptuosos».
“Grandíloquo,
alto e sublimado”, cito Camões. Arrebatador!
Milénios
mais tarde, viria José Afonso e chamá-los-ia “Vampiros”
“Que vêm em bando pela noite calada
Comem
tudo e não deixam nada…
Trazem
no ventre despojos antigos
Bebem
o sangue fresco da manada
Mas
nada os prende às vidas acabadas…
Senhores
à força, mandadores sem lei
Enchem
as tulhas bebem vinho novo
Dançam
a ronda no pinhal do rei…
Eles
comem tudo, eles comem tudo e não deixam nada…
Quem
não vê na vigorosa canção de Zeca Afonso o libelo condenatório inexoravelmente
lançado pelo Profeta Amós? Mas vai mais além na sentença inapelável: “Serão
deportados. É preciso acabar com esse bando de parasitas”! (Sic).
Cuidado!
A Bíblia não é só um cemitério de vítimas ou um rosário de preces. É também
este grito de denúncia, esta sentença arrasadora das injustiças e este combate
sem tréguas às assimetrias sociais! O que faz falta é saber ler. E agir, em vez
de nos ‘deleitarmos’ no charco das lamúrias pias, estéreis. A este propósito,
importa reter o pensamento do Prof. Doutor Anselmo Borges, o maior intérprete em
Portugal da mensagem do Papa Francisco:
“É
verdade que a crise é também, e talvez sobretudo, de cultura moral e
espiritual, mas não é possível avançar sem uma implicação séria e a fundo na
social. Não se pode pretender fugir ao problema social invocando apenas o
caminho da crise espiritual e de valores. Citando o Papa Francisco, “Nada mais
alienante e falso do que a religião desencarnada”. (Francisco, Desafios à Igreja e ao Mundo, Gradiva, pág. 240).
Belo
caminho, Estrada da Luz, para a semana e para a vida!
29.Set.19
Martins Júnior
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