sábado, 1 de fevereiro de 2020

AQUELA CONTRADITÓRIA CRIANÇA…


                                     

“Uma espada de dor há-de trespassar-te o coração”.
A mãe trazia nos braços frágeis um bebé com quarenta dias de vida. Quase lhe feneceram as forças para segurá-lo, quando o velho profeta lhe abriu a ferida primeira com este enigmático prognóstico: “Essa criança está marcada pelo signo da contradição. Ela a muitos vai salvar, mas também a outros tantos  atirá-los-á  à ruina e à perdição”.
Criou o filho com aquela chama que só o amor de mãe sabe aquecer. Mas nesses longos trinta anos, dentro dela surgia como um fantasma aquela espada profética, tanto mais ameaçadora quanto a ausência de qualquer sinal confirmativo. Até que, um dia, o menino feito varão robusto saiu à rua,  encheu as praças, invadiu as mentes e os corações dos conterrâneos. A mãe viu então a inexorável espada de dor trespassar-lhe a alma. O filho – esse assumiu-se por inteiro, personificou a contradição para que fora vaticinado e com isso assinou a própria sentença de morte.
Este é o relato que hoje e amanhã será dito e comentado nos templos. À semelhança dos grandes reformadores da história,  o Nazareno veio transformar a face da terra. Ele sabia e apregoava frontalmente que “não se pode agradar a todos nem tão-pouco servir a dois senhores” – à Verdade e à mentira, ao Bem e ao mal, em síntese, a Deus e ao capital, ou seja, “à economia que mata”. E se, pela manhã, passeava à beira-mar abraçando os pescadores, acarinhando as crianças, suavizando as dores dos doentes, não se coibia de, à tarde, aproximar-se do Santuário Real de Jerusalém e apostrofar os fariseus, os doutores da Lei,  os pontífices do Templo que espoliavam o povo, a sua mentalidade e os seus magros recursos. Perante a hipocrisia reinante e as meias verdades impostas como código de conduta social, ‘legislará’ aos seus colaboradores e às multidões: “Que a vossa linguagem seja límpida, directa: “Sim, sim… Não, não!”. E para que não restassem dúvidas sobre o seu mandato de três anos contra a paz podre e as ambiguidades sofisticadas e matreiras, não hesitará em identificar-se. Aquele jovem, ambicioso construtor de uma nova Ordem Social e Humana, por mais incrível que pareça, assim proclamará: “Pensais que eu vim trazer a paz ao mundo, desenganai-vos. Eu não vim trazer a paz (podre), eu vim trazer a guerra, trago uma espada”. (Mt.10,34).
Sem contraditório não há justiça, não há progresso, não há vida. A própria via biológica: o tronco impõe-se à raiz, os ramos contradizem o tronco e o fruto destrona a flor. É nas águas movediças – nunca nos moribundos pântanos – que nasce a saúde e cresce a produtividade. Chamem-lhe sonho ou dialéctica, o certo é que aí e por aí é que “o mundo pula e avança”.
Se cá voltasse de novo, o Cristo-Contradição dificilmente encontraria lugar. No charco dos interesses correntes, os corifeus da cobardia calculada tudo fariam para cortar-lhe o passo: os que lavam as mãos na bacia de Pilatos, os prestidigitadores da palavra, os que não se comprometem, os que usam religião e política como drogas duras, embaladas em pacotes leves, - a toda essa classe de “sepulcros caiados, brancos por fora e podres por dentro”, Ele afrontaria e cumpriria até ao Gólgota a sua sina libertadora nos atalhos da contradição.
Quem é o senhor que se segue?...
Ou: Quem está disposto a segui-lO?
Talvez o Papa Francisco. E muita gente anónima, homens e mulheres que desejam a madrugada e, para isso, toda a vida levantam, como o poeta, “o facho a arder na noite escura”.
01.Fev.20
Martins Júnior

1 comentário:

  1. Que enorme viagem pelas fragas firmes do pensamento litúrgico. Pergunto, na ara da minha simplicidade, quantos estão dispostos a seguir uma igreja renovada, fazendo o caminho da contradição?

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