“Uma
espada de dor há-de trespassar-te o coração”.
A
mãe trazia nos braços frágeis um bebé com quarenta dias de vida. Quase lhe
feneceram as forças para segurá-lo, quando o velho profeta lhe abriu a ferida
primeira com este enigmático prognóstico: “Essa criança está marcada pelo signo
da contradição. Ela a muitos vai salvar, mas também a outros tantos atirá-los-á à ruina e à perdição”.
Criou
o filho com aquela chama que só o amor de mãe sabe aquecer. Mas nesses longos
trinta anos, dentro dela surgia como um fantasma aquela espada profética, tanto
mais ameaçadora quanto a ausência de qualquer sinal confirmativo. Até que, um
dia, o menino feito varão robusto saiu à rua, encheu as praças, invadiu as mentes e os
corações dos conterrâneos. A mãe viu então a inexorável espada de dor
trespassar-lhe a alma. O filho – esse assumiu-se por inteiro, personificou a
contradição para que fora vaticinado e com isso assinou a própria sentença de
morte.
Este
é o relato que hoje e amanhã será dito e comentado nos templos. À semelhança
dos grandes reformadores da história, o
Nazareno veio transformar a face da terra. Ele sabia e apregoava frontalmente
que “não se pode agradar a todos nem tão-pouco servir a dois senhores” – à Verdade
e à mentira, ao Bem e ao mal, em síntese, a Deus e ao capital, ou seja, “à
economia que mata”. E se, pela manhã, passeava à beira-mar abraçando os
pescadores, acarinhando as crianças, suavizando as dores dos doentes, não se
coibia de, à tarde, aproximar-se do Santuário Real de Jerusalém e apostrofar os
fariseus, os doutores da Lei, os
pontífices do Templo que espoliavam o povo, a sua mentalidade e os seus magros
recursos. Perante a hipocrisia reinante e as meias verdades impostas como
código de conduta social, ‘legislará’ aos seus colaboradores e às multidões: “Que
a vossa linguagem seja límpida, directa: “Sim, sim… Não, não!”. E para que não
restassem dúvidas sobre o seu mandato de três anos contra a paz podre e as
ambiguidades sofisticadas e matreiras, não hesitará em identificar-se. Aquele
jovem, ambicioso construtor de uma nova Ordem Social e Humana, por mais incrível
que pareça, assim proclamará: “Pensais que eu vim trazer a paz ao mundo,
desenganai-vos. Eu não vim trazer a paz (podre),
eu vim trazer a guerra, trago uma espada”. (Mt.10,34).
Sem
contraditório não há justiça, não há progresso, não há vida. A própria via
biológica: o tronco impõe-se à raiz, os ramos contradizem o tronco e o fruto
destrona a flor. É nas águas movediças – nunca nos moribundos pântanos – que nasce
a saúde e cresce a produtividade. Chamem-lhe sonho ou dialéctica, o certo é que
aí e por aí é que “o mundo pula e avança”.
Se
cá voltasse de novo, o Cristo-Contradição dificilmente encontraria lugar. No
charco dos interesses correntes, os corifeus da cobardia calculada tudo fariam
para cortar-lhe o passo: os que lavam as mãos na bacia de Pilatos, os prestidigitadores
da palavra, os que não se comprometem, os que usam religião e política como
drogas duras, embaladas em pacotes leves, - a toda essa classe de “sepulcros
caiados, brancos por fora e podres por dentro”, Ele afrontaria e cumpriria até ao Gólgota a
sua sina libertadora nos atalhos da contradição.
Quem
é o senhor que se segue?...
Ou:
Quem está disposto a segui-lO?
Talvez
o Papa Francisco. E muita gente anónima, homens e mulheres que desejam a
madrugada e, para isso, toda a vida levantam, como o poeta, “o facho a arder na
noite escura”.
01.Fev.20
Martins Júnior
Que enorme viagem pelas fragas firmes do pensamento litúrgico. Pergunto, na ara da minha simplicidade, quantos estão dispostos a seguir uma igreja renovada, fazendo o caminho da contradição?
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