Em
dia de domingo, de praia larga e mar macio, somos açoitados pela vergasta do
Mestre contra Pedro: “Porque é que tu duvidaste, homem?”. Contra o arrais do
barco e contra todos nós, tripulantes do tempo.
Na alegoria de Mateus (cap.14, 22-33) que nos foi proposta neste domingo, está patente
a batalha naval entre a Dúvida e a Certeza, o eterno duelo com que, desde
sempre, se confronta a condição humana. Malefícios da Dúvida e Benefícios da
Certeza ou o seu contrário, ambos bivalentes, a um tempo contraditórios e
coincidentes. Vejamos:
A Dúvida, tal como a discussão ou
debate, é o túnel que nos faz correr para a luz ao fundo dele. Sobretudo,
quando “metódica” (na famosa formulação de Descartes) constitui o caminho da
ciência, numa progressão reprodutiva, de descoberta em descoberta. Sem o
primado da Dúvida não há conhecimento, nunca haverá Progresso.
Mas, nos antípodas, a Dúvida mata, pelo
cutelo inexorável do Medo. Quando inveterada e doentia, ela afunda e afoga não
só o indivíduo, em particular, como a
comunidade, no seu todo. É o que se vê
na citada narrativa de Mateus. Nada mais convincente que este tempo de pandemia
para interiorizarmos a Dúvida-Medo, simultaneamente como vírus devastador e
como seu antídoto.
“Navegar
é preciso” – bem avisa o cantautor. A quilha
do navio, fiel ao astrolábio do pensamento, marca o rumo e fixa no vasto
horizonte o porto de chegada. Mas as ondas, as vagas alterosas, o vento
hostil?!... Traduzamos: há as emoções,
as dicas sopradas dos mais próximos, a críticas, o malsinar contra a velocidade
de cruzeiro que queremos transmitir aos mastros e às velas do nosso sonho. Tudo
isso somado: emerge a Dúvida! E se nos
deixamos levar por ela (que até pode tomar a imagem de sedutora sereia), aí
está frustrado o plano, perdida a estratégia, destruído o rumo, afundado o
barco. Maldita Dúvida!, balbuciamos aflitos, enquanto as ondas retalham e
engolem o melhor que havia em nós. Lamentavelmente, está o oceano da vida coalhado
de destroços destes…
Mas a voz do Mestre, ecoando na noite
dos tempos, não tem apenas Pedro ou cada um de nós como destinatários. Ele não
veio para servir de lenitivo e ‘pace-maker’ a este ou aquele coração
desalentado. Ele veio para um projecto maior, universal. Por isso, a Sua
chicotada atravessa os séculos, sobe até ao trono dos líderes locais,
regionais, nacionais, mundiais, para alertá-los e invectivá-los contra a
inércia, contra as cedências cobardes, numa palavra, contra a Dúvida, a tal que
mata.
Acreditamos que os governantes, quando
pegam aos ombros o comando das populações, levam no porão do navio e acalentam
dentro do peito os melhores projectos em prol dos povos, seus constituintes. O
mesmo poderei admitir dos eleitos parlamentares, futuros legisladores da grei.
Esta é a Fé que professam no acto de juramento do Poder. Esta a Certeza que os
anima e suporta. Mas… lá vêm as vagas desviantes, os interesses classistas, os ‘lobistas’,
os exploradores, os manipuladores capitalistas salgados como velhos bacalhaus
do norte. Vêm ainda os novos corsários, os tubarões, assessorados pelos oportunistas de jornais e seus vergados assalariados,
vêm as redes sociais e até chega-lhes o hissope da corte eclesiástica e…pronto:
o mar em cachão toma conta deles, os responsáveis maiores, e logo a Dúvida-Medo
os afoga, logo a nação naufraga no Medo
de perder amigos de ‘colarinho branco’, perder benesses inconfessáveis, medo de perder
influência e votos…
Da minha passagem pelo Parlamento
provinciano e paroquião desta mini-porção de terra rodeada de Atlântico,
quantas vezes (sem fim!) vi eu, “claramente visto”, deputados votarem contra a
própria consciência de mandatados do povo. Porquê?... Só e exclusivamente para não perderem as graças do todo-potente
ditador, só para segurarem o assento, só para obedecerem aos manipuladores e
senhorios do povo. Era aí que eclodiria a Voz: “Porque é que duvidaste da
bondade e da justiça de determinada proposta de decreto-lei? Porque é que não a
votaste favoravelmente? Porque é que te acobardaste ao Medo e à Dúvida?”.
Oxalá não chegue aos julgadores dos
tribunais a praga da Dúvida-Medo. Não chegue também a conspurcar e a profanar a
fímbria dos que se dizem intérpretes da Religião. Mas na Madeira já aconteceu,
também “claramente visto”!!!
Se e quando o nosso batel for tentado
pelas perturbadores ondas da Dúvida-Medo, saibamos fechar os ouvidos e bradar aos ventos e aos
mares: “Eu não desisto! Eu vou até ao fim”!
09.Ago.20
Martins
Júnior
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