“O que eu andei para aqui chegar!”….
Ao vê-la fechada naquela nau da última viagem que terá de fazer quem teve o privilégio de nascer pareceu-me ouvir a sua voz saída das quatro tábuas ali jacentes. As centenas, milhares de quilómetros que esta mulher andou…sem nunca ter conhecido outras paragens senão a sua ilha, a sua freguesia, o seu sítio verde terra, a sua amada Ribeira Seca.
Há quem seja grande
porque enormes foram os cenários, os ambientes, os países e os regimes que o
fizeram. E há quem, pelo seu labor discreto, torne maior e mais belo o magro e serrano
berço onde nasceu e viveu. The small is beautiful.
Assim foi esta Mulher. Sem
nunca ter viajado, percorreu o sempre inacabado itinerário da paisagem humana.
Sem nunca ter casado, foi Mãe de centenas, milhares de filhos: Mãe
supra-biológica, na formação da alma infantil, dentro dos parâmetros que marcam
decisivamente os passos futuros da vida: o civismo, o carácter, a
convivialidade, a cultura, a crença, enfim, os valores humano-cristãos, a cuja
campanha dedicou, enquanto lhe permitiram, os seus prolongados cem anos menos
dois.
Conheci-a,
desde o meu regresso da guerra colonial em Moçambique, em 1969, quando passei
de capelão militar a outra missão qualitativamente mais digna, a de assistente sócio-cultural
e espiritual, como pároco da Ribeira Seca, um enclave marginalizado,
desprezado, explorado, martirizado durante mais de cinco séculos pelo ‘leonino
regime’ da colonia. Da colónia africana à colonia insulana, uma passagem de
nível que exigiria idênticos, se não
maiores, esforços de esclarecimento e persistência para libertar
quem vivia plebeu e ´servo-da-gleba’ na sua própria ilha.
E foi nesta conjuntura
que comecei a apreciar a trajectória do pensamento de uma Mulher, nascida na ruralidade
profunda e marcada pela resignação imposta
no catecismo eclesiástico como promessa e caminho de salvação eterna. Ela
pertencia à congregação das antigas “Filhas de Maria”, a que os populares depreciativamente apelidavam de “beatas”. Com surpresa
minha, notei o crescimento evolutivo da sua mentalidade face à Igreja institucional,
tornando-se uma defensora e lutadora acérrima dos valores autenticados na
Bíblia, sobretudo nos Evangelhos, mais do que nos preceituados pela hierarquia.
Ao ponto de - quando o governo regional e a diocese conluiaram-se para mandar
70 polícias ocupar a igreja da Ribeira Seca em 1985 – esta Mulher, diante do agente que a
obrigava a abandonar o recinto, reagiu de uma forma lapidar: “Vá embora o
senhor. Eu não saio daqui, esta é a minha casa”!
Além da sua natural
bonomia, da gentileza de trato (nunca erguia agressivamente a sua voz) e de uma
constante preocupação de unir em vez de separar, esta Mulher ganhou o honroso título
de Mãe – aquela que “dá o pão e o ensino”: ensinou centenas e milhares de
crianças em aulas de catequese e alimentou gerações com o pão servido no altar da
Eucaristia. Quando o bispo diocesano
proibiu a venda oficial de hóstias à paróquia da Ribeira Seca, foi ela que inspirou
a iniciativa de adquirirmos uma máquina para
a confecção das partículas destinadas à Comunhão. Durante, mais de 40 anos ( desde 1977 a 2019), produziu milhões de hóstias para suprir a ‘fome’ do
Pão da Eucaristia, que a Igreja institucional tinha negado. Jamais esquecerei a
paciência o carinho maternais com que, todos os anos, ela fazia a demonstração ‘ao
vivo’ de como se fabricam as hóstias,
perante os olhos atentos das crianças candidatas à Primeira Comunhão.
Sétimo Dia abraçado a uma
vida de quase Cem Anos!
Que outro voo de
homenagem e saudade posso eu dedicar à Maria da Conceição de Gois senão a expressiva
revelação do poeta:
Não
me peças mais canções
Porque
a cantar vou sofrendo
Sou
como as velas do altar
Que
dão luz e vão morrendo
Ela
viveu, serviu,, sofreu, cantou, aprendeu, ensinou e alimentou gerações, “como
as velas do altar” e assim foi fenecendo,
suavemente apagando-se, dando luz e assim morrendo.
MISSÃO
CUMPRIDA – podem escrever na sua tumba. Por isso e porque “morrer é só deixar
de ser visto”, a sua presença e o seu legado povoam amplamente o nosso agregado
populacional, tal como a luminotécnica deste nosso templo da Ribeira Seca, sem
uma única lâmpada visível, mas todo ele brilhantemente iluminado.
“Alma
nossa gentil que te partiste”…
Boa
Viagem para a Eternidade !
17.07.24
Martins Júnior
Comovente o seu testemunho estimado Padre Martins!
ResponderEliminar"Morrer é deixar de ser visto" (Pe. António Vieira), mas o humanismo deixado pela Sra. Conceição de Gois, será sempre uma enorme presença e um farol incandescente na interioridade de quem teve o privilégio de ouvi-la e com ela partilhar um doce sorriso.
ResponderEliminarEstava com saudades dos seus textos..... Este, em particular, mostra bem a sua veia literária, concisa, elegante e, sobretudo, com uma acuidade diferenciada.... Paz à alma da senhora.....Diríamos "Transit benefacendum..."
ResponderEliminarTive a sorte de conhecer esta Senhora e mais sorte ainda por ela ser a Companheira de quarto da minha mãe na instituição Atalaia. Eu e a minha família ganhamos por ela um grande carinho e amizade. Para nós era mais uma familiar. Não sei a que propósito, deu- me o nome de Lestinha, nome esse que eu tanto gostava de ouvir a D. Conceição chamar- me. A nossa tristeza foi grande quando acompanhamos a sua debilidade, mas todos os dias falávamos com ela, passava- lhe a mão no rosto e já sem sorrir,ela abria os seus grandes olhos e ficava a olhar . Que Deus a guarde para sempre. Nunca a esquecerei querida amiga da Lestinha.
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