quarta-feira, 17 de julho de 2024

NO 7º DIA DE UMA SAUDOSA MÃE SUPRA- -BIOLÓGICA

 


“O que eu andei para aqui chegar!”….

Ao vê-la fechada naquela nau da última viagem que terá de fazer quem teve o privilégio de nascer pareceu-me ouvir a sua voz saída das quatro tábuas ali jacentes. As centenas, milhares de quilómetros que esta mulher andou…sem nunca ter conhecido outras paragens senão a sua ilha, a sua freguesia, o seu sítio verde terra, a sua amada Ribeira Seca.

Há quem seja grande porque enormes foram os cenários, os ambientes, os países e os regimes que o fizeram. E há quem, pelo seu labor discreto, torne maior e mais belo o magro e serrano berço onde nasceu e viveu. The small is beautiful.

Assim foi esta Mulher. Sem nunca ter viajado, percorreu o sempre inacabado itinerário da paisagem humana. Sem nunca ter casado, foi Mãe de centenas, milhares de filhos: Mãe supra-biológica, na formação da alma infantil, dentro dos parâmetros que marcam decisivamente os passos futuros da vida: o civismo, o carácter, a convivialidade, a cultura, a crença, enfim, os valores humano-cristãos, a cuja campanha dedicou, enquanto lhe permitiram, os seus prolongados cem anos menos dois.

  Conheci-a, desde o meu regresso da guerra colonial em Moçambique, em 1969, quando passei de capelão militar a outra missão qualitativamente mais digna, a de assistente sócio-cultural e espiritual, como pároco da Ribeira Seca, um enclave marginalizado, desprezado, explorado, martirizado durante mais de cinco séculos pelo ‘leonino regime’ da colonia. Da colónia africana à colonia insulana, uma passagem de nível  que exigiria idênticos, se não maiores, esforços de   esclarecimento e persistência para libertar quem vivia plebeu e ´servo-da-gleba’ na sua própria ilha.

E foi nesta conjuntura que comecei a apreciar a trajectória do pensamento de uma Mulher, nascida na ruralidade profunda e marcada pela  resignação imposta no catecismo eclesiástico como promessa e caminho de salvação eterna. Ela pertencia à congregação das antigas “Filhas de Maria”, a que os populares  depreciativamente apelidavam de “beatas”. Com surpresa minha, notei o crescimento evolutivo da sua mentalidade face à Igreja institucional, tornando-se uma defensora e lutadora acérrima dos valores autenticados na Bíblia, sobretudo nos Evangelhos, mais do que nos preceituados pela hierarquia. Ao ponto de - quando o governo regional e a diocese conluiaram-se para mandar 70 polícias ocupar a igreja da Ribeira Seca  em 1985 – esta Mulher, diante do agente que a obrigava a abandonar o recinto, reagiu de uma forma lapidar: “Vá embora o senhor. Eu não saio daqui, esta é a minha casa”!

Além da sua natural bonomia, da gentileza de trato (nunca erguia agressivamente a sua voz) e de uma constante preocupação de unir em vez de separar, esta Mulher ganhou o honroso título de Mãe – aquela que “dá o pão e o ensino”: ensinou centenas e milhares de crianças em aulas de catequese e alimentou gerações com o pão servido no altar da Eucaristia. Quando o bispo  diocesano proibiu a venda oficial de hóstias à paróquia da Ribeira Seca, foi ela que inspirou a iniciativa de  adquirirmos uma máquina para a confecção das partículas destinadas à Comunhão. Durante, mais de 40 anos ( desde 1977 a 2019), produziu milhões de hóstias para suprir a ‘fome’ do Pão da Eucaristia, que a Igreja institucional tinha negado. Jamais esquecerei a paciência o carinho maternais com que, todos os anos, ela fazia a demonstração ‘ao vivo’  de como se fabricam as hóstias, perante os olhos atentos das crianças candidatas à Primeira Comunhão.

Sétimo Dia abraçado a uma vida de quase Cem Anos!

Que outro voo de homenagem e saudade posso eu dedicar à Maria da Conceição de Gois senão a expressiva revelação do poeta:

Não me peças mais canções

Porque a cantar vou sofrendo

Sou como as velas do altar

Que dão luz e vão morrendo

 

Ela viveu, serviu,, sofreu, cantou, aprendeu, ensinou e alimentou gerações, “como as velas do altar”  e assim foi fenecendo, suavemente apagando-se, dando luz e assim morrendo.

MISSÃO CUMPRIDA – podem escrever na sua tumba. Por isso e porque “morrer é só deixar de ser visto”, a sua presença e o seu legado povoam amplamente o nosso agregado populacional, tal como a luminotécnica deste nosso templo da Ribeira Seca, sem uma única lâmpada visível, mas todo ele brilhantemente iluminado.

“Alma nossa gentil que te partiste”…

Boa Viagem para a Eternidade !  

               

17.07.24

Martins Júnior


4 comentários:

  1. Comovente o seu testemunho estimado Padre Martins!

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  2. "Morrer é deixar de ser visto" (Pe. António Vieira), mas o humanismo deixado pela Sra. Conceição de Gois, será sempre uma enorme presença e um farol incandescente na interioridade de quem teve o privilégio de ouvi-la e com ela partilhar um doce sorriso.

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  3. Estava com saudades dos seus textos..... Este, em particular, mostra bem a sua veia literária, concisa, elegante e, sobretudo, com uma acuidade diferenciada.... Paz à alma da senhora.....Diríamos "Transit benefacendum..."

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  4. Tive a sorte de conhecer esta Senhora e mais sorte ainda por ela ser a Companheira de quarto da minha mãe na instituição Atalaia. Eu e a minha família ganhamos por ela um grande carinho e amizade. Para nós era mais uma familiar. Não sei a que propósito, deu- me o nome de Lestinha, nome esse que eu tanto gostava de ouvir a D. Conceição chamar- me. A nossa tristeza foi grande quando acompanhamos a sua debilidade, mas todos os dias falávamos com ela, passava- lhe a mão no rosto e já sem sorrir,ela abria os seus grandes olhos e ficava a olhar . Que Deus a guarde para sempre. Nunca a esquecerei querida amiga da Lestinha.

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