Os
recentes atentados do Daesh contra os Kurdos na faixa nordeste da Síria trazem
de novo o pesadelo atávico de um passado tribal, onde à barbárie dos homens se
junta a bênção de Alá. Esta tenebrosa relação entre guerra e religião é o deformado
produto da condição primária do ser humano - contingente, frágil e impotente
perante os comportamentos estranhos com que a natureza lhe amedrontava o normal
quotidiano. Era, na escala de Augusto
Comte, o “estádio teológico”, por força do qual a divindade era a única
explicação de todos os imprevistos, sobretudo as calamidades ocorridas à sua
volta. O nosso épico imortal, em plena época renascentista, interpretando a
ingénua crença dos marinheiros lusos, atribui ao santo tutelar os fenómenos
atmosféricos que os assolavam nos oceanos, chegando a nomear os relâmpagos como
o “fogo de Santelmo” – São Pedro Gonçalves Telmo, o guardador das gentes do
mar.
A
ignorância, o medo, a impotência perante o desconhecido tomaram conta dos
mortais, tolheram-lhes os anseios de desvendar os “segredos da natura”.
Esqueceram o mandato do Criador – “ Crescei e dominai a terra que vos dou” (Génesis,
1, 28) – para apenas submeter-se ao estranho veredicto do Juiz Supremo – “Não
toqueis na árvore da ciência, porque no dia em que comerdes do seu fruto,
morrereis” (Génesis,2, 17).
Por
inércia e comodismo, alimentados por outros tantos aprendizes de feiticeiro
e/ou auto-proclamados mensageiros do
divino, o homem acomodou-se à crédula almofada das religiões e deixou-se ficar
por aí, remetendo todas as suas referências para a superestrutura de um
deus-à-sua-maneira. Até que, mercê do esforço de homens e mulheres, tocados
pela intuição genesíaca – “Dominai a Terra” – ultrapassaram a fase transitória
do “estádio teleológico” e implantaram no terreno da história a idade áurea do
pensamento científico, o “estádio positivo”, em virtude do qual o homem assumiu
a condução do seu destino, naquilo que lhe foi dado pelo Criador, penetrando
nos caminhos da ciência e assim “dando novos mundos ao mundo”. Abandonou-se o
império fatalista dos fantasmas ocultos, subiu-se a pedregosa montanha da investigação e do saber e, dali, viu
desdobrar-se diante dos nossos olhos um horizonte de perspectivas e poderes
nunca antes alcançados.
É
este a paisagem onde felizmente se movimenta o tempo que nos foi dado viver e
que os nossos avós não tiveram a dita de atingir. Sabemos que os valores
religiosos não são nem a exclusividade nem a totalidade da condição humana.
Parafraseando um axioma do recente património português, diremos que há vida, mais
vida para além dos padrões religiosos. Pelo menos, há vivências paralelas que
não podem ser engolidas, apagadas ou esmagadas sob o jugo gratuito de
epifenómenos episódicos, por mais piedosos que se afigurem, mas que serão
sempre acidentais no percurso essencial de um povo. Há os
valores científicos, há as referências históricas, há a nascença e a identidade de cada pátria, de
cada burgo ou região.
Na
época que é a nossa, da procura científica da verdade histórica, sobretudo no
que concerne às raízes ancestrais que nos definem como cidadãos herdeiros de um
passado, seria extrema e paupérrima veleidade ceder às tentações populistas de
tempos obscurantistas, sob pena de trairmos a história e sacrificarmos a verdade no cepo da mais crassa
ignorância.
Já
lá vão, bem distantes, os defuntos modelos do sincretismo religioso que
retardou a marcha da história. Somos adultos. Somos esclarecidos. Longe de
nós a obsessão da falsa fé e do
fanatismo islâmico que hoje perseguem o mundo civilizado.
19.Out.19
Martins Júnior
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