sábado, 19 de outubro de 2019

HÁ MAIS VIDA ALÉM DA RELIGIÃO


                                           

Os recentes atentados do Daesh contra os Kurdos na faixa nordeste da Síria trazem de novo o pesadelo atávico de um passado tribal, onde à barbárie dos homens se junta a bênção de Alá. Esta tenebrosa relação entre guerra e religião é o deformado produto da condição primária do ser humano - contingente, frágil e impotente perante os comportamentos estranhos com que a natureza lhe amedrontava o normal quotidiano.  Era, na escala de Augusto Comte, o “estádio teológico”, por força do qual a divindade era a única explicação de todos os imprevistos, sobretudo as calamidades ocorridas à sua volta. O nosso épico imortal, em plena época renascentista, interpretando a ingénua crença dos marinheiros lusos, atribui ao santo tutelar os fenómenos atmosféricos que os assolavam nos oceanos, chegando a nomear os relâmpagos como o “fogo de Santelmo” – São Pedro Gonçalves Telmo, o guardador das gentes do mar.
A ignorância, o medo, a impotência perante o desconhecido tomaram conta dos mortais, tolheram-lhes os anseios de desvendar os “segredos da natura”. Esqueceram o mandato do Criador – “ Crescei e dominai a terra que vos dou”  (Génesis, 1, 28) – para apenas submeter-se ao estranho veredicto do Juiz Supremo – “Não toqueis na árvore da ciência, porque no dia em que comerdes do seu fruto, morrereis” (Génesis,2, 17).
Por inércia e comodismo, alimentados por outros tantos aprendizes de feiticeiro e/ou auto-proclamados  mensageiros do divino, o homem acomodou-se à crédula almofada das religiões e deixou-se ficar por aí, remetendo todas as suas referências para a superestrutura de um deus-à-sua-maneira. Até que, mercê do esforço de homens e mulheres, tocados pela intuição genesíaca – “Dominai a Terra” – ultrapassaram a fase transitória do “estádio teleológico” e implantaram no terreno da história a idade áurea do pensamento científico, o “estádio positivo”, em virtude do qual o homem assumiu a condução do seu destino, naquilo que lhe foi dado pelo Criador, penetrando nos caminhos da ciência e assim “dando novos mundos ao mundo”. Abandonou-se o império fatalista dos fantasmas ocultos, subiu-se a pedregosa  montanha da investigação e do saber e, dali, viu desdobrar-se diante dos nossos olhos um horizonte de perspectivas e poderes nunca antes alcançados.
É este a paisagem onde felizmente se movimenta o tempo que nos foi dado viver e que os nossos avós não tiveram a dita de atingir. Sabemos que os valores religiosos não são nem a exclusividade nem a totalidade da condição humana. Parafraseando um axioma do recente património português, diremos que há vida, mais vida para além dos padrões religiosos. Pelo menos, há vivências paralelas que não podem ser engolidas, apagadas ou esmagadas sob o jugo gratuito de epifenómenos episódicos, por mais piedosos que se afigurem, mas que serão sempre acidentais no percurso essencial de um povo.   Há os valores científicos, há as referências históricas, há a  nascença e a identidade de cada pátria, de cada burgo ou região.
Na época que é a nossa, da procura científica da verdade histórica, sobretudo no que concerne às raízes ancestrais que nos definem como cidadãos herdeiros de um passado, seria extrema e paupérrima veleidade ceder às tentações populistas de tempos obscurantistas, sob pena de trairmos a história  e sacrificarmos a verdade no cepo da mais crassa ignorância.
Já lá vão, bem distantes, os defuntos modelos do sincretismo religioso que retardou a marcha da história. Somos adultos. Somos esclarecidos. Longe de nós  a obsessão da falsa fé e do fanatismo islâmico que hoje perseguem o mundo civilizado.

19.Out.19
Martins Júnior

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