segunda-feira, 7 de outubro de 2019

TRADIÇÕES E CONTRADIÇÕES: NA AMAZÓNIA BRASILEIRA E NA ROMA VATICANA


                                       
 Uma Igreja incendiária?... Uma Igreja anti-Bolsonária?... Uma Igreja revolucionária?

Mais que as curriculares e monocórdicas eleições de cada lugar irrompem as denúncias da Igreja do Brasil contra os crimes perpetrados todos os dias na Amazónia. A gravura mostra a reunião magna dos bispos e  leigos católicos brasileiros em Belém do Pará, encontro preparatório do Sínodo que ora decorre em Roma.
As corajosas decisões aí tomadas trazem-me à memória heróis de outrora, como o Padre António Vieira. Perseguido pela Inquisição e proscrito de Portugal por defender a dignidade dos judeus e dos chamados “cristãos-novos”, voltou-se para o Brasil, onde percorreu a vastidão da Amazónia em condições de extrema pobreza e salubridade, pugnando sempre na palavra e na acção pelos direitos dos índios brasileiros e daí sofrendo as arremetidas dos senhores das terras. Há 400 anos!
Na linha de uma tradição que vem de longe, é indesmentível o empenho intemerato da Igreja na luta pela justiça social e pela liberdade política, sobretudo no tremendo período da ditadura militar, o que motivou processos, prisões e martírios de padres e bispos. Recordo o bispo Duarte Calheiros, de Volta Redonda, arredores do Rio de Janeiro. Ao receber-me na sua humilde casa (não era palácio) confidenciou-me que já tivera três processos judiciais movidos pela ditadura. Vi chegar, nesse momento, um padre que acabava de sair da pesada prisão da Praia Grande de Santos, vítima do poder político. Jamais esquecerei a resposta que deu à minha pergunta: “Passei pela cidade e não vi a Sé Catedral da sua diocese. Onde fica?”. Trouxe-me à rua de onde se avistava a cidade – um vasto aglomerado com todas as características de um ambiente fabril – e disse-me: “Vocè, padre madeirense, vê acolá aquela fábrica com cobertura de zinco? Essa é uma das minhas catedrais. E ali, mais abaixo, aquele  quarteirão de grandes armazéns, onde trabalham milhares de operários? É também mais uma, duas, três catedrais da minha diocese”.  Percebi a lição. Isto há 47 anos. Quem me dera voltar a vê-lo, esse autêntico obreiro de um mundo novo. Tal como o bispo nordestino António Fragoso. Tal como o bispo de Goiás, falecido há um ano: simples, dinâmico, sem púrpuras nem cruzes peitorais, quando o cumprimentei ali, no meio dos camponeses. Um pastor que, como diz Francisco Papa, traz consigo o cheiro das ovelhas.
Tantos e muitos outros poderia juntar nesta mesa de memórias. Mais recentemente, Frei Beto e o grande intelectual e sociólogo Leonardo Boff que muitos de nós gostaríamos de vê-lo e ouvi-lo cá na Madeira.
É nesta positiva tradição que assenta a herança de uma Igreja que não tem medo, muito menos a falsa diplomacia, para enfrentar a tacanhez primária, quase tribal, de um Bolsonaro arrasador.
Mas não posso terminar sem chamar à nossa companhia HELDER DA CÂMARA. Ele, sem mais apresentações. Supérfluas. Lembro-me bem – e foi em Olinda e Recife, 7 de Setembro de 1972, dia maior da Independência do Brasil. Foi num palácio, de majestoso estilo colonial. O palácio era a sede-residência do arcebispo Hélder. Mas ele não residia lá. Cedeu todas as instalações aos movimentos diocesanos de acção pastoral, cultural e social. Foi viver para uma humilde casa rasteira, nos arredores do Paço Episcopal.
Mas nesse 7 de Setembro veio festejar o Dia Nacional com uma multidão de crianças, jovens, adultos, gente idosa. Música, dança, confraternização, alegria sertaneja nos logradouros do edifício colonial   O já ancião arcebispo Hélder circulava por entre a multidão, abraçando, beijando, cantando. Chegada a hora, sobe os degraus do recinto, a palavra saída daquele corpo franzino ecoava nas paredes exteriores do palácio, espalhava-se pela rua fora. De tudo quanto disse, recortei com maior incisão estas palavras que, em plena ditadura militar, constituíam matéria provocatória aos poderes públicos: “Eles dizem por aí que eu sou contra o Brasil, que não sou patriota. Mas não. Eu sou patriota. E mais do que eles. Eu amo o meu Brasil. Sou pelo Brasil. Com uma grande diferença: O que eu quero é um Brasil com os brasileiros, pelos brasileiros e para os brasileiros”!
Lapidar, tumultuosa condenação da ditadura!
Eloquente definição do regime democrático!
Aconteceu no Brasil de 1972. Onde é que tal se ouviu da cátedra dos bispos, arcebispos e cardeais deste “Jardim à beira-mar plantado”?
Por isso, tem toda a lógica a interpelação inicial: “Uma Igreja incendiária, anti-bolsonária?!… Uma Igreja revolucionária”?!
E por cá?... Será abusivo  fazer esta proposta: Procurem os antónimos? Veremos.

07.Out.19
Martins Júnior    

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