Uma
Igreja incendiária?... Uma Igreja anti-Bolsonária?... Uma Igreja
revolucionária?
Mais
que as curriculares e monocórdicas eleições de cada lugar irrompem as denúncias
da Igreja do Brasil contra os crimes perpetrados todos os dias na Amazónia. A
gravura mostra a reunião magna dos bispos e
leigos católicos brasileiros em Belém do Pará, encontro preparatório do
Sínodo que ora decorre em Roma.
As
corajosas decisões aí tomadas trazem-me à memória heróis de outrora, como o
Padre António Vieira. Perseguido pela Inquisição e proscrito de Portugal por
defender a dignidade dos judeus e dos chamados “cristãos-novos”, voltou-se para
o Brasil, onde percorreu a vastidão da Amazónia em condições de extrema pobreza
e salubridade, pugnando sempre na palavra e na acção pelos direitos dos índios
brasileiros e daí sofrendo as arremetidas dos senhores das terras. Há 400 anos!
Na
linha de uma tradição que vem de longe, é indesmentível o empenho intemerato da
Igreja na luta pela justiça social e pela liberdade política, sobretudo no
tremendo período da ditadura militar, o que motivou processos, prisões e
martírios de padres e bispos. Recordo o bispo Duarte Calheiros, de Volta
Redonda, arredores do Rio de Janeiro. Ao receber-me na sua humilde casa (não
era palácio) confidenciou-me que já tivera três processos judiciais movidos
pela ditadura. Vi chegar, nesse momento, um padre que acabava de sair da pesada
prisão da Praia Grande de Santos, vítima do poder político. Jamais esquecerei a
resposta que deu à minha pergunta: “Passei pela cidade e não vi a Sé Catedral
da sua diocese. Onde fica?”. Trouxe-me à rua de onde se avistava a cidade – um vasto
aglomerado com todas as características de um ambiente fabril – e disse-me: “Vocè,
padre madeirense, vê acolá aquela fábrica com cobertura de zinco? Essa é uma
das minhas catedrais. E ali, mais abaixo, aquele quarteirão de grandes armazéns, onde trabalham
milhares de operários? É também mais uma, duas, três catedrais da minha diocese”.
Percebi a lição. Isto há 47 anos. Quem
me dera voltar a vê-lo, esse autêntico obreiro de um mundo novo. Tal como o
bispo nordestino António Fragoso. Tal como o bispo de Goiás, falecido há um
ano: simples, dinâmico, sem púrpuras nem cruzes peitorais, quando o
cumprimentei ali, no meio dos camponeses. Um pastor que, como diz Francisco
Papa, traz consigo o cheiro das ovelhas.
Tantos
e muitos outros poderia juntar nesta mesa de memórias. Mais recentemente, Frei
Beto e o grande intelectual e sociólogo Leonardo Boff que muitos de nós gostaríamos
de vê-lo e ouvi-lo cá na Madeira.
É
nesta positiva tradição que assenta a herança de uma Igreja que não tem medo,
muito menos a falsa diplomacia, para enfrentar a tacanhez primária, quase
tribal, de um Bolsonaro arrasador.
Mas
não posso terminar sem chamar à nossa companhia HELDER DA CÂMARA. Ele, sem mais
apresentações. Supérfluas. Lembro-me bem – e foi em Olinda e Recife, 7 de
Setembro de 1972, dia maior da Independência do Brasil. Foi num palácio, de majestoso
estilo colonial. O palácio era a sede-residência do arcebispo Hélder. Mas ele
não residia lá. Cedeu todas as instalações aos movimentos diocesanos de acção
pastoral, cultural e social. Foi viver para uma humilde casa rasteira, nos
arredores do Paço Episcopal.
Mas
nesse 7 de Setembro veio festejar o Dia Nacional com uma multidão de crianças,
jovens, adultos, gente idosa. Música, dança, confraternização, alegria sertaneja
nos logradouros do edifício colonial O já ancião arcebispo Hélder circulava por
entre a multidão, abraçando, beijando, cantando. Chegada a hora, sobe os
degraus do recinto, a palavra saída daquele corpo franzino ecoava nas paredes
exteriores do palácio, espalhava-se pela rua fora. De tudo quanto disse,
recortei com maior incisão estas palavras que, em plena ditadura militar,
constituíam matéria provocatória aos poderes públicos: “Eles dizem por aí que
eu sou contra o Brasil, que não sou patriota. Mas não. Eu sou patriota. E mais
do que eles. Eu amo o meu Brasil. Sou pelo Brasil. Com uma grande diferença: O
que eu quero é um Brasil com os
brasileiros, pelos brasileiros e para os brasileiros”!
Lapidar,
tumultuosa condenação da ditadura!
Eloquente
definição do regime democrático!
Aconteceu
no Brasil de 1972. Onde é que tal se ouviu da cátedra dos bispos, arcebispos e
cardeais deste “Jardim à beira-mar plantado”?
Por
isso, tem toda a lógica a interpelação inicial: “Uma Igreja incendiária,
anti-bolsonária?!… Uma Igreja revolucionária”?!
E
por cá?... Será abusivo fazer esta
proposta: Procurem os antónimos? Veremos.
07.Out.19
Martins Júnior
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