A
toda a hora e a todo o mundo e em todas as épocas deveria repercutir-se o
pré-aviso de Vinícius de Morais – “Você que olha e não vê, Você que reza e não
crê” – em jeito de samba-canção, mas de uma força iluminante que nos faz
despertar daquela letargia sonâmbula a
que tão facilmente nos acomodamos. É o reino do “Deixa passar”, do “Sempre foi
assim” ou academicamente, a invertebrada
era do laissez faire, laissez passer, enfim,
o vírus da indiferença e do imobilismo.
Em todos os domínios, mas particularmente
no âmbito das crenças, o império do imobilismo conservador assenta arraiais e
lança raízes, com a mesma violência do eucalipto que seca tudo à sua volta:
sequestra o pensamento, paralisa os braços e mata o mais leve aceno de
voluntarismo. Daí nascem os dogmas e afiam-se as lanças pontiagudas das ameaças
e condenações contra quem pretenda ver e não apenas olhar. Casos, eles aí andam
quase sem darmos por isso, sendo o mais incisivo o episódio do autor da Teoria
Heliocêntrica, o genial astrónomo Galileu Galilei, julgado em tribunal
eclesiástico com base no dogma bíblico de que o sol andava à roda do planeta
Terra. “Sempre fora assim”!
Não resisto ao impulso interior de repescar
os dois relatos, também colhidos na Bíblia, os quais fizeram parte integrante
das leituras de ontem, domingo, nos rituais litúrgicos. O primeiro: a proibição
terminante de comer carne de porco. (Macabeus,
cap.7) Quem transgredisse este normativo seria condenado por ofensa de
lesa-divindade. O segundo: Se um homem, casado com uma mulher judia, fosse
vítima de morte, o irmão dele era coercivamente obrigado a casar com a viúva,
sua cunhada, portanto. E se este morresse, o irmão seguinte (se o tivesse) assumiria o mesmo mandato. Até ao sétimo
irmão. Sob pena da lei divina! (Lc.cap.7)
Gerações e gerações de hebreus viveram
traumatizadas por imperativos legais, os mais absurdos, insuportáveis à inteligência
humana. Com maior incidência, ainda hoje, gerações e gerações de crentes vivem obcecados,
esmagados sob o peso de fantasmas e ferretes emanados da “Lei de Deus”…
Trago a uma atenção crítica estes
considerandos para relevar distintíssimas excepções ao status quo acomodatício: aqueles e aquelas que têm olhos de ver,
que ousam quebrar o imobilismo cego e sequestrador. Ontem e hoje, na cidade de
Braga, presta-se homenagem a um Homem que marcou a sua época, (1514-1590),
insurgiu-se contra uma instituição estática, (a Igreja do séc.XVI), tendo
ganho, por recompensa, a hostilidade dos seus pares. Era ele Bartolomeu dos
Mártires, arcebispo de Braga e reformador incansável dos usos e costumes da
sociedade de então, ainda marcada pelo obscurantismo medieval, não obstante o
avanço das sucessivas conquistas da era quinhentista. Foi no Concílio de Trento
(1545-1563) que mais se notabilizou através da vigorosa proclamação que ficou
na história: Ecclesia sempre reformanda –
“a Igreja deve estar sempre em reforma, sempre em contínua renovação”.
Bento Domingues, na sua crónica semanal
do Público, define-o bem:
“O
Papa Francisco acabou por descobrir que Bartolomeu dos Mártires tinha vivido,
na sua pessoa e na sua acção, o projecto da reforma da Cúria, do conjunto da
Igreja e o tinha precedido no combate ao vírus do carreirismo eclesiástico”.
Associo-me à memória desse Homem,
eternamente jovem: de ontem, de hoje e de sempre. Associo-me ao entusiasmo do
Papa Francisco na campanha que
promove contra o dogmático e imobilista Sempre foi assim! Associo-me ao pregão de Vinícius de Morais – Você que olha e não vê – e todos os dias
leio o seu pré-aviso escrito no ar que respiro!
11.Nov.19
Martins
Júnior
Que brisa fresca decorre destas fontes de águas límpidas que nos levam, inelutávelmente, a olhar mais longe o que de perto não alcançamos. Obrigado Pe. Martins por nos trazer ao palco da história a essência do olhar e o contributo singular do Santo Bartolomeu dos Mártires.
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