domingo, 16 de fevereiro de 2020

ELOGIO DA AUTONOMIA DO HOMEM


                                                                  

       Quem tal diria?!... No “Livro” da submissão obrigatória e inapelável do Homem à Divindade, irrompem dois luminares de primeira grandeza rasgando o espesso negrume da sentença condenatória que expulsou do mítico Éden os primeiros habitantes terráqueos, Homem/Mulher. Daí em diante, os desterrados herdeiros do Éden passaram a joguetes gratuitos nas mãos do “Velho Jeovah”. Tudo quanto acontecesse –epidemias, guerras, alterações climatéricas, doenças e tragédias – tudo estava escrito nas estrelas: castigo de Deus, ao qual o mísero herdeiro da maçã deveria inelutavelmente sujeitar-se.
         Mas alguém  um dia “roeu a corda”, investigou, analisou e, por fim, concluiu que é o Homem que marca o seu caminho. Sentiu o apelo do Divino em sua carne humana e tão intensamente que pareceu-lhe ter ouvido a voz do Supremo Além a empurrá-lo para transmitir ao mundo estas palavras, a Palavra da Sua própria boca:
         “Se quiseres guardarás o mandamento.
         Ser-lhe fiel depende da tua vontade.
Deus pôs diante de ti o fogo e a água,
Estenderás a tua mão para o que desejares.
Diante do Homem estão a vida e a morte:
O que ele escolher, isso mesmo ser-lhe-á dado”. Ben-Sirá 15, 16-21 (15-20)
         Escrito em forma de poema hebraico, o texto bem merecia um desenvolvimento em glosa épica, porque ele coloca Homem/Mulher na sua real investidura, isto é, a de um ser pensante, livre e dono único das decisões que tomar. Das suas opções – “fogo ou água, vida ou morte” – será ele o responsável directo e já não terá mais que endossar as consequências a uma causa-extrínseca, muito menos a Ser Extra-terrestre, por mais Supremo e Omnipotente que Ele seja. É isto que os Gurus das religiões devem falar aos crentes, responsabilizando-os pelos rumos que os sistemas e regimes desenham para o futuro das sociedades humanas.
         Mas não só para as sociedades. Também para a normal convivialidade entre familiares e afins, para as relações laborais, para os contratos assumidos entre pares ou estranhos, enfim, para a coexistência pacífica a que se dá o topónimo genérico de civismo responsável. Dirijo-me cirurgicamente a um dos comportamentos do foro religioso, felizmente cada vez mais em desuso, designado como confissão auricular individualizada. A este propósito, o sublime Líder e Mestre da verdadeira espiritualidade é peremptório e sem quaisquer peias de forma e de fundo ou conteúdos, quando abertamente responsabiliza o agressor pelos danos causados ao agressor, inclusive e sobretudo no ressarcimento da culpa e do efeito ressocializador da pena, Perante o excerto reproduzido ((Mt. 5, 17-37), não restam dúvidas sobre a a medíocre e fraudulenta pedagogia que certos cultos ainda teimam em deseducar os crentes.
“Se fores apresentar a tua oferta sobre o altar
e ali te recordares que o teu irmão tem alguma coisa contra ti,
deixa lá a tua oferta diante do altar,
vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão
e só depois poderás vir apresentar a tua oferta ao Senhor”. 
         E se José Saramago dizia, com alguma razão, que “ quem ler a Bíblia  corre o risco de perder a Fé”, hoje sábado e amanhã domingo, ele perde toda a razão. Quem acompanhar os textos que em todos os templos se lêem neste fim-de-semana, chegará à conclusão que o “Livro”, desta vez, coloca o Homem/Mulher no pedestal da sua Autonomia originária, aquela que lhe confere a merecida nobreza  e, no limite, o faz empreendedor do Mundo Novo onde temos o direito de habitar.  

         15.Fev,20
         Martins Júnior   


1 comentário:

  1. Excelente reflexão sobre a autonomia individual do ser humano. No entanto, senti-me mais próximo do tema e do seu sal, quando o expões para o seu publico que habitualmente o acompanha, aos domingos, no Chão Sagrada da Ribeira Seca. Eternamente agradecido.

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