sexta-feira, 27 de março de 2020

QUEM PÔS TUDO ÀS AVESSAS NO GRANDE TEATRO DO MUNDO ?


                                                            

     O Dia Mundial do Teatro transporta-me sempre para a monumental obra do dramaturgo espanhol Pedro Calderon de la Barca – “O Grande Teatro do Mundo” – em cuja representação participei nos idos da minha juventude. Aí, desde 1655,  se desenham os tempos e os contratempos da correnteza da história, os meandros e as contradições da sociedade, em síntese, o desconcerto do mundo.
Nem de propósito. Os cenários que há cerca de um mês tomaram conta dos nossos olhos e de todo o nosso psiquismo pouco ou nada desdizem do efeito desconstrutivo, devastador mesmo, que os terramotos e maremotos produzem na paisagem física do planeta. Tudo se alterou: usos e costumes, conceitos, poderes, crenças, expectativas, praxes sociais da mais elementar urbanidade. Até no linguajar corrente, na semântica que rege a comunicação inter-pessoal. Nada é igual, “tudo é incerto e derradeiro, tudo é disperso, nada é inteiro”, poderia dizer Fernando Pessoa deste sobressalto bissexto e caótico. A começar pelo “brasão” identitário do protagonista: Que beleza harmónica a deste desconhecido personagem em cena, Sua Intocável Majestade “COVID”. A quem hei-de compará-lo? Ele traz à tona de água a graciosidade dos corais que vestem os fundos marinhos. Ele é flor, é cor, é simetria, talvez poesia cromática ou, melhor, coroa rubra, corona, a engrinaldar a fronte de princesa. Rotundo logro! Quem diria o temerário assassino que ali mora!
Apareça por aí um dramaturgo, da estatura de um Calderon de la Barca, para levar à cena o percurso deste anjo exterminador, o de um novo apocalipse. Irrompe, ninguém o vê, das muralhas da Grande China,  atravessa mares, continentes, ilhas.
Na Praça Maior do Planeta, onde a multidão colossal festeja o Dia Pátrio, o Início de Ano Novo, ou o Dia de Acção de Graças, ele ergue a invisível espada flamejante e grita com um clamor das profundezas dos infernos: “Desapareçam, Fujam, Escondam-se cada qual no seu casebre, senão mato-vos no fio desta espada”.
Pelo caminho, aperta os gonzos de portas e portais, expulsa clientes, transeuntes, gente anónima que corre espavorida rua acima, rua abaixo.
A um canto do jardim, dois namorados, “Amas-me?”, ela pergunta; e o jovem vai  abraçá-la. Logo o exterminador empunha a espada: “Nem lhe toques, separem-se antes que vos mate. Doravante, a maior prova de amor é esta: “Afasta-te de mim”!
Os operários, de passo apressado,  dirigem-se à oficina e repentinamente lhes surge o carrasco invisível: “Para trás, parem já”. Mas “parar é morrer”- respondem os operários. “Não, não, eu mudei a vossa lei, atalha o fantasma. Agora, parar é viver”.
Mais adiante, um poeta, escritor de raça, canta a sua mágoa romântica: ”A minha prisão é um reino”. E o mostrengo   cego e surdo: “Não, agora este teu reino é que é uma prisão. Estás preso, tu e os teus espectadores. O mundo todo está preso”.          
Mas, no meio da escuridão, alguém disse “Não”! A revolta espalhou-se como um rastilho incandescente e ouviu-se do outro lado do oceano; ”Gente oprimida pelo medo e pelo vírus, uni-vos. Vamos ao Todo Poderoso”. A multidão formou um rio, um tsunami, rasgou montanhas, carreiros, avenidas, empunhou pendões e estandartes “Viva o Senhor, abençoa o teu povo, Senhor,  destrói o COVID, já vamos à tua casa rezar, rezar, rezar”! Mas, oh desilusão das desilusões… Antes que lá chegassem, já o monstro invisível fechara as portas, abrira os braços gigantes e erguendo a espada de ferro bradou-lhes: “Aqui não entra ninguém, ide embora, ficai em casa. Em verdade, em verdade vos digo: Tendes fé em Deus?...então separai-vos já, o vosso Deus mandou-me avisar-vos que Ele vos espera em vossa casa”. Ainda a multidão, a mando de alguém, projectou rumar a Roma. Mas a notícia que Pedro e o seu Representante tinham também encerrado as portas do Vaticano, dissuadiu os revoltosos peregrinos que, um a um, foram destroçando cada qual  ao seu país, cada qual  ao refúgio da sua habitação.
Ainda não satisfeito com a submissão das massas, Sua Majestade COVID voou por sobre os espaços, inspeccionou cidades e aldeias, injectou letal veneno na pele dos restantes prevaricadores que ocupavam as ruas e, com um misto de tristeza mas também de orgulho consumado, viu o céu das capitais todo envolto em volutas de fumo negro. Mais orgulhoso ficou por saber que esse era o castigo infligido a todos quantos, irresponsáveis refractários, persistiram na insubmissão: eles eram velhos e novos, pobres e ricos, reis, governantes, milionários. E mais feliz com isso ficou.
Cumprida a missão destruidora, Sua Majestade, o Exterminador Invisível, viu as ruas desertas, os estádios vazios, as praças despidas. O planeta afigurou-se-lhe um fantasma caído e vencido, sem coração, esquálido, de olhos mortiços mas fazendo um último esforço para abri-los, como quem sente e espera por um novo dia.
Em fim de cena, o Enigmático Anjo do novo Apocalipse ouviu de longe uma voz profética,  tão impressiva e distinta que o fez recobrar ânimo e vida: “Sobre os escombros que tu vês, contra este mundo que puseste todo do avesso, eu farei um novo céu e uma nova terra”!
                        (FECHA O PANO)
27.Mar.20
Martins Júnior
   


1 comentário:

  1. Magistral, amigo Padre Martins. Soubera eu escrever tão brilhante peça. Mas, melhor ainda, soubera o mundo com todos os homens de todas as raças, cores, condições sociais, políticas ou religiosas aprender e não subestimar este novo Apocalipse. Um abraço e Deus nos valha.

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