O
Dia Mundial do Teatro transporta-me sempre para a monumental obra do dramaturgo
espanhol Pedro Calderon de la Barca – “O Grande Teatro do Mundo” – em cuja representação
participei nos idos da minha juventude. Aí, desde 1655, se desenham os tempos e os contratempos da
correnteza da história, os meandros e as contradições da sociedade, em síntese,
o desconcerto do mundo.
Nem
de propósito. Os cenários que há cerca de um mês tomaram conta dos nossos olhos
e de todo o nosso psiquismo pouco ou nada desdizem do efeito desconstrutivo,
devastador mesmo, que os terramotos e maremotos produzem na paisagem física do
planeta. Tudo se alterou: usos e costumes, conceitos, poderes, crenças,
expectativas, praxes sociais da mais elementar urbanidade. Até no linguajar
corrente, na semântica que rege a comunicação inter-pessoal. Nada é igual,
“tudo é incerto e derradeiro, tudo é disperso, nada é inteiro”, poderia dizer
Fernando Pessoa deste sobressalto bissexto e caótico. A começar pelo “brasão”
identitário do protagonista: Que beleza harmónica a deste desconhecido
personagem em cena, Sua Intocável Majestade “COVID”. A quem hei-de compará-lo?
Ele traz à tona de água a graciosidade dos corais que vestem os fundos marinhos.
Ele é flor, é cor, é simetria, talvez poesia cromática ou, melhor, coroa rubra,
corona, a engrinaldar a fronte de
princesa. Rotundo logro! Quem diria o temerário assassino que ali mora!
Apareça
por aí um dramaturgo, da estatura de um Calderon de la Barca, para levar à cena
o percurso deste anjo exterminador, o de um novo apocalipse. Irrompe, ninguém o
vê, das muralhas da Grande China, atravessa
mares, continentes, ilhas.
Na
Praça Maior do Planeta, onde a multidão colossal festeja o Dia Pátrio, o Início
de Ano Novo, ou o Dia de Acção de Graças, ele ergue a invisível espada
flamejante e grita com um clamor das profundezas dos infernos: “Desapareçam,
Fujam, Escondam-se cada qual no seu casebre, senão mato-vos no fio desta espada”.
Pelo
caminho, aperta os gonzos de portas e portais, expulsa clientes, transeuntes,
gente anónima que corre espavorida rua acima, rua abaixo.
A
um canto do jardim, dois namorados, “Amas-me?”, ela pergunta; e o jovem
vai abraçá-la. Logo o exterminador
empunha a espada: “Nem lhe toques, separem-se antes que vos mate. Doravante, a
maior prova de amor é esta: “Afasta-te de mim”!
Os
operários, de passo apressado,
dirigem-se à oficina e repentinamente lhes surge o carrasco invisível: “Para
trás, parem já”. Mas “parar é morrer”- respondem os operários. “Não, não, eu
mudei a vossa lei, atalha o fantasma. Agora, parar é viver”.
Mais
adiante, um poeta, escritor de raça, canta a sua mágoa romântica: ”A minha
prisão é um reino”. E o mostrengo cego e surdo: “Não, agora este teu reino é que
é uma prisão. Estás preso, tu e os teus espectadores. O mundo todo está preso”.
Mas,
no meio da escuridão, alguém disse “Não”! A revolta espalhou-se como um
rastilho incandescente e ouviu-se do outro lado do oceano; ”Gente oprimida pelo
medo e pelo vírus, uni-vos. Vamos ao Todo Poderoso”. A multidão formou um rio,
um tsunami, rasgou montanhas, carreiros, avenidas, empunhou pendões e
estandartes “Viva o Senhor, abençoa o teu povo, Senhor, destrói o COVID, já vamos à tua casa rezar,
rezar, rezar”! Mas, oh desilusão das desilusões… Antes que lá chegassem, já o
monstro invisível fechara as portas, abrira os braços gigantes e erguendo a
espada de ferro bradou-lhes: “Aqui não entra ninguém, ide embora, ficai em
casa. Em verdade, em verdade vos digo: Tendes fé em Deus?...então separai-vos
já, o vosso Deus mandou-me avisar-vos que Ele vos espera em vossa casa”. Ainda a
multidão, a mando de alguém, projectou rumar a Roma. Mas a notícia que Pedro e
o seu Representante tinham também encerrado as portas do Vaticano, dissuadiu os
revoltosos peregrinos que, um a um, foram destroçando cada qual ao seu país, cada qual ao refúgio da sua habitação.
Ainda
não satisfeito com a submissão das massas, Sua Majestade COVID voou por sobre
os espaços, inspeccionou cidades e aldeias, injectou letal veneno na pele dos restantes
prevaricadores que ocupavam as ruas e, com um misto de tristeza mas também de
orgulho consumado, viu o céu das capitais todo envolto em volutas de fumo
negro. Mais orgulhoso ficou por saber que esse era o castigo infligido a todos
quantos, irresponsáveis refractários, persistiram na insubmissão: eles eram
velhos e novos, pobres e ricos, reis, governantes, milionários. E mais feliz
com isso ficou.
Cumprida
a missão destruidora, Sua Majestade, o Exterminador Invisível, viu as ruas desertas,
os estádios vazios, as praças despidas. O planeta afigurou-se-lhe um fantasma caído
e vencido, sem coração, esquálido, de olhos mortiços mas fazendo um último esforço
para abri-los, como quem sente e espera por um novo dia.
Em
fim de cena, o Enigmático Anjo do novo Apocalipse ouviu de longe uma voz
profética, tão impressiva e distinta que
o fez recobrar ânimo e vida: “Sobre os escombros que tu vês, contra este mundo
que puseste todo do avesso, eu farei um novo céu e uma nova terra”!
(FECHA
O PANO)
27.Mar.20
Martins Júnior
Magistral, amigo Padre Martins. Soubera eu escrever tão brilhante peça. Mas, melhor ainda, soubera o mundo com todos os homens de todas as raças, cores, condições sociais, políticas ou religiosas aprender e não subestimar este novo Apocalipse. Um abraço e Deus nos valha.
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