sexta-feira, 29 de maio de 2020

VAMOS À FESTA DO ESPÍRITO CONTRA A LUTA DE OUTRO “SPIRITUS”!... VIAGEM AO PORTO SANTO


                                                     

É na Semana do Espírito que continuamos a viajar, entre 24 e 31 de maio. Mas tão estranha esta viagem, comparada com a de outros tempos e até mesmo com a do ano transacto! Antes, era a azáfama inquietante, saltitante, dentro e fora dos templos: as bandeiras, os arcos floridos nos adros, nos caminhos. E nas casas, as receitas dos avós, os manjares para receber fidalgamente  os mordomos, as saloias, a orquestra folclórica, enfim,  o cortejo “imperial”, como ficou demonstrado na anterior narrativa. As usanças de Alenquer trouxeram-nas para a ilha os primeiros povoadores, entre os quais Zargo em Câmara de Lobos e Esmeraldo em Ponta do Sol.
E o mais curioso é o paradoxo por todos aceite, quer na Madeira, Açores e Portugal Continental:  Na Festa do Espírito  o protagonista era o corpo dela, isto é, o barroco, o ruidoso, o espectacular, a apoteose da folia popular e o arrecadar do “vil metal”  nos sacos vermelhos, da cor das bandeiras do “Divino”.
Assinalável, pela sua original simbólica, foi a vivência que tive na ilha do Porto Santo, com a visita domiciliária das “insígnias”. O imponente cortejo saía   do templo seiscentista do Espírito Santo, orago do lugar. Dezoito homens compunham o “Pelotão do Divino”. À frente, pendão e bandeira, os pajens segurando a coroa numa salva de prata, as saloias  precediam o Imperador  que  ostentava, ufano e altaneiro, a vara da liderança dos mordomos. A formatura fechava com o vigário, ladeado pelo  Marechal e seu Ajudante. Surpreendido pela designação da mais alta patente militar para um homem rural quase octogenário, perguntei-lhe o porquê de tal promoção, ao que ele prontamente e garbosamente respondeu: “Sabe, sou eu que mando marchar toda essa gente que vai à nossa frente”. Caprichosa e deliciosa explicação!
Em cada casa, a visita começava com o “Hino ao Divino” que compus expressamente para o efeito. Trocavam-se abraços familiares e saudações vicinais. Um dos mordomos recolhia a oferta, enquanto a dona da casa metia nos cestinhos das saloias uma mancheia de ovos. No final, após um brinde frugal, erguia-se a voz do Marechal: “Pessoal, Ála”! Devo confessar, passados já 57 anos, o que mais vincadamente me ficou no subconsciente e que ainda hoje ecoa dentro de mim: o coro daqueles homens, a sua voz timbrada e solene, apanágio das vozes portossantenses,  entoando o Hino dentro de cada habitação, que comovia até ao íntimo, prolongando-se depois pelos campos de trigo, à beira dos caminhos, com o acompanhamento ritmado  da rabeca, rajões e violas de arame.
Manda a verdade dizer que, durante os dois anos consecutivos em que cumpri a tradição daquela ilha, o “Espírito Santo” concitava o júbilo imanente dos corações, a saudade dos ausentes, o bulício das crianças, enfim, uma variante de catarse psico-sociológica que contagiava a todos, sem os excessos de outras regiões, como os citados  no blog último.  
 E tudo o vento levou… Foi preciso chegar ao Ano da Graça de 2020 para que um outro spiritus (vento) invisível destronasse e afastasse da torre imperial  o Grande Espírito que fazia rodar corpos e almas nas ondas da sua bandeira. Foi o estranho e intocável CoVid que apeou o invisível Div’Espírito do palco da  espectacularidade cultual. E não haverá por aí e por aqui quem, nesta  impiedosa quarentena devocional, tenha a coragem de apostrofar o spiritus letal  para descobrir a essência do Espírito Imortal ?
Eis a questão geradora de mil questões: Quem é e Como é esse Espírito?... Tem Castelo e tem Bandeira?... Qual a cor e o tamanho dela?...
A quantos centímetros Te reduzimos e porquê?...
Onde moras, onde moras?...
Ficarei desperto e vigilante até à madrugada de Domingo – o Dia do Espírito – para aguardá-lo na curva do caminho da Vida e perguntar-lhe como é que O fizemos tão pequeno, tão venável e tão histriónico?!
Perguntar-lhe também onde quer e como quer se faça a Sua Festa?!

29.Mai.20
Martins Júnior

     

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