É
na Semana do Espírito que continuamos a viajar, entre 24 e 31 de maio. Mas tão
estranha esta viagem, comparada com a de outros tempos e até mesmo com a do ano
transacto! Antes, era a azáfama inquietante, saltitante, dentro e fora dos
templos: as bandeiras, os arcos floridos nos adros, nos caminhos. E nas casas,
as receitas dos avós, os manjares para receber fidalgamente os mordomos, as saloias, a orquestra
folclórica, enfim, o cortejo “imperial”,
como ficou demonstrado na anterior narrativa. As usanças de Alenquer
trouxeram-nas para a ilha os primeiros povoadores, entre os quais Zargo em
Câmara de Lobos e Esmeraldo em Ponta do Sol.
E
o mais curioso é o paradoxo por todos aceite, quer na Madeira, Açores e
Portugal Continental: Na Festa do
Espírito o protagonista era o corpo
dela, isto é, o barroco, o ruidoso, o espectacular, a apoteose da folia popular
e o arrecadar do “vil metal” nos sacos
vermelhos, da cor das bandeiras do “Divino”.
Assinalável,
pela sua original simbólica, foi a vivência que tive na ilha do Porto Santo,
com a visita domiciliária das “insígnias”. O imponente cortejo saía do
templo seiscentista do Espírito Santo, orago do lugar. Dezoito homens compunham
o “Pelotão do Divino”. À frente, pendão e bandeira, os pajens segurando a coroa
numa salva de prata, as saloias precediam o Imperador que ostentava, ufano e altaneiro, a vara da
liderança dos mordomos. A formatura fechava com o vigário, ladeado pelo Marechal
e seu Ajudante. Surpreendido pela designação da mais alta patente militar
para um homem rural quase octogenário, perguntei-lhe o porquê de tal promoção,
ao que ele prontamente e garbosamente respondeu: “Sabe, sou eu que mando
marchar toda essa gente que vai à nossa frente”. Caprichosa e deliciosa
explicação!
Em
cada casa, a visita começava com o “Hino ao Divino” que compus expressamente para
o efeito. Trocavam-se abraços familiares e saudações vicinais. Um dos mordomos
recolhia a oferta, enquanto a dona da casa metia nos cestinhos das saloias uma
mancheia de ovos. No final, após um brinde frugal, erguia-se a voz do Marechal: “Pessoal, Ála”! Devo
confessar, passados já 57 anos, o que mais vincadamente me ficou no subconsciente
e que ainda hoje ecoa dentro de mim: o coro daqueles homens, a sua voz timbrada
e solene, apanágio das vozes portossantenses, entoando o Hino dentro de cada habitação, que
comovia até ao íntimo, prolongando-se depois pelos campos de trigo, à beira dos
caminhos, com o acompanhamento ritmado da rabeca, rajões e violas de arame.
Manda
a verdade dizer que, durante os dois anos consecutivos em que cumpri a tradição
daquela ilha, o “Espírito Santo” concitava o júbilo imanente dos corações, a
saudade dos ausentes, o bulício das crianças, enfim, uma variante de catarse
psico-sociológica que contagiava a todos, sem os excessos de outras regiões, como
os citados no blog último.
E tudo o vento
levou… Foi preciso chegar ao Ano da Graça de 2020 para que um outro spiritus (vento) invisível destronasse e
afastasse da torre imperial o Grande
Espírito que fazia rodar corpos e almas nas ondas da sua bandeira. Foi o
estranho e intocável CoVid que apeou o invisível Div’Espírito do palco da espectacularidade cultual. E não haverá por
aí e por aqui quem, nesta impiedosa quarentena
devocional, tenha a coragem de apostrofar o spiritus
letal para descobrir a essência do
Espírito Imortal ?
Eis
a questão geradora de mil questões: Quem é e Como é esse Espírito?... Tem
Castelo e tem Bandeira?... Qual a cor e o tamanho dela?...
A
quantos centímetros Te reduzimos e porquê?...
Onde
moras, onde moras?...
Ficarei
desperto e vigilante até à madrugada de Domingo – o Dia do Espírito – para aguardá-lo
na curva do caminho da Vida e perguntar-lhe como é que O fizemos tão pequeno,
tão venável e tão histriónico?!
Perguntar-lhe
também onde quer e como quer se faça a Sua Festa?!
29.Mai.20
Martins Júnior
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