Nunca
o abstracto coabitou tão perto com o concreto. Nunca as sombras conviveram tão
embrulhadas na luz. E nunca a matéria esteve tão consubstanciada com o
espírito. De tal forma que não chega a saber-se onde acabam as sombras, o corpo
concreto, a matéria e onde começam a luz, o abstracto, o espírito.
Refiro-me
à osmose quase perfeita entre os dois opostos ou, mais explicitamente, entre o
sagrado e o profano, entre o divino e o humano. Isto verifica-se, precisamente,
hoje, Festa do Espírito Santo, de cujos
conteúdos fiz eco durante todos os “dias ímpares” da semana transacta. Vou terminar, também
hoje, aquilo que não tem fim - ou não deveria tê-lo.
O
interesse da questão reside nos diversos figurinos com que a tradição crente
vestiu um Ser supra, infinitamente supra-terrestre: O Espírito de Deus! Perante
os episódios descritos nos três últimos blog’s,
fica evidente uma estranha mestiçagem entre o infinitamente incorpóreo e o
mais supinamente rasteiro, a roçar e ultrapassar o ridículo. No correr de
muitos séculos, a devoção ao Espírito esteve empacotada, senão mesmo
desbragada, em manifestações completamente contrastantes com o seu original, a
sua essência. Eles eram folias e abusos, eles eram encenações grotescas
simulando megalomanias imperiais à mistura com solenes pendões vermelhos e, sem
faltar, camufladas extorsões pias do ‘vil metal’.
Trata-se
de um sério study case (para usar a
designação corrente) o qual, não cabendo nos estreitos limites deste escrito,
tentarei sintetizar, após prolongada reflexão sobre o caso, sendo certo que
tudo quanto se possa explanar cai sempre sob a alçada da vulgarmente designada “religiosidade
popular”.
Como
síntese que é, monitorizarei em quatro alíneas genéricas a interpretação ou
anatomia deste composto híbrido da devoção ao “Divino Espírito” e da sua arreigada
implantação em Portugal, sobretudo na Madeira e Porto Santo. Ei-las, como
quatro estandartes que mostram e, paradoxalmente, escondem o “Divino”:
1º
- A condição de dependência/contingência inata ao ser humano, em virtude da qual
obriga-o, como náufrago abandonado em ilha deserta, a voltar-se para o Alto, a
pedir socorro. E quanto mais abstracta for a ‘entidade seguradora’, maior o
clímax de confiança por parte do impetrante. Embora transversal a todos os
patronos e a todas aras, a petição endereçada ao Espírito invisível, intocável e soberano ganha
uma extensão maior e mais duradoura.
2º
- A fome e sede de alegria, como lenitivo ou catarse natural ao caminhante nos
desertos da vida, mormente ao cristão moldado nos estigmas do seu Crucificado. É
preciso inventar oásis de conforto e praças da canção adequadas à mentalidade de
cada aglomerado populacional. Cada qual cria o seu estilo.
3º
- A cumplicidade do Sagrado. A diversão (sempre os resquícios de uma vã
pedagogia cristã) impele o crente para um vago sentimento de culpabilidade, se
se aproximar das (muitas vezes, inexistentes) linhas vermelhas. Aí, se o mesmo
crente descobrir (ou fabricar) um suposto “habeas corpus”, isto é, uma sensação de que a Entidade Sagrada
está de acordo e também se diverte com
os machetes, os bailado, as folias e até perdoa os excessos “em louvor do Divino” – então aí
todas as inibições somem-se como por
encanto e as demasias abrem os cordões à bolsa. Define-o bem Miguel Real: “O
espectáculo barroco, exuberante, copioso, ludicamente excessivo, torna-se
assim, a única categoria estética capaz de mostrar o deus escondido, de
intermediar o deus silencioso. Redunda no excesso e na desproporção. Manifesta o drama
do desequilíbrio da razão”.
4º
- A nostalgia do “Quinto Império”. É este um dos aspectos mais secretos, porque
imperceptíveis à multidão, mas (segundo os investigadores) sedimentados no inconsciente
colectivo do povo português.
Voltando
ao figurino cultual do Espírito Santo, notamos toda uma nomenclatura e uma
cenografia tendencialmente monárquicas: o Imperador, os Reis, as Damas da
Corte, os Pajens, o Marechal, a Coroa, as Bandeiras e os Pendões. Não esqueçamos
que a saga devocional ao Espírito foi iniciativa da Rainha Santa Isabel e seu
marido D. Dinis, desde Alenquer. Outrossim, na Madeira, foram Zargo e o fidalgo Esmeraldo os construtores
dos primeiros templos dedicados ao Espírito Santo. Leiamos agora, o nosso
filósofo Agostinho da Silva: “O messianismo, filosofia de exilados e infelizes,
mas também de forte afirmação espiritual, tem-se revelado uma das persistentes expressões do espírito português, desde Os Lusíadas, assumindo várias formas,
uma das quais foi o sebastianismo propriamente dito”. E Miguel Real acrescenta:
“Agostinho da Silva defende que a introdução do culto do Espírito Santo é o
símbolo do futuro reinado do amor universal, que rapidamente se generalizaria
entre as populações como celebração de festa do futuro através da entronização
do menino como Imperador do Mundo, o bodo geral e a abertura dos portões das prisões. Entende-se agora muito
bem que o Português tenha tido uma paixão, não pelo previsível Pai ou
previsível Filho, mas por aquela coisa, aquela pomba errante, que vai para onde
quer, como o português”…
Já
vai longa esta síntese. Talvez possa desenvolvê-la noutra reflexão, porque a
questão não é tão romântica ou superficial como se possa imaginar. Génios do
pensamento luso, como o Padre António Vieira e Fernando Pessoa revelaram-se
acérrimos defensores de Portugal à cabeça do Quinto Império. Messianismos hoje
completamente fora do léxico político internacional, mas que deixaram
arquétipos no subconsciente latente de um povo, mais a mais injectado por
inconfessados interesses de regimes ditatoriais, não muito distantes de nós.
É
nesta órbita que se situa toda a teatralidade esfuziante do chamado “Espírito
Santo” na Madeira e Porto Santo. No entanto, dando de barato todo o folclore, superstições,
foguetórios, danças e andanças “em louvor do Divino” e consideradas as quatro alíneas
descritas, é legítimo e até imperativo apelar ao discernimento e à sã pedagogia
teológica para separar o trigo do joio e tratar com dignidade os rituais que a
merecem.
A
este propósito, cito dois fiéis intérpretes da ortodoxia em Portugal, o Padre
Joaquim Alves Correia e Frei Bento Domingues, ambos unânimes nesta judiciosa
observação: “A religião dos portugueses não é só uma compensação imaginária de
uma frustração, como alguns pretendem. Temos também uma imaginária compensação
da falta de religião”.
31.Mai-01.Jun-20
Martins Júnior
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