sexta-feira, 19 de junho de 2020

ERA O MAIOR QUE ESTAVA LÁ E NINGUÉM O VIU!


                                                                

         Fui ali para encontrá-lo. Porque, sabendo-se embora rejeitado pelos Sumos Hierarcas da Ilha, ele marcava sempre o seu lugar. Era o Dia Diocesano do Clero, a cujo tronco genealógico pertenceu desde a infância, por direito inalienável, mesmo que enjeitado e indesejado, “como um filho abortivo”. Mandei os olhos meus a procurá-lo por entre aquela fria estepe de túnicas pálidas, anémicas como o chão sepulcral da velha catedral. Depressa me apercebi que o homem, fisicamente do tamanho de Zaqueu, ainda que ali estivesse, ninguém daria por ele.
Fechei os olhos e abri as persianas da memória e da saudade. Logo, logo  o encontrei. E quanto mais o via, mais ele sobressaia, pegureiro infante e cavaleiro andante,  no meio daquele rebanho de alvas inamovíveis como estátuas jacentes.
Era o PADRE TAVARES! Não de estola em filigrana de ouro fútil nem simulacro extático de sacro museu, mas arcanjo libertador dos hebreus, quando marcava a sangue de cordeiro os umbrais das portas do Povo de Deus.  Ele estava ali, desde sempre, “Martelo de Deus”, na linha de Atanásio de Alexandria contra a prepotência ariana e de  Ambrósio de Milão, combatente imbatível perante os abusos eclesiásticos e os falsários devocionismos do Imperador Teodósio. Trago hoje excertos do Legado que nos deixou em documentos escritos e endereçados aos bispos sobre a vivência cristã na diocese, sem que nunca obtivesse resposta. Ele sofria intimamente com os rumos desse percurso sinuoso e contraditório da diocese, a começar pelas altas instâncias. Em similitude com os dois blog’s anteriores, transcrevo algumas passagens exemplares dessa constante preocupação.
Ficou famosa a proclamação do princípio fundamentante da autoridade na Igreja, em carta aberta dirigida ao bispo Teodoro Faria, datada de 1985 que, provavelmente, será transcrita no próximo dia ímpar, domingo. Eis o princípio: “Para que a Igreja esteja com o bispo é preciso que o bispo esteja com Cristo”. E a propósito da megalómana efeméride dos  “500 anos da criação da Diocese do Funchal” – a que apelidou, com um humor inteligente e denunciador, “Os funcionários de Deus em festa” – escreveu: “A grandeza territorial da Diocese do Funchal, desde o Oriente  até ao Brasil abrangendo a África,  embora com um poder reduzido e não funcional, mereceu uma festa com três anos de solenes celebrações. Um enorme  mas raquítico poder, um balão que depressa se esvaziou, mas encheu o peito das autoridades. E a estonteante vaidade de mandar e saborear os seus gostos produziu estas celebrações de arromba, para expor as medalhas do passado”. Mais adiante analisa e identifica: “Apesar do Vaticano declarar e propor como doutrina Os Direitos da Pessoa Humana, a Liberdade de Consciência e a Liberdade Religiosa, a Igreja como constituição ainda continua tendo um corpo administrativo com imensos vícios administrativos absolutistas. Ainda é hoje uma Igreja do Império”.
                                                

Depois de enunciar o historial das alianças escandalosas entre o poder político e o religioso na Madeira – “ o que levou vários sacerdotes a sair da Ilha pela grande pressão político-religiosa e outros resignaram-se e silenciaram os seus sonhos”- Padre Tavares escreve: “D. Francisco Santana morreu. Os dois bispos  posteriores, ao receberem o encargo da diocese, preferiram mantê-lo igual, num apoio de serviço à maternidade político-religiosa da chamada “Madeira Nova”… Jesus de Nazaré não é um bem escriturado na Igreja Poder, segundo as regras do Império. É um testemunho vivo da Mensagem, colocado na boca dos apóstolos para ser anunciado às gerações vivas de cada época (Marcos. 16,15). Jesus é Vida Viva, acompanhando como luz promotora a Humanidade viva que caminha. As gerações novas não estão forçadas a serem cópias das gerações anteriores”.
Que frescura e juventude num sábio de 85 anos!
Mais directamente, incisivo e realista: “A diocese do Funchal continua a torcer pela arte de castigar. E dentro das igrejas, em ambiente de sorrisos e festa, a autoridade exerce a missão de convidar a todos, pelos actos de fé, a receber a bênção da obediência, a ‘virtuosa mina’ da riqueza nos longos tempos da escravatura”. Ainda: ”Presentemente estamos vivendo um tempo cheio de desastres sociais em crescimento, o que é muito preocupante. Significa sermos parte de uma sociedade em desequilíbrio. E a diocese continua abençoando os seus promotores, contentando-se com a solidariedade dos fiéis num apoio em migalhas aos pobres!... Não deveria ir além das esmolas e serviços litúrgicos?”.
Escrito em 2014! Voz de comando evangélico que nos põe em sentido!
Forçoso é ficar por aqui, pese embora a profundidade do saber, do sentir e do viver que, pela mão do Padre Tavares, vos tinha para contar. Uma conclusão permanece intacta e firme: Padre Tavares é um pensador, um exímio escritor humanista e cristão de primeira água. Procuramos por fora o que temos cá dentro: “Lições de Abismo”, diria Gustavo Corção, “Pensées” de Blaise Pascal, “Confissões” de Santo Agostinho e até “Encíclicas” papais. Tudo isso está no mundo, no nosso mundo, pelo talento de quem hoje procurei crescendo vivo nas ogivas manuelinas da nossa catedral – o PADRE TAVARES.
Por isso, vou caminhando até à tua campa rasa, querido Amigo e Mestre, beijar as tuas mãos frias, essas mãos que a terra vai comendo… mas que continuam quentes e férteis nos escritos que nos deixaste!
19.Jun.20
Martins Júnior
    

2 comentários:

  1. Que caminhos teriam levado as civilizações e os povos do mundo sem estas raras sementes de frutos de abundância? É de facto uma Paz indescritível ler, mesmo marginalmente, o pensamento destes e de tantos outros vultos de Escolas diversas, que nos vão deixando acervos vivos de alimento inesgotável, fundamentais à tolerância e às liberdades de serviço à dignidade dos mais oprimidos e dos mais frágeis do nosso mundo. Lê-los é uma obrigação de cidadania e de liberdade.

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  2. Tanta sabedoria, tanta inteligência para transmitir com tamanho acerto o pensamento de um e o relato de outro. Deus, dá saúde e vida ao meu amigo Sr. Padre Martins para que eu possa ter a felicidade de ler e "beber" os seus sábios escritos. Sem dúvida que o Severino é feliz quando fala em " raras sementes de frutos de abundância "

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