Fui ali para encontrá-lo. Porque,
sabendo-se embora rejeitado pelos Sumos Hierarcas da Ilha, ele marcava sempre o
seu lugar. Era o Dia Diocesano do Clero, a cujo tronco genealógico pertenceu
desde a infância, por direito inalienável, mesmo que enjeitado e indesejado, “como
um filho abortivo”. Mandei os olhos meus a procurá-lo por entre aquela fria
estepe de túnicas pálidas, anémicas como o chão sepulcral da velha catedral.
Depressa me apercebi que o homem, fisicamente do tamanho de Zaqueu, ainda que
ali estivesse, ninguém daria por ele.
Fechei
os olhos e abri as persianas da memória e da saudade. Logo, logo o encontrei. E quanto mais o via, mais ele
sobressaia, pegureiro infante e cavaleiro andante, no meio daquele rebanho de alvas inamovíveis
como estátuas jacentes.
Era
o PADRE TAVARES! Não de estola em filigrana de ouro fútil nem simulacro extático
de sacro museu, mas arcanjo libertador dos hebreus, quando marcava a sangue de
cordeiro os umbrais das portas do Povo de Deus. Ele estava ali, desde sempre, “Martelo de Deus”,
na linha de Atanásio de Alexandria contra a prepotência ariana e de Ambrósio de Milão, combatente imbatível perante
os abusos eclesiásticos e os falsários devocionismos do Imperador Teodósio.
Trago hoje excertos do Legado que nos deixou em documentos escritos e
endereçados aos bispos sobre a vivência cristã na diocese, sem que nunca obtivesse
resposta. Ele sofria intimamente com os rumos desse percurso sinuoso e
contraditório da diocese, a começar pelas altas instâncias. Em similitude com
os dois blog’s anteriores, transcrevo
algumas passagens exemplares dessa constante preocupação.
Ficou
famosa a proclamação do princípio fundamentante da autoridade na Igreja, em
carta aberta dirigida ao bispo Teodoro Faria, datada de 1985 que,
provavelmente, será transcrita no próximo dia ímpar, domingo. Eis o princípio: “Para que a Igreja esteja com o bispo é
preciso que o bispo esteja com Cristo”. E a propósito da megalómana
efeméride dos “500 anos da criação da
Diocese do Funchal” – a que apelidou, com um humor inteligente e denunciador, “Os funcionários de Deus em festa” – escreveu:
“A grandeza territorial da Diocese do
Funchal, desde o Oriente até ao Brasil
abrangendo a África, embora com um poder
reduzido e não funcional, mereceu uma festa com três anos de solenes celebrações.
Um enorme mas raquítico poder, um balão
que depressa se esvaziou, mas encheu o peito das autoridades. E a estonteante
vaidade de mandar e saborear os seus gostos produziu estas celebrações de
arromba, para expor as medalhas do passado”. Mais adiante analisa e
identifica: “Apesar do Vaticano declarar
e propor como doutrina Os Direitos da Pessoa Humana, a Liberdade de Consciência
e a Liberdade Religiosa, a Igreja como constituição ainda continua tendo um corpo
administrativo com imensos vícios administrativos absolutistas. Ainda é hoje
uma Igreja do Império”.
Depois
de enunciar o historial das alianças escandalosas entre o poder político e o
religioso na Madeira – “ o que levou
vários sacerdotes a sair da Ilha pela grande pressão político-religiosa e
outros resignaram-se e silenciaram os seus sonhos”- Padre Tavares escreve: “D. Francisco Santana morreu. Os dois
bispos posteriores, ao receberem o
encargo da diocese, preferiram mantê-lo igual, num apoio de serviço à
maternidade político-religiosa da chamada “Madeira Nova”… Jesus de Nazaré não é
um bem escriturado na Igreja Poder, segundo as regras do Império. É um
testemunho vivo da Mensagem, colocado na boca dos apóstolos para ser anunciado
às gerações vivas de cada época (Marcos. 16,15). Jesus é Vida Viva,
acompanhando como luz promotora a Humanidade viva que caminha. As gerações
novas não estão forçadas a serem cópias das gerações anteriores”.
Que
frescura e juventude num sábio de 85 anos!
Mais
directamente, incisivo e realista: “A
diocese do Funchal continua a torcer pela arte de castigar. E dentro das
igrejas, em ambiente de sorrisos e festa, a autoridade exerce a missão de
convidar a todos, pelos actos de fé, a receber a bênção da obediência, a ‘virtuosa
mina’ da riqueza nos longos tempos da escravatura”. Ainda: ”Presentemente estamos vivendo um tempo
cheio de desastres sociais em crescimento, o que é muito preocupante. Significa
sermos parte de uma sociedade em desequilíbrio. E a diocese continua abençoando
os seus promotores, contentando-se com a solidariedade dos fiéis num apoio em
migalhas aos pobres!... Não deveria ir além das esmolas e serviços litúrgicos?”.
Escrito
em 2014! Voz de comando evangélico que nos põe em sentido!
Forçoso
é ficar por aqui, pese embora a profundidade do saber, do sentir e do viver que,
pela mão do Padre Tavares, vos tinha para contar. Uma conclusão permanece intacta
e firme: Padre Tavares é um pensador, um exímio escritor humanista e cristão de
primeira água. Procuramos por fora o que temos cá dentro: “Lições de Abismo”,
diria Gustavo Corção, “Pensées” de Blaise Pascal, “Confissões” de Santo
Agostinho e até “Encíclicas” papais. Tudo isso está no mundo, no nosso mundo,
pelo talento de quem hoje procurei crescendo vivo nas ogivas manuelinas da
nossa catedral – o PADRE TAVARES.
Por
isso, vou caminhando até à tua campa rasa, querido Amigo e Mestre, beijar as
tuas mãos frias, essas mãos que a terra vai comendo… mas que continuam quentes
e férteis nos escritos que nos deixaste!
19.Jun.20
Martins Júnior
Que caminhos teriam levado as civilizações e os povos do mundo sem estas raras sementes de frutos de abundância? É de facto uma Paz indescritível ler, mesmo marginalmente, o pensamento destes e de tantos outros vultos de Escolas diversas, que nos vão deixando acervos vivos de alimento inesgotável, fundamentais à tolerância e às liberdades de serviço à dignidade dos mais oprimidos e dos mais frágeis do nosso mundo. Lê-los é uma obrigação de cidadania e de liberdade.
ResponderEliminarTanta sabedoria, tanta inteligência para transmitir com tamanho acerto o pensamento de um e o relato de outro. Deus, dá saúde e vida ao meu amigo Sr. Padre Martins para que eu possa ter a felicidade de ler e "beber" os seus sábios escritos. Sem dúvida que o Severino é feliz quando fala em " raras sementes de frutos de abundância "
ResponderEliminar