“Arranca o estatuário uma pedra destas
montanhas, tosca, bruta, dura, informe; e depois que desbastou o mais grosso,
toma o maço e o cinzel na mão e começa a formar um homem: primeiro, membro a
membro e, depois, feição por feição, até à mais miúda. Ondeia-lhe os cabelos,
alisa-lhe a testa, rasga-lhe os olhos, afila-lhe o nariz, abre-lhe a boca,
torneia-lhe o pescoço, estende-lhe os braços, espalma-lhe as mãos, divide-lhe
os dedos, lança-lhe os vestidos. Aqui desprega, ali arruga, acolá recama. E
fica um homem perfeito, e talvez um santo que se pode pôr no altar”.
Assim falou, há quatro séculos, o “Imperador da
Língua Portuguesa”. Falou para nós, estatuários inquilinos do século XXI. O eco
do “Príncipe dos Oradores Lusos” bate
hoje em cheio aos tímpanos de cada madeirense e deixa esta mensagem, que tanto
pode ser convite como será uma ordem: “Arranca tu –ilhéu cidadão do mundo –
arranca uma lasca do basalto onde firmas os pés e faz tu próprio a estátua da
Autonomia”.
A cada mão, sua inspiração. A estátua teria tantos
rostos quantas as mãos, quantas as mentes, quantos os amores. Exactamente, tal como
o Amor, a Autonomia veste várias togas, toma suas feições e divaga por
múltiplas derivas. A escultura acabada – a Autonomia - seria o ‘alter ego’ do seu autor.
Confirmar-se-ia o sábio brocardo: “Quidquid
recipitur ad modum recipienies recipitur”, em tradução livre, o conteúdo
toma a forma do seu continente.
Para o ditador tribal, travestido de urbano, a estátua seria o homem das cavernas, tipo
Golias da selva, medalhado, terror de aquém e além-mar. Para o agiota avaro, as
mãos cerradas saídas dos cofres de um qualquer banco mau. O escultor-antiquário
traria um Pithecantropus erectus, cioso do seu passado longevo. O político
astuto ‘contentar-se-ia’ com um polvo mimético de mil tentáculos afogando, como
quem afaga, a ilha toda. O oportunista de secretaria não deixaria por mãos
alheias o seu auto-milhafre de rapina, de olho fisgado na presa incauta, pronto
a engoli-la em cima do mesmo ramo, num repugnante grupo escultórico. O ‘artista’
sardanapalo, devasso inveterado, traçaria o auto-retrato autonómico em um
salomão no império do seu harém. E enquanto o senhorio devorasse o ‘sangue, o
suor e as lágrimas’ do caseiro, o trabalhador, homem ou mulher, ostentaria o
maço e o cinzel, a enxada e o martelo, de onde tira o magro salário para a família
inteira.
Não sei se haveria basalto para tanto escultor da
Autonomia… Porque, numa ilha tão escassa como a nossa, posso garantir que lá
estão, como numa folclórica galeria, todos esses – e muitos mais - modelos
autonómicos que venho descrevendo. Há-os, camaleónicos e, todos eles, gameleónicos,
(passe o neologismo) porque, todos eles, ministros ou acólitos no altar da
Autonomia da Gamela! Todos, menos os últimos, os trabalhadores fiéis ao seu
lugar humilde mas consistente na construção da Ilha, seja qual a sua profissão.
“Serás jovem quanto a tua ideia”, não me canso de
repetir e saborear o nosso grande Octávio de Marialva. E, nesta data comemorativa,
ouso acrescentar: Serás autónomo quanto o teu pensamento e quanta a tua acção.
Qual será a minha, a tua, a nossa estátua da
Autonomia?!
01.Jul.20
Martins Júnior
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