Na
sala de anestesia geral em que o ‘covid’
tornou este planeta, desde os grandes continentes aos mais estreitos becos
domésticos, explodem imprevistamente estampidos brutais que a modorra dos dias não
nos deixa captar. E foi ontem um deles. Veio nas folhas amarelecidas do Livro,
com mais três séculos de história. Seu autor: Ezequiel, um líder popular,
corajoso desestabilizador de uma pútrida ordem social, ele que lia nas estrelas e falava a linguagem
vinda do Supremo Juiz do Universo. Ei-lo, em discurso directo:
Criatura humana, fala aos filhos do teu povo
e diz-lhes assim: “Quando Eu fizer cair a espada sobre a terra e o vigia que o
povo escolheu tocar a trombeta a avisar os seus habitantes e se estes, ouvido o
alarme, não fizerem caso, o sangue cairá sobre as suas cabeças, mas o vigia
será ilibado de culpa e salvar-se-á. Se, porém, este não tocar a trombeta a
avisar o povo, é a ele que Eu pedirei contas. Faz o mesmo com os filhos de
Israel: Se não os alertares dos seus maus caminhos e das suas iniquidades, a morte cairá sobre eles, mas é a ti que Eu
incriminarei dessa tragédia. Porque não ergueste a tua voz em tempo oportuno”. (Ez.
Cap.33).
Mais
forte que o troar de um canhão de guerra, foi este ultimato que durante o
percurso sinuoso do povo judeu, inundava as insónias dos profetas e lhes batia
nas profundezas do seu imaginário: “Levanta a tua voz como uma trombeta, para
salvares o teu povo’.
Devo
dizer que, desde ontem, a partir dos textos propostos para o dia de domingo,
desfilaram diante de mim centenas, milhares de vigias da noite, sentinelas do povo
(semelhantes aos vigilantes nas montanhas que outrora acendiam as fogueiras dos
“Fachos” quando avistavam corsários na
costa), associei-os, esses heróis de todos os tempos e lugares, que em picos da
crise social, ético-cultural e económica, arriscaram a própria vida, mas
salvaram os seus conterrâneos, erguendo a voz como a trombeta do Arcanjo Libertador.
São conhecidos por todos os que amam a Liberdade e a Justiça. Bastas vezes passaram já por estas páginas
bloguistas. E alguns deles – rari nantes in
gurgite vasto - ainda vivem entre nós. Felizmente!
Em
contraciclo, têm atravessado a minha paisagem interior milhões, biliões de
algozes do povo disfarçados e bem paramentados de vigias e pastores do rebanho,
maiorias silenciosas, que usaram a mudez calculada frente aos lobos
devoradores. Todo o mundo os tem. O nosso Portugal também, em tempo de ditadura
salazarenta. A nossa ilha também, no pós-Abril, cujos fautores até se ufanavam
de usurpar a mesma longevidade da noite sombria do fascismo.
Ocupa-me
e preocupa-me até às entranhas o clamor de Ezequiel, porque dirige-se, sem
errar o alvo, aos detentores do poder espiritual, sob a genérica designação
semântica de ‘Profetas do Reino’, mandatados para abrir clareiras nas trevas da
ignorância, para dardejar a chama da Verdade e do Direito contra os
manipuladores da grei. Falta-me ainda cumprir este mandato, antes que me vá:
desmascarar a cobardia de pastores, confrades,
clérigos, prelados e instituições, serventuários do poder
político-financeiro, que nos últimos 46 anos bajularam despudoradamente os poderosos,
embrulharam em sotainas (des)sacralizadas os abusos e os atentados devotamente perpetrados
contra os superiores interesses do povo ilhéu.
É
um dever indeclinável erguer a voz como trombeta intemerata.
Vem,
Ezequiel Profeta! Vem de novo, rasgar a noite e abrir o Dia Novo!
07.Set.20
Martins Júnior
E que a caneta (voz) não lhe doa. Um abraço.
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