Chegou
aquela hora em que, desta margem do rio, foi-nos dado contemplar Helena Marques
entre “aqueles que da lei da morte se vão libertando”.
“
O Útimo Cais” – assim foi seu romance primeiro E agora foram os seus livros que
lhe construíram o derradeiro porto de chegada, o “Último Cais” da longa viagem da vida.
Para
falar de um escritor, não há palavras como as dele. Porque mais autênticas,
mais íntimas, mais sofridas e vividas. Para evocar a “nossa” Helena Marques,
também não há palavras como as dela. Por isso, ao sabermos da despedida , não
quisemos dizer adeus, um adeus formal. Fomos logo ao baú das memórias felizes e
aí encontrámos lenços brancos de saudade, que cheiravam ainda a presença, a
simpatia perfumada, a paz dinâmica que Helena Marques transmitira em Machico
aos jovens, numa amena mesa redonda,
como de mãe para filhos, quando a entrevistaram para o semanário estival “Domingo
Jovem”, a cargo do Centro Cívico-Cultural e Social da Ribeira Seca.
Gesto
nobre de uma figura de primeira grandeza, galardoada com vários prémios
literários, jornalista e escritora de reconhecido mérito em Portugal – gesto nobre,
sublinho, revelador daquela timbrada simplicidade que caracteriza as almas grandes,
ao receber jovens de uma comunidade, suburbana, quase rural! Ficámos
eternamente gratos!
Ocorria
o centenário da morte de Eça de Queirós. Helena veio falar-nos do memorável
cultor do romance português. E de Machico. Transcrevo alguns excertos:
É sempre um prazer estar
em Machico e é sempre um prazer falar de Eça de Queirós, de quem sou uma
leitora apaixonada. É daqueles autores que tenho sempre à minha cabeceira.
Amanhã, falar-vos-ei dele na conferência
já agendada. Quanto a Machico, gosto de cá estar, tenho vindo sempre aqui de
férias. Recordo quando ia tomar o chá àquela quinta “Paradise”, distintíssima,
requintadíssima, lindíssima, a mais bonita que havia na Madeira.
À
questão – “Tem-se dito que nos seus romances perpassam cenários e personagens
do mundo queirosiano” – responde:
Eu não sei se isso é verdade,
oxalá que o seja. Quando saiu “O Último Cais” disseram-me que fazia lembrar os
romances do século XIX. Eu fico sempre muito sensibilizada porque acho que no
final do século XIX se escreveram obras magníficas. Não só em Portugal, como
Eça de Queirós, mas também outros escritores franceses e russos, como Tolstoi e
Dostoiewsky. Acho que a literatura oitocentista foi de facto brilhante. E
dizerem-me uma coisa dessas deixa-me perfeitamente lisonjeada, fico satisfeita,
embora acho que é uma generosidade.
Sobre
os prémios alcançados, observa com exacto realismo:
É grande a sensação de
receber prémios fora da Madeira. Temos de admitir que a nossa terra é muito
pequena, não significa muito no espaço nacional. É verdade que recusei-me a
receber a “Orquídea de Prata”, uma distinção regional, porque achei que não fazia sentido nenhum vir de Lisboa receber um
prémio de escritora numa ilha, a minha ilha, onde fui tão mal vista como
jornalista. Quanto ao prémio da Associação Portuguesa de Escritores, deu-me
muita alegria e foi muito significativo, pois fiquei perfeitamente entalada
entre Saramago (que recebera no ano anterior) e Vergílio Ferreira (no ano
seguinte ao meu).
Tendo-lhe
sido proposto o desafio de escrever um romance sobre o grande sonetista machiquense
Francisco Álvares de Nóbrega, o “Nosso Camões Pequeno”, Helena Marques acedeu
com gentileza e agrado:
É possível, de facto, mas
isso exigiria uma grande investigação, até uma presença física, exigiria mesmo
que eu viesse para cá, mas nesta altura será difícil, porque sou uma avó cheia
de netos, não a tempo inteiro, mas sou uma avó disponível, sempre que é
preciso. Todavia, não ponho de parte essa ideia, de maneira nenhuma. Acho que é
muito interessante. Acho que Machico, desde as lendas de Machim e Ana d’Arfet,
tem muito interesse. Muito obrigada pela ideia.
Acerca
do livro e das leituras, define-se:
A minha relação com o
livro é muito física, como as pessoas têm uma relação física entre si. Eu tenho
que sentir o papel na mão, tenho que poder mexê-lo, abri-lo quando me apetece,
fechá-lo quando quiser, sem ter que passar pela fase de ligar ou desligar. Eu
tenho com os livros uma relação muito física e muito emocional, quer dizer,
gosto de voltar atrás, de reler uma passagem que me impressionou muito e há muitos
anos. Acho que nunca conseguirei converter-me à leitura pela internet. Quanto
aos mais novos, comento com muita mágoa o desgosto da juventude pela leitura,
vai marcá-los nos homens muito negativamente, tenho muita pena. Acho que é uma
perda, é fechar o acesso a um mundo fascinante, que está ali à nossa mão, é só
ir buscar, está aberto a toda a gente e a que os jovens estão a fechar-se sem
razão, por desconhecimento, por uma antipatia instintiva, e que não é baseada
sequer numa experiência traumatizante (‘ai, li uma coisa horrorosa, nunca mais
quero saber de livros’). Não é isso. Não têm vontade. Uma mágoa.
Que
mensagem para os jovens e para a Madeira?
A minha mensagem para os
jovens e para a Madeira seria o “Regresso à Leitura”. O que significa que os
livros dão prazer. E isso é fundamental: que o livro nos dê prazer, mesmo que
seja um livro muito sério, um livro que pretende atingir objectivos éticos muito
elevados, mas tem que dar prazer, tem que ser exposto de maneira que dê prazer
às pessoas. E é esta uma grande responsabilidade para os escritores.
Revisitar
esta entrevista (para muitos talvez inédita) e reaprender a sua mensagem – eis a nossa
homenagem a Helena Marques. Em vez do “Requiem” de crisântemos espalhados sobre
a lousa que o tempo há-de crestar, preferimos trazê-la de novo à nossa
companhia, a “Deusa Sentada” à volta
da ‘Távola Redonda’ de há vinte anos,
entre os jovens que ainda o são hoje e sempre serão, à imagem e semelhança
daquela que, sendo esposa, mãe e avó estremada, nunca deixou de brilhar como
estandarte da vida, da beleza, da eterna
juventude.
Para
a família, as condolências e o bálsamo deste recanto da Ilha.
Porque,
nunca é demais repeti-lo: “Morrer é só deixar de ser visto”!
21.Out.20
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