Enquanto
escrevo estas linhas, a noite, entre vento forte, chuva grossa, relâmpagos e trovões, faz a sua marcha ao
encontro da manhã. E essa manhã tem tanto de luminoso como de sombrio e
trágico. Neste domingo descendente vamos a caminho daquele 30 de Novembro de
1773, o dia que viu nascer Francisco Álvares de Nóbrega, “em pobre, sim, mas
paternal morada”.
Quis
a (des)Fortuna que neste 247º aniversário do seu nascimento,
não houvesse programação festiva nem ajuntamentos sócio-culturais. Mas assenta
à perfeição este “confinamento” evocativo do nosso “Camões Pequeno”. Porque se
o corpo da sua obra brilha exuberante no estilo, no ritmo e na elocução
literária, o que dela ressuma - a alma, a angústia existencial – não nos move a
euforias congratulatórias, antes amarra-nos às algemas que carregaram as suas
mãos, dentro e fora da cadeia do Limoeiro. Neste momento, revejo-me no soneto
que ele, “Camões Pequeno” dedicou ao “Magno Camões”, o épico imortal:
Se
me recordo, meu Camões divino,
De que em pobre hospital, sórdido, agreste,
O derradeiro adeus ao mundo déste,
Leio em tua desgraça o meu destino.
E
disse-o bem. Porque se Luís Vaz acabou seus dias na miséria e em “sórdido
hospital”, a Álvares de Nóbrega pior sorte lhe coube: a enxerga da masmorra
consumiu-lhe a pele e apodreceu-lhe o corpo, depois da soltura, até morrer em
casa de um amigo, que o recebeu, mais abandonado que um sem-abrigo, na Rua São
João Nepomuceno, zona de Campo de Ourique. Lisboa.
O
nosso conterrâneo do século XVIII, que hoje se evoca, não é uma lenda, nem protagonista de um filme
pré-fabricado. Teve nome, pai e mãe, conhecem-se os carrascos e as instituições
que lhe tramaram a vida. Mutatis mutandis, fizeram-lhe o que
fizeram ao Nazareno: o poder religioso (mais que o poder político) assanhou-se
contra o jovem machiquense que, então, já tinha dado entrada no Seminário do
Funchal, por sugestão do deão da Sé Catedral, seu amigo e professor de
Retórica. O bispo tem nome: José da Costa Torres. Perseguiu o talentoso
candidato ao sacerdócio com base em calúnias de teor teológico-doutrinário e
não descansou sem que um fraudulento processo na Inquisição o espetasse na dita
masmorra do Limoeiro.
Dispenso-me
de repetir o seu doloroso percurso em Machico, no Funchal, em Lisboa. Já foi
bastas vezes divulgado. Direi apenas isto: despediu-se da vida aos 33 anos de
idade, a mesma do Nazareno. Nem há registo de sepultura nem sequer se conhece o
cemitério onde depositaram os seus ossos. Conhecem-se, isso sim, os algozes: o
bispo Torres e o Tribunal do Santo Ofício, a Inquisição!
Eram
tempos tumultuosos os de Álvares de Nóbrega, em que a Maçonaria nascente
ganhava a simpatia de muitos eclesiásticos madeirenses. Mas foi o nosso
conterrâneo que o dito bispo escolheu para alvo preferido e vítima sem defesa.
Entretanto – ironia da história – o mesmo prelado caiu em desgraça do povo
madeirense e, diz a história, teve de fugir clandestinamente do Funchal para
Lisboa, “sem poder sequer despedir-se do Santíssimo Sacramento”.
Chegado
à Madeira, o novo bispo, D. Luís Rodrigues Villares, tomou como sua primeira
decisão libertar o nosso poeta e pensador, não obstante o adiantado
estado de precária saúde.
Quantos
homens e mulheres, ao longo dos séculos, gemeram e morreram sob o implacável,
satânico, cepo da Inquisição, em nome de um deus que ela mesma fabricou.
Semelhantes aos de Francisco Álvares de Nóbrega, quantas vítimas ficaram
eternamente no ignoto silêncio das sepulturas anónimas! Até aos nossos dias… Por isso, o título desta
página, conquanto genérico e aparentemente excessivo, pretende homenagear os
heróis esquecidos que deram a vida para que pudéssemos todos respirar
livremente enquanto habitarmos este planeta. É o que faremos em particular na
sala e biblioteca “Francisco Álvares de Nóbrega”, em Machico.
E
já que estamos em tempo de Advento, de vigilância cívica e evangélica, o povo
tem de exercitar a sua cidadania, permanecendo alerta contra os abusos do
poder, venham eles de onde vierem!!!
Encerro
estes considerandos, inspirados na mensagem do nosso “Camões Pequeno”, com o soneto
que ele próprio, desde Lisboa e já destruído fisicamente, dedicou ao bispo libertador Luís Rodrigues Villares:
Prelado Excelso, o Nóbrega doente,
Cá das margens do Tejo, onde o remistes,
Vai, sobre as asas dos seus versos tristes,
A beijar-vos
humilde a mão clemente.
Ainda se lembra da tenaz corrente,
Que do seu rôto pé Sábio despistes,
Quando em cárcere abjecto em luto o vistes
Dos
pais, do benfeitor, da Pátria ausente.
Só
vós o fado meu vencer pudestes,
Só
vós os agros dias me adoçastes,
Do
vosso antecessor mimos agrestes.
Conheça
o mundo o quão diverso andastes:
Aquele
me espancou, vós me acolhestes,
Aquele
me prendeu, vós me soltastes.
29.Nov.20
Martins Júnior
Noites e vidas atribuladas iluminam a Ética e o Dever daqueles que foram gerados para tocar os limites do inferno e o do céu deste mundo. Dois machiquenses amantes da liberdade, com destinos paralelos:
ResponderEliminar"Aquele me espancou , vós me acolhestes,
Aquele me prendeu, vós me soltastes"
Que rara coincidência! A vida assim tem outros temperos que o comum dos mortais não consegue saborear, nem alcançar. Extraordinário...