domingo, 29 de novembro de 2020

BISPOS DO FUNCHAL CONTRA GENTE DE MACHICO: UM EPISÓDIO SECULAR

                                                                                


Enquanto escrevo estas linhas, a noite, entre vento forte, chuva grossa,  relâmpagos e trovões, faz a sua marcha ao encontro da manhã. E essa manhã tem tanto de luminoso como de sombrio e trágico. Neste domingo descendente vamos a caminho daquele 30 de Novembro de 1773, o dia que viu nascer Francisco Álvares de Nóbrega, “em pobre, sim, mas paternal morada”.

Quis a  (des)Fortuna  que neste 247º aniversário do seu nascimento, não houvesse programação festiva nem ajuntamentos sócio-culturais. Mas assenta à perfeição este “confinamento” evocativo do nosso “Camões Pequeno”. Porque se o corpo da sua obra brilha exuberante no estilo, no ritmo e na elocução literária, o que dela ressuma - a alma, a angústia existencial – não nos move a euforias congratulatórias, antes amarra-nos às algemas que carregaram as suas mãos, dentro e fora da cadeia do Limoeiro. Neste momento, revejo-me no soneto que ele, “Camões Pequeno” dedicou ao “Magno Camões”, o épico imortal:

                  

Se me recordo, meu Camões divino,

                   De que em pobre hospital, sórdido, agreste,

                   O derradeiro adeus ao mundo déste,

                   Leio em tua desgraça o meu destino.

 

E disse-o bem. Porque se Luís Vaz acabou seus dias na miséria e em “sórdido hospital”, a Álvares de Nóbrega pior sorte lhe coube: a enxerga da masmorra consumiu-lhe a pele e apodreceu-lhe o corpo, depois da soltura, até morrer em casa de um amigo, que o recebeu, mais abandonado que um sem-abrigo, na Rua São João Nepomuceno, zona de Campo de Ourique. Lisboa.

O nosso conterrâneo do século XVIII, que hoje se evoca,  não é uma lenda, nem protagonista de um filme pré-fabricado. Teve nome, pai e mãe, conhecem-se os carrascos e as instituições que lhe tramaram a vida.  Mutatis mutandis, fizeram-lhe o que fizeram ao Nazareno: o poder religioso (mais que o poder político) assanhou-se contra o jovem machiquense que, então, já tinha dado entrada no Seminário do Funchal, por sugestão do deão da Sé Catedral, seu amigo e professor de Retórica. O bispo tem nome: José da Costa Torres. Perseguiu o talentoso candidato ao sacerdócio com base em calúnias de teor teológico-doutrinário e não descansou sem que um fraudulento processo na Inquisição o espetasse na dita masmorra do Limoeiro.

  Dispenso-me de repetir o seu doloroso percurso em Machico, no Funchal, em Lisboa. Já foi bastas vezes divulgado. Direi apenas isto: despediu-se da vida aos 33 anos de idade, a mesma do Nazareno. Nem há registo de sepultura nem sequer se conhece o cemitério onde depositaram os seus ossos. Conhecem-se, isso sim, os algozes: o bispo Torres e o Tribunal do Santo Ofício, a Inquisição!

Eram tempos tumultuosos os de Álvares de Nóbrega, em que a Maçonaria nascente ganhava a simpatia de muitos eclesiásticos madeirenses. Mas foi o nosso conterrâneo que o dito bispo escolheu para alvo preferido e vítima sem defesa. Entretanto – ironia da história – o mesmo prelado caiu em desgraça do povo madeirense e, diz a história, teve de fugir clandestinamente do Funchal para Lisboa, “sem poder sequer despedir-se do Santíssimo Sacramento”.

Chegado à Madeira, o novo bispo, D. Luís Rodrigues Villares, tomou como sua primeira decisão libertar o nosso poeta e pensador, não obstante o adiantado estado de precária saúde.

Quantos homens e mulheres, ao longo dos séculos, gemeram e morreram sob o implacável, satânico, cepo da Inquisição, em nome de um deus que ela mesma fabricou. Semelhantes aos de Francisco Álvares de Nóbrega, quantas vítimas ficaram eternamente no ignoto silêncio das sepulturas anónimas!  Até aos nossos dias… Por isso, o título desta página, conquanto genérico e aparentemente excessivo, pretende homenagear os heróis esquecidos que deram a vida para que pudéssemos todos respirar livremente enquanto habitarmos este planeta. É o que faremos em particular na sala e biblioteca “Francisco Álvares de Nóbrega”, em Machico.

E já que estamos em tempo de Advento, de vigilância cívica e evangélica, o povo tem de exercitar a sua cidadania, permanecendo alerta contra os abusos do poder, venham eles de onde vierem!!!  

Encerro estes considerandos, inspirados na mensagem do nosso “Camões Pequeno”, com o soneto que ele próprio, desde Lisboa e já destruído fisicamente,  dedicou ao bispo libertador Luís Rodrigues Villares:

 

                   Prelado Excelso, o Nóbrega doente,

                   Cá das margens do Tejo, onde o remistes,

                   Vai, sobre as asas dos seus versos tristes,

                   A beijar-vos humilde a mão clemente.

 

                   Ainda se lembra da tenaz corrente,

                   Que do seu rôto pé Sábio despistes,

                   Quando em cárcere abjecto em luto o vistes

Dos pais, do benfeitor, da Pátria ausente.

 

Só vós o fado meu vencer pudestes,

Só vós os agros dias me adoçastes,

Do vosso antecessor mimos agrestes.

 

Conheça o mundo o quão diverso andastes:

Aquele me espancou, vós me acolhestes,

Aquele me prendeu, vós me soltastes.

 

29.Nov.20

Martins Júnior

        

                                                                  

 

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                          

1 comentário:

  1. Noites e vidas atribuladas iluminam a Ética e o Dever daqueles que foram gerados para tocar os limites do inferno e o do céu deste mundo. Dois machiquenses amantes da liberdade, com destinos paralelos:
    "Aquele me espancou , vós me acolhestes,
    Aquele me prendeu, vós me soltastes"
    Que rara coincidência! A vida assim tem outros temperos que o comum dos mortais não consegue saborear, nem alcançar. Extraordinário...

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