sábado, 7 de novembro de 2020

RECEITUÁRIO EXTRA-FARMÁCIAS

 

                                                           


Não tem magias nem metáforas o receituário que trago para este fim-de-semana. Porque é puro e duro o material de me ocupo hoje: o chão trepidante que pisam os nossos passos, o quotidiano inseguro, pré-neurótico que nos domina na rua, nas esplanadas, nos transportes, nos hospitais e até dentro das quatro paredes do nosso quarto. Nada nem ninguém para nos ajuda ao auto-domínio, muito menos à auto-estima.

Neste ar rarefeito que respiramos, tudo ou quase tudo à nossa volta traz o aperto da insatisfação e do medo, com o espectro da morte no fim da ‘picada’. E é aí que nos sobressalta. É verdade que, para alguns, chega a alvorada do ‘nirvana’ através da eutanásia, mas para a grande multidão dos mortais o pavor do desconhecido abismo sepulta-nos o corpo e, antes dele, afoga-nos a mente e a sensibilidade. Onde iremos? Como iremos?

Ora, há um antídoto, sem quaisquer danos colaterais, a que podemos ter acesso. Não é sedativo, mas é reconfortante, apaziguador. Direi mais: é dinâmico, como a fénix da lenda faz-nos renascer das próprias cinzas. E quem o traz é, como sempre, o Manual hebdomadário de cada sábado-domingo, pela voz do Nazareno. Vem em Mateus, capítulo 25.

As dez raparigas convidadas pelos noivos para fazer guarda-de-honra quando estes chegassem ao solar do banquete nupcial, espelham a dualidade comportamental da condição humana: cinco delas, antecipando os imprevistos e as eventuais dilações do protocolo, acautelaram-se e muniram-se de todos os ingredientes logísticos para o efeito, nomeadamente o azeite-combustível  destinado aos archotes do ritual judaico. Estas eram as chamadas “virgens prudentes”. As outras cinco, certamente eufóricas com o prestigioso convite para a boda, lançaram-se apressadamente na corrida até aos portões do solar. Mas os noivos demoraram, as jovens dormitaram - e os archotes quase sem pingo de azeite. Quando chegaram os nubentes, as cinco prudentes entraram para o festim. E as outras cinco? Tinham ido à cidade comprar azeite. Quando chegaram, ninguém lhes quis franquear a entrada “Ide embora, não vos conheço de lado nenhum” – respondeu, lá dentro, o próprio noivo. Dura sanção, inapelável, irrevogável!

Onde está o receituário prometido em título?

Vem todo implícito, direi “claramente visto”, nas entrelinhas da narrativa. Questionemos: que é que pediram os noivos àquelas distintas donzelas, convidadas especiais? Que empunhassem os archotes acesos à sua chegada, consoante a etiqueta cerimonial. Mais nada. Nem discursos, nem cânticos angélicos, nem figurinos exóticos, nem orações. Só os pavios acesos. E por que foram severamente punidas as outras cinco? Por não oferecerem ricas baixelas, somas avultadas, anéis e braceletes de oiro persa? Nada disso. Só as lâmpadas acesas. De nada lhes serviram as correrias à cidade, o dinheiro que deixaram ao azeiteiro. Tudo baldado. Faltou o essencial e o mais fácil: os pavios acesos.

Inigualável pedagogo o nosso Mestre!

Colocados no miradouro da existência, perante a imensa paisagem de opções, sonhos, projectos .- segundo o axioma goethiano “ânsias de subir, cobiças de transpor” – fixemos o nosso olhar, todo o capital do nosso investimento, no preciso quadro do nosso estatuto, aquele que pertence à realização possível da nossa condição, limitada, é certo, mas aberta ao meio circundante, à comunidade que espera o contributo do nosso talento. Aí chegados, podemos descansar a agitação febril do mundo que nos cerca, como a suave almofada ao fim de um dia de trabalho, como o merecido repouso dos heróis.

O heroísmo não se mede aos palmos nem a preciosidade do monumento se avalia pelo tamanho das formas. E porque a breve novela das dez raparigas da boda nupcial tem a ver com a finitude dos nossos dias, repudiemos os temores vãos, os tribunais além-túmulo, os fantasmas de um Além nunca esclarecido com que os charlatães dos púlpitos e os ‘halloweens’ das consciências  amedrontam os viajantes da barca de Caronte. Cumpramos o nosso lugar. Age quod agis – faz bem o que fazes – diz a antiguidade dos sábios.

Sejam os feitos do nosso quotidiano os archotes luminosos a arder na noite escura, enquanto não chega a madrugada. Na pedagogia do Nazareno reflecte-se a intuição de Pessoa:  

Para ser grande, sê inteiro: nada

        Teu exagera ou exclui.

Sê todo em cada coisa. Põe quanto és

        No mínimo que fazes.

Assim em cada lago a lua toda

        Brilha, porque alta vive.

     

Em todo o tempo – de pandemia ou de euforia, de juventude ou de velhice, de encanto ou desencanto – eis a receita segura, empoderada, para a saúde dos pulmões e para a liberdade do espírito.

 

07.Nov.20

Martins Júnior

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