Não
tem magias nem metáforas o receituário que trago para este fim-de-semana.
Porque é puro e duro o material de me ocupo hoje: o chão trepidante que pisam
os nossos passos, o quotidiano inseguro, pré-neurótico que nos domina na rua,
nas esplanadas, nos transportes, nos hospitais e até dentro das quatro paredes
do nosso quarto. Nada nem ninguém para nos ajuda ao auto-domínio, muito menos à
auto-estima.
Neste
ar rarefeito que respiramos, tudo ou quase tudo à nossa volta traz o aperto da
insatisfação e do medo, com o espectro da morte no fim da ‘picada’. E é aí que nos
sobressalta. É verdade que, para alguns, chega a alvorada do ‘nirvana’ através
da eutanásia, mas para a grande multidão dos mortais o pavor do desconhecido
abismo sepulta-nos o corpo e, antes dele, afoga-nos a mente e a sensibilidade.
Onde iremos? Como iremos?
Ora,
há um antídoto, sem quaisquer danos colaterais, a que podemos ter acesso. Não é
sedativo, mas é reconfortante, apaziguador. Direi mais: é dinâmico, como a
fénix da lenda faz-nos renascer das próprias cinzas. E quem o traz é, como sempre,
o Manual hebdomadário de cada sábado-domingo, pela voz do Nazareno. Vem em
Mateus, capítulo 25.
As
dez raparigas convidadas pelos noivos para fazer guarda-de-honra quando estes chegassem
ao solar do banquete nupcial, espelham a dualidade comportamental da condição
humana: cinco delas, antecipando os imprevistos e as eventuais dilações do
protocolo, acautelaram-se e muniram-se de todos os ingredientes logísticos para
o efeito, nomeadamente o azeite-combustível destinado aos archotes do ritual judaico. Estas
eram as chamadas “virgens prudentes”. As outras cinco, certamente eufóricas com
o prestigioso convite para a boda, lançaram-se apressadamente na corrida até
aos portões do solar. Mas os noivos demoraram, as jovens dormitaram - e os
archotes quase sem pingo de azeite. Quando chegaram os nubentes, as cinco
prudentes entraram para o festim. E as outras cinco? Tinham ido à cidade
comprar azeite. Quando chegaram, ninguém lhes quis franquear a entrada “Ide
embora, não vos conheço de lado nenhum” – respondeu, lá dentro, o próprio
noivo. Dura sanção, inapelável, irrevogável!
Onde
está o receituário prometido em título?
Vem
todo implícito, direi “claramente visto”, nas entrelinhas da narrativa. Questionemos:
que é que pediram os noivos àquelas distintas donzelas, convidadas especiais?
Que empunhassem os archotes acesos à sua chegada, consoante a etiqueta
cerimonial. Mais nada. Nem discursos, nem cânticos angélicos, nem figurinos
exóticos, nem orações. Só os pavios acesos. E por que foram severamente punidas
as outras cinco? Por não oferecerem ricas baixelas, somas avultadas, anéis e
braceletes de oiro persa? Nada disso. Só as lâmpadas acesas. De nada lhes
serviram as correrias à cidade, o dinheiro que deixaram ao azeiteiro. Tudo
baldado. Faltou o essencial e o mais fácil: os pavios acesos.
Inigualável
pedagogo o nosso Mestre!
Colocados
no miradouro da existência, perante a imensa paisagem de opções, sonhos,
projectos .- segundo o axioma goethiano “ânsias de subir, cobiças de transpor” –
fixemos o nosso olhar, todo o capital do nosso investimento, no preciso quadro do
nosso estatuto, aquele que pertence à realização possível da nossa condição,
limitada, é certo, mas aberta ao meio circundante, à comunidade que espera o
contributo do nosso talento. Aí chegados, podemos descansar a agitação febril
do mundo que nos cerca, como a suave almofada ao fim de um dia de trabalho, como
o merecido repouso dos heróis.
O
heroísmo não se mede aos palmos nem a preciosidade do monumento se avalia pelo
tamanho das formas. E porque a breve novela das dez raparigas da boda nupcial
tem a ver com a finitude dos nossos dias, repudiemos os temores vãos, os
tribunais além-túmulo, os fantasmas de um Além nunca esclarecido com que os
charlatães dos púlpitos e os ‘halloweens’ das consciências amedrontam os viajantes da barca de Caronte.
Cumpramos o nosso lugar. Age quod agis – faz
bem o que fazes – diz a antiguidade dos sábios.
Sejam
os feitos do nosso quotidiano os archotes luminosos a arder na noite escura,
enquanto não chega a madrugada. Na pedagogia do Nazareno reflecte-se a intuição
de Pessoa:
Para ser grande, sê
inteiro: nada
Teu
exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa.
Põe quanto és
No
mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua
toda
Brilha,
porque alta vive.
Em
todo o tempo – de pandemia ou de euforia, de juventude ou de velhice, de
encanto ou desencanto – eis a receita segura, empoderada, para a saúde dos
pulmões e para a liberdade do espírito.
07.Nov.20
Martins Júnior
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