É preciso não deixar fugir o momento. Captar-lhe a alma
mais que o corpo, reter do fortuito a força reprodutiva do futuro e plantar na
vertigem da água corrente a bandeira perene dos valores imortais! Eis uma filosofia
existencial segura, pois que é a vida senão uma sucessão ininterrupta de
instantes fugazes?!
Por isso é que não deixo
passar em claro a dimensão intemporal daquela homenagem que há menos de oito
dias em Viseu foi prestada a Aristides de Sousa Mendes, o Grande DESOBEDIENTE
que fez da Desobediência a SALVAÇÃO de dezenas de milhares de seres humanos. A
propósito da inauguração da Casa-Museu em Cabanas de Viriato, sua terra natal, assinalei
aqui no Senso&Consenso que são os Desobedientes que fazem mover a
História.
É esse o momento que não
quero deixar fugir. Hoje, pretendo reafirmar o gérmen superior de uma
atitude que as normas oficiais consideram inferior e destrutiva: a
DESOBEDIÊNCIA. Previno desde logo que não se trata de um anormal e doentio
espírito de contradição, ou da absurda e cega paranoia de quem tem por profissão: desobediente.
Refiro-me tão-só àqueles que mantêm lucidez em tempo de cegueira colectiva, os
que diante de confusas encruzilhadas “vêem o invisível” e não só apontam mas abrem
o caminho na direcção certa. Costuma dizer--se que são aqueles e aquelas que estão
à frente do seu tempo e, por isso, são malsinados, são vilipendiados pelos
contemporâneos e até sacrificados pelo ‘status quo’ vigente. Só mais tarde,
é-lhes reconhecido o mérito e, daí, colocam-lhes na fronte a auréola de oiro da sua liderança.
Em todos os sectores e em
todas estrias da história, eles e elas ficaram na memória das gerações futuras.
Jeanne d’Arc desobedeceu
aos bispos franceses, aliados aos ingleses, organizou o exército popular e saí
na vanguarda em defesa do território e da sua gente. A Inquisição da Igreja
queimou-a viva. Trezentos anos depois, a Igreja (Papa, cardeais, bispos)
canonizaram-na e proclamaram-na padroeira de França.
Tomás de Aquino, poeta
filósofo, foi condenado pela Igreja em 1277 por ter adoptado o ateniense
Aristóteles como mestre inspirador da sua Summa filosófica e teológica.
Mais tarde alcandorou-o aos altares, tornou-o Santo e Protótipo da Teologia Católica.
Francisco, o Poverello,
foi considerado marginal e louco,
percorrendo as ruas da sua cidade, Assis, como protesto contra o luxo e a
opulência hegemónica da Igreja Vaticana. Hoje é o super-venerado São Francisco.
Teresa de Calcutá, quando
iniciou a sua missão anti-pobreza em bairros infra--humanos, foi malvista e
censurada pelos hierarcas eclesiásticos.
Salgueiro Maia
desobedeceu ao regime ditatorial de Marcelo e Tomás, mas nessa desobediência
formal, restituiu a liberdade e o prestígio ao Povo Português.
E como esquecer, no
domínio da ciência, Nicolau Copérnico e, na mesma época, Galileu Galilei, condenado pela Igreja por ter
descoberto o sistema heliocêntrico (A Terra girando à volta do Sol e não o contrário,
como descrevia a Bíblia) e só escapou à fogueira dando, aparentemente, o dito
por não dito!
Por detrás de cada uma
das personalidades citadas, subentendem-se e multiplicam-se centenas, milhares
de protagonistas, por cuja Desobediência aos códigos doutrinais e
comportamentais dos regimes totalitários deram novo rumo à História do Ser Humano,
andarilho errante do Planeta.
Mas o maior, o mais impressivo
e determinante de todos foi Jesus, o Nazareno, que afrontou o regime teocrático
do Templo de Jerusalém, pôs a nu a hipocrisia dos hierarcas Sumos Sacerdotes
que faziam da Religião a ameaça e o terror contra um povo humilhado e submisso.
Jesus foi considerado um herege, um marginal, revolucionário anti-imperialismo romano e até
demónio aliado de Belzebu. Não descansaram os dois poderes – o religioso e o
político – enquanto não perpetraram o assassinato mais vergonhoso da História!
Ele, mais que ninguém,
pôde erguer a honra e o valor dos DESOBEDIENTES, quando no alto da montanha
proclamou:
Bem-aventurados, Felizes,
os que desejam (lutam) por amor da Justiça (de um mundo justo)!
Bem-aventurados,
Felizes, os que sofrem (são presos, ostracizados, queimados, assassinados) por
amor da Justiça. São esses que pertencem ao Meu Reino!
Adaptemos a todos os
tempos e a todos os povos a profundidade
semântica do Sermão da Montanha:
Bem-aventurados,
Felizes, os verdadeiros DESOBEDIENTES da História Humana!
23-25.Jul.24
Martins Júnior