quinta-feira, 25 de julho de 2024

BEM-AVENTURADOS, FELIZES, OS DESOBEDIENTES DE TODOS OS TEMPOS !!!

                                                                            


É preciso  não deixar fugir o momento. Captar-lhe a alma mais que o corpo, reter do fortuito a força reprodutiva do futuro e plantar na vertigem da água corrente  a bandeira  perene dos valores imortais! Eis uma filosofia existencial segura, pois que é a vida senão uma sucessão ininterrupta de instantes fugazes?!

Por isso é que não deixo passar em claro a dimensão intemporal daquela homenagem que há menos de oito dias em Viseu foi prestada a Aristides de Sousa Mendes, o Grande DESOBEDIENTE que fez da Desobediência a SALVAÇÃO de dezenas de milhares de seres humanos. A propósito da inauguração da Casa-Museu em Cabanas de Viriato, sua terra natal, assinalei aqui no Senso&Consenso que são os Desobedientes que fazem mover a História.

É esse o momento que não quero deixar fugir. Hoje, pretendo reafirmar o gérmen superior de uma atitude que as normas oficiais consideram inferior e destrutiva: a DESOBEDIÊNCIA. Previno desde logo que não se trata de um anormal e doentio espírito de  contradição, ou da  absurda e cega paranoia  de quem tem por profissão: desobediente. Refiro-me tão-só àqueles que mantêm lucidez em tempo de cegueira colectiva, os que diante de confusas encruzilhadas “vêem o invisível” e não só apontam mas abrem o caminho na direcção certa. Costuma dizer--se que são aqueles e aquelas que estão à frente do seu tempo e, por isso, são malsinados, são vilipendiados pelos contemporâneos e até sacrificados pelo ‘status quo’ vigente. Só mais tarde, é-lhes reconhecido o mérito e, daí, colocam-lhes  na fronte  a auréola de oiro da sua liderança.

Em todos os sectores e em todas estrias da história, eles e elas ficaram na memória das gerações futuras.

Jeanne d’Arc desobedeceu aos bispos franceses, aliados aos ingleses, organizou o exército popular e saí na vanguarda em defesa do território e da sua gente. A Inquisição da Igreja queimou-a viva. Trezentos anos depois, a Igreja (Papa, cardeais, bispos) canonizaram-na e proclamaram-na padroeira de França.

Tomás de Aquino, poeta filósofo, foi condenado pela Igreja em 1277 por ter adoptado o ateniense Aristóteles como mestre inspirador da sua Summa filosófica e teológica. Mais tarde alcandorou-o aos altares, tornou-o Santo e Protótipo da Teologia Católica.

Francisco, o Poverello,  foi considerado marginal e louco, percorrendo as ruas da sua cidade, Assis, como protesto contra o luxo e a opulência hegemónica da Igreja Vaticana. Hoje é o super-venerado São Francisco.

Teresa de Calcutá, quando iniciou a sua missão anti-pobreza em bairros infra--humanos, foi malvista e censurada pelos hierarcas eclesiásticos.

Salgueiro Maia desobedeceu ao regime ditatorial de Marcelo e Tomás, mas nessa desobediência formal, restituiu a liberdade e o prestígio ao Povo Português.

E como esquecer, no domínio da ciência, Nicolau Copérnico e, na mesma época,  Galileu Galilei, condenado pela Igreja por ter descoberto o sistema heliocêntrico (A Terra girando à volta do Sol e não o contrário, como descrevia a Bíblia) e só escapou à fogueira dando, aparentemente, o dito por não dito!

Por detrás de cada uma das personalidades citadas, subentendem-se e multiplicam-se centenas, milhares de protagonistas, por cuja Desobediência aos códigos doutrinais e comportamentais dos regimes totalitários  deram novo rumo à História do Ser Humano, andarilho errante do Planeta.

Mas o maior, o mais impressivo e determinante de todos foi Jesus, o Nazareno, que afrontou o regime teocrático do Templo de Jerusalém, pôs a nu a hipocrisia dos hierarcas Sumos Sacerdotes que faziam da Religião a ameaça e o terror contra um povo humilhado e submisso. Jesus foi considerado um herege, um marginal,  revolucionário anti-imperialismo romano e até demónio aliado de Belzebu. Não descansaram os dois poderes – o religioso e o político – enquanto não perpetraram o assassinato mais vergonhoso da História!

Ele, mais que ninguém, pôde erguer a honra e o valor dos DESOBEDIENTES, quando no alto da montanha proclamou:

Bem-aventurados, Felizes, os que desejam (lutam) por amor da Justiça (de um mundo justo)!

Bem-aventurados, Felizes, os que sofrem (são presos, ostracizados, queimados, assassinados) por amor da Justiça. São esses que pertencem ao Meu Reino!

Adaptemos a todos os tempos e a todos os  povos a profundidade semântica do Sermão da Montanha:

Bem-aventurados, Felizes, os verdadeiros DESOBEDIENTES da História Humana!

 

23-25.Jul.24

Martins Júnior

domingo, 21 de julho de 2024

QUANDO DESOBEDECER É UM DEVER ! … MAS “O HERÓI SERVE-SE MORTO”. ATÉ QUANDO?!


Julho – antecipado sol de Abril  em terras de França! Em 14 de 1789, a heróica “Tomada da Bastilha”, baluartde olímpico do derrube do ‘Ancien Régime’ e do absolutismo reinante. E em 19 de 1885  nasce um português que em terras da Gália libertou dos fornos da morte  dezenas de milhares de seres humanos presos à fila dos condenados ao genocídio nazi.

            19 de Julho de 2024! Em Cabanas de Viriato renasce um velho palácio, antes mudo e quedo, agora iluminado com o timbre das madrugadas estivais. Quem o fez, qual o mago reformista, que pôs alma e lume novo nas cinzas de um chão proscrito?

            Quem foi?... Um filho clonado do Proto-Viriato, aquele que nos primórdios da portugalidade ousou afrontar a soldadesca do imperialismo romano. Foi ele, o novel Viriato, não na guerrilha das montanhas, mas na mais sangrenta ditadura urbana. Tem um nome que, a partir de hoje, ilumina todas as noites viseenses e todos os meandros da história: ARISTIDES DE SOUSA MENDES!

            Ele – diplomata e humanista, esposo exemplar e pai de quatorze filhos,  visionário e empreendedor e, no apogeu da ascensão existencial, um Herói!

            Mas, por mais encomiásticos panegíricos que lhe dediquem os historiadores, faltar-lhe-á sempre o principal, o único exponencial: UM DESOBEDIENTE !!! Marginal, desalinhado, refractário, fora-de-lei, provocador, revolucionário - todos os sinónimos, que houve e que os houver no dicionário dos povos. Mas todos reconduzir-se-ão ao único estruturalmente definidor deste homem: DESOBEDIENTE.

            Ele subverteu a anquilosada semântica do vocábulo “Desobediência”, até então carregada de rebeldia, contradição, destruição e até loucura. Ele demonstrou que Desobedecer é um Dever quando as leis e os seus agentes afrontam a dignidade humana. Em tempos de cegueira generalizada, Desobediência é Lucidez. E quando a anestesia colectiva assiste e assina a destruição, a morte lenta de um povo, Desobedecer é Re-Viver, voltar à Vida, Ressuscitar.

            Desobedeceu ao regime salazarista. E pagou caro a coragem de ter restituído à Vida gerações vindouras, descendentes dos milhares de homens e mulheres sem outro futuro além do crematório hitleriano. Pagou com a miséria, a fome e a desonra pública, a sua e a dos quatorze filhos inocentes, alguns ainda no regaço da própria mãe. Ele pertence àquela estirpe liderada pelo Nazareno Mártir, ao lado de Joana d’Arc, Álvares de Nóbrega, (madeirense) Luther King, Navalny e tantos outros que os regimes totalitários mandaram a terra comê-los e esquecê-los.

            É belo, é justo, intemporal o agora palácio-museu de Cabanas de Viriato. Mas fica-nos no peito a poção amarga que o poeta Reinaldo Ferreira escreveu em Moçambique: “O Herói serve-se morto”! Até quando?!...

            Não consigo reprimir o apelo interior quando medito em Aristides de Sousa Mendes e em todos os desobedientes vítimas da sua Lucidez pró-Humanidade. Esse apelo, mote inspirador de subsequentes reflexões, consiste no seguinte dilema: Muito se apregoa o ‘heroísmo’ dos mobilizados para a guerra colonial – eu fui um deles – e até se defendem prebendas para aqueles que, embora forçados, foram em terras africanas apoiar e, se possível, perpetuar o regime da ditadura salazarista. Eu pergunto: E os que se recusaram a combater, os que foram atirados ao fosso mortuário de Caxias, Peniche, Tarrafal, os que viram a sua vida social e familiar barbaramente destruída? Estes, a quem devemos o derrube do totalitarismo português e a conquista da Alvorada de Abril? Estes, os Desobedientes, genuínos descendentes de Aristide de Sousa Mendes?...

            São os Desobedientes que fazem mover a História !!!

 

19-21.Jul. 2024

-Martins Júnior  

           

              

              

           

           

 

 

                                                                 

quarta-feira, 17 de julho de 2024

NO 7º DIA DE UMA SAUDOSA MÃE SUPRA- -BIOLÓGICA

 


“O que eu andei para aqui chegar!”….

Ao vê-la fechada naquela nau da última viagem que terá de fazer quem teve o privilégio de nascer pareceu-me ouvir a sua voz saída das quatro tábuas ali jacentes. As centenas, milhares de quilómetros que esta mulher andou…sem nunca ter conhecido outras paragens senão a sua ilha, a sua freguesia, o seu sítio verde terra, a sua amada Ribeira Seca.

Há quem seja grande porque enormes foram os cenários, os ambientes, os países e os regimes que o fizeram. E há quem, pelo seu labor discreto, torne maior e mais belo o magro e serrano berço onde nasceu e viveu. The small is beautiful.

Assim foi esta Mulher. Sem nunca ter viajado, percorreu o sempre inacabado itinerário da paisagem humana. Sem nunca ter casado, foi Mãe de centenas, milhares de filhos: Mãe supra-biológica, na formação da alma infantil, dentro dos parâmetros que marcam decisivamente os passos futuros da vida: o civismo, o carácter, a convivialidade, a cultura, a crença, enfim, os valores humano-cristãos, a cuja campanha dedicou, enquanto lhe permitiram, os seus prolongados cem anos menos dois.

  Conheci-a, desde o meu regresso da guerra colonial em Moçambique, em 1969, quando passei de capelão militar a outra missão qualitativamente mais digna, a de assistente sócio-cultural e espiritual, como pároco da Ribeira Seca, um enclave marginalizado, desprezado, explorado, martirizado durante mais de cinco séculos pelo ‘leonino regime’ da colonia. Da colónia africana à colonia insulana, uma passagem de nível  que exigiria idênticos, se não maiores, esforços de   esclarecimento e persistência para libertar quem vivia plebeu e ´servo-da-gleba’ na sua própria ilha.

E foi nesta conjuntura que comecei a apreciar a trajectória do pensamento de uma Mulher, nascida na ruralidade profunda e marcada pela  resignação imposta no catecismo eclesiástico como promessa e caminho de salvação eterna. Ela pertencia à congregação das antigas “Filhas de Maria”, a que os populares  depreciativamente apelidavam de “beatas”. Com surpresa minha, notei o crescimento evolutivo da sua mentalidade face à Igreja institucional, tornando-se uma defensora e lutadora acérrima dos valores autenticados na Bíblia, sobretudo nos Evangelhos, mais do que nos preceituados pela hierarquia. Ao ponto de - quando o governo regional e a diocese conluiaram-se para mandar 70 polícias ocupar a igreja da Ribeira Seca  em 1985 – esta Mulher, diante do agente que a obrigava a abandonar o recinto, reagiu de uma forma lapidar: “Vá embora o senhor. Eu não saio daqui, esta é a minha casa”!

Além da sua natural bonomia, da gentileza de trato (nunca erguia agressivamente a sua voz) e de uma constante preocupação de unir em vez de separar, esta Mulher ganhou o honroso título de Mãe – aquela que “dá o pão e o ensino”: ensinou centenas e milhares de crianças em aulas de catequese e alimentou gerações com o pão servido no altar da Eucaristia. Quando o bispo  diocesano proibiu a venda oficial de hóstias à paróquia da Ribeira Seca, foi ela que inspirou a iniciativa de  adquirirmos uma máquina para a confecção das partículas destinadas à Comunhão. Durante, mais de 40 anos ( desde 1977 a 2019), produziu milhões de hóstias para suprir a ‘fome’ do Pão da Eucaristia, que a Igreja institucional tinha negado. Jamais esquecerei a paciência o carinho maternais com que, todos os anos, ela fazia a demonstração ‘ao vivo’  de como se fabricam as hóstias, perante os olhos atentos das crianças candidatas à Primeira Comunhão.

Sétimo Dia abraçado a uma vida de quase Cem Anos!

Que outro voo de homenagem e saudade posso eu dedicar à Maria da Conceição de Gois senão a expressiva revelação do poeta:

Não me peças mais canções

Porque a cantar vou sofrendo

Sou como as velas do altar

Que dão luz e vão morrendo

 

Ela viveu, serviu,, sofreu, cantou, aprendeu, ensinou e alimentou gerações, “como as velas do altar”  e assim foi fenecendo, suavemente apagando-se, dando luz e assim morrendo.

MISSÃO CUMPRIDA – podem escrever na sua tumba. Por isso e porque “morrer é só deixar de ser visto”, a sua presença e o seu legado povoam amplamente o nosso agregado populacional, tal como a luminotécnica deste nosso templo da Ribeira Seca, sem uma única lâmpada visível, mas todo ele brilhantemente iluminado.

“Alma nossa gentil que te partiste”…

Boa Viagem para a Eternidade !  

               

17.07.24

Martins Júnior