quarta-feira, 29 de abril de 2020

AS NOVAS CATEDRAIS E OS MONSTROS SAGRADOS



         
Ao título em epígrafe falta juntar o elemento essencial: o verbo ou predicado. Então ficaria assim: “Também caem as novas catedrais e da mesma forma  se abatem os monstros sagrados”. Na leitura que lhes faço, os verbos assumem uma nítida conotação reflexa, ou seja, são as catedrais que tombam por si mesmas e os monstros, ainda que sagrados, são eles que a si próprios  se desmancham, à luz do dia.
         Da encosta onde me posiciono, declaro  que tomo, desde já,  torres ou monstros como ícones e metáforas de tantos outros monumentos sócio-económico-culturais que têm balizado os nossos usos e costumes - numa palavra, a nossa civilização – e que, a partir de agora, ficam em hasta pública, à mercê de novos ventos e fortes abalos trazidos pela “insustentável leveza” do coronavírus.
         Hoje, porém, compartilho da mesma paisagem que, no dia de ontem, milhares e milhões de portugueses desfrutaram ao ver subir lentamente (ao peso de uma herança quase perdida!) certos corifeus do nosso desporto-rei na escadaria de São Bento, em Lisboa.  Houve quem a comparasse a uma segunda edição de nova “brigada do reumático” a caminho de um improvisado hospital de campanha. Ordem de trabalhos: epílogo de campeonatos inacabados.
         Não me ocupo do elenco da dita embaixada nem da sua hipotética legitimidade representativa. Nem sequer da dita Ordem de Trabalhos. Preocupa-me tão só o mesmo que preocupa o cidadão comum quando se debruça sobre o estado actual do mundo do futebol – essa floresta tão densa e tão sombria que tanto custa a desbravar e decifrar. A questão que a todos se coloca é esta: o que é hoje o futebol?... Desporto, acção, arte atlética, fraca competição, desenvolvimento integral da personalidade?... Não há muito tempo, um conhecido e abalizado cronista desportivo, no aceso de um debate televisivo sobre a matéria, explodiu (é mesmo o termo, explodiu!) agastado, peremptório: “Isto é só negócio. O futebol nada tem além do negócio”! No decurso do debate, atiraram-se como pedras de chumbo  para cima do tampo da mesa acusações e denúncias de transacções, trapaças e jogadas, subornos, traições, todo um enxurro torpe de dinheiro sujo e atentados à dignidade humana…
         Pergunta-se: Onde está um lampejo que seja daquele ideal olímpico de que falava o poeta latino Iuvenalis: “Mens sana in copore sano”?
         Nos comentários de bancada, do povo que até gosta de futebol, saíram tacadas ácidas, como “Se calhar, estes tipos também vão pedir dinheiro ao governo para pagar aos jogadores”… E logo vêm ao de cima as cifras ciclópicas aos donos das chuteiras, como aquele ilustre Professor da Faculdade de Medicina que, ao saber da transacção feita com Neymar ao PSG, não se conteve: “O quê? Isso é o Orçamento Anual de todo o Hospital de Santa Maria”!!!

         A alinhar com esta inflação verdadeiramente obscena, acresce a superinflação da palavra, dos “catedráticos da bola”, com cujas avalanches verbais os nossos canais rebentam pelas costuras… Por outro lado, não deixa de ser notória a “caça” precoce aos jovens, desde tenra idade, criando neles parcas apetências e falsas expectativas num futuro que não ultrapassa a mediania, senão mesmo o vazio cultural. Permitam-me um desabafo: ainda não percebi qual o cabimento pedagógico de transportar menores pela mão para dentro de um “caldeirão”, de todo desaconselhável, onde os esgares descontrolados são a mais vergonhosa cartilha para uma  criança!
                                                       

         Não pretendo moralizar nem muito menos dogmatizar sobre o gigantesco fenómeno do desporto-rei. Acompanho  apenas o olhar atento dos autênticos observadores dos futuros estádios, isto é, dos novos caminhos que o futebol abrirá no mundo de amanhã. Algo será diferente. O batente que o ‘Covid-19’ estourou na barra dos nossos rectângulos desportivos e em quase todos os quadrantes sociais servirá para queimar a gordorosa e rançosa imundície de que andam vestidos certos figurinos e certas estruturas do nosso futebol. As próprias novas catedrais – os estádios são as novas catedrais da cidade – e os seus  monstros sagrados  cairão de velhos e gastos se não tentarem rejuvenescer numa outra mundividência do desporto.   
         Faço minhas ( e outro objectivo não tenho senão transmiti-las) as judiciosas palavras do Prof. Francisco Sobral: “Toda a actividade desportiva deverá ser equilibrante, estruturante e socializante”. E completo-as com a veemente denúncia de um outro Mestre do Desporto, Manuel Sérgio,  acerca dos desvios do mundo em que se movimentava: “Este  nosso mundo tecnocrático que rejeita áreas fundamentais  e que, ao lado dos “Spitz” e dos “Pelés”, mantém milhões de subalimentados”!
         Será desta - pergunto eu -  ou teremos nós  de esperar por mais uma enorme penalidade do ‘Covid”  para darmos outra volta ao mundo do desporto, o futebol inclusive?

         29.Abr.20
         Martins Júnior

segunda-feira, 27 de abril de 2020

UMA ESFINGE DIANTE DE NÓS


                                                             
                                               
       Não é discurso académico, mas podia sê-lo. Não é exercício de pura dialéctica de conceitos nem virtuosismo poético de circunstância, mas podia sê-lo também. Como podia ser, ainda, o mote de um debate de sintonias e dissonâncias sobre um mesmo tema, mas não é.
         Que será então?
         Hoje, entalado entre o “25 de Abril” e o “1º de Maio”,  dei comigo a navegar numa tal “barca de Caronte” sobre um rio chamado “Covid”! As margens lá estão, umas vezes como pilares armados, outras como terra verde e viçosa conversando com o silencioso negrume da torrente-mistério que viaja até a foz, uma foz sem termo nem rosto.
E porque margens, rio e barca formam um só – a tríade da vida – senti que todos trazem uma mensagem uníssona e, paradoxalmente, todos possuem a mesma força centrífuga, contraditória. São tão iguais e tão diferentes! Fundem-se num mesmo tronco e divergem em múltiplos ramos.
Hoje vejo “Sua Majestade Covid”  implantado entre dois pilares históricos: Abril-25 e Maio-1º. Todos chamam pela Vida, na voz do desejo, mas todos como na nau do barqueiro grego defrontam-se com a morte. Na vozearia comum, todos falam de uma linguagem nova – Solidariedade, Justiça Social, Saúde, Fraternidade, Amor – mas a nenhum deles é alheia a armadura da Luta, Resiliência, Renúncia, até Isolamento e Morte.
Sem mais enigma, o que hoje vos trago e proponho é uma ficha, tipo “Telescola”, com um único enunciado no largo ecrã do vosso/nosso/meu consciente reflexo:
Descobre as semelhanças e as diferenças entre estes três polos:
“ABRIL25 - COVID -  MAIO1”
         Vou tentando, como Édipo diante da esfinge, decifrar o enigma. Durante o percurso, espaçadamente, surge-me  no horizonte dos tempos uma seta de fogo, insistente e intermitente, interpelando-nos sem rodeios:
“De quantas pandemias precisa a humanidade para aprender a viver?”   

27.Abr.20
Martins Júnior
  


sábado, 25 de abril de 2020

ABRIL EM MACHICO – O MAIOR DE SEMPRE !!!


                                              

Que imensa e bela é a lei dos contrastes! No ano 46º  do “25 de Abril” – o ano legal do confinamento social – nunca foi tão plena e íntima a apoteose da Revolução dos Cravos nesta freguesia. O Largo que o Povo, desde a primeira hora, cognominou como o seu “Largo 25 de Abril”, estava vazio, tendo como única testemunha a imponente estátua de Tristão Vaz Teixeira. Por isso, o Cravo da Liberdade soltou-se e percorreu as cinco freguesias do concelho.
Foram cenas emocionantes, vibrantes, comoventes. Nas varandas das casas, nos portais, nas janelas, nos terraços, assomavam as pessoas acenando, batendo palmas, atirando flores. Inesquecível aquela cena com as mães trazendo à beira da estrada as crianças para saudarem o símbolo da esperança, embalado pela voz do cantautor da Liberdade, o imortal José Afonso que esteve, ele mesmo, presencialmente em Machico no ano de 1976.
                                                        

Mais profunda e tocante era  a Terceira Idade, de lágrimas nas faces enrugadas, cantando a canção inicial, a “Festa do Povo, o Povo que trabalha e faz o Mundo Novo”. Foram eles, hoje veteranos, aqueles que outrora mais sofreram e, por isso mesmo, lutaram para que em Machico e em toda a Madeira não fosse vã a madrugada de Abril. Eles sabem quanto custou a Liberdade!...
Mas a apoteose de Abril ultrapassou o litoral da ilha. Navegou mares distantes e lá de longe chegaram até nós as mensagens de milhares de conterrâneos nossos que vibraram connosco. Do Reino Unido, da França, do Brasil, do Canadá e de tantos outros polos de saudade as redes sociais encarregaram-se de juntá-los aqui, num imenso abraço fraterno e patriótico. Cidadãos madeirenses, cidadãos do mundo!
Hoje foi um dia novo, pujante e, ao mesmo tempo, intimista.  O grandioso Cravo de Abril foi até à casa dos habitantes de cada freguesia, desde o mar à montanha.  Partimos de Machico, alcançámos Água de Pena, Subimos ao Santo da Serra, atravessámos túneis até ao Porto da Cruz e, por fim, abraçámos o Caniçal. Pescadores, Camponeses, Operários – todos construíram o seu (de 1974) e agora o nosso 25 de Abril de 2020. Somos nós, sobretudo os jovens, que replantaremos e ergueremos o Abril do futuro.
Aos militares que o fizeram
A todas as gerações que o seguraram
Às vítimas do Covid e a todos os cuidadores e profissionais da saúde
       O NOSSO ABRAÇO E A FORÇA DE ABRIL SEMPRE!
        
25.ABRIL.20
         Martins Júnior

quinta-feira, 23 de abril de 2020

UMA QUINTA–E-SEXTA ENTRE O PESADELO E O SONHO


                                                

Ao tocar as teclas deste instrumento ‘pensante’ eu só queria que ele fosse   um cursor ininterrupto, todo o dia  toda a noite e mais um dia, até parar ofegante e cantante na manhã  de um sábado aleluiático.
Mas não é como eu quero.  Porque, hoje, de quinta para sexta-feira, tudo me lembra uma outra quinta e outra sexta da chamada Semana Maior do Ano, faz agora precisamente uma semana. Aquela fora a noite da amargura e do pavor, em que o suor do rosto se desfez em sangue num tal horto de oliveiras. Esta, a de hoje para amanhã, foi a noite de todos os sonhos e de todos os pesadelos. O sonho de restituir a Liberdade a um Povo agrilhoado.  E o pesadelo  do exílio, da masmorra de todos os tarrafais e, por fim, a morte incógnita.
Foi a noite em que um jovem capitão disse adeus à esposa grávida – “Não sei se voltarei para poder ver  nascer o nosso filho “ -  foi a noite em que a adrenalina patriótica tentava abafar os resquícios do medo que serpeavam nos tendões e nas veias de capitães, sargentos e praças. Nos quartéis, nas casernas, nos “reforços” das sentinelas, quando eram mais pesadas as pulsações e o pavor tolhia os ossos, logo a voz clamorosa dos milhares de jovens mortos em combate colonial… logo os gemidos de tantos presos inocentes sujeitos à tortura… logo o grito de tantas mães, esposas, filhos diante dos portões de peniches e caxias… e logo, também,  a miséria de um Povo escravo, condenado à gleba, enfim, logo todo este tormentoso coro soltava os ânimos dos bandeirantes heróis da Pátria.
Foi há quarenta e seis anos!
Todos bateram palmas, todos ergueram cravos rubros, cor do sol nascente. Abril a findar e Portugal a ressuscitar!
Foi belo, exaltante, avassalador. Mas só em 25! Porque, neste 23 e 24, tudo era sombrio e tão ardente que não deixava cair as pálpebras cansadas e ávidas,  na incerteza se dali nasceria a alvorada do Dia Novo ou o vulcão que a todos os devoraria.
Perante toda esta saga libertadora e bela, quem – Português de gema, filho de Povo – quem poderá esquivar-se, acocorar as pernas ou encolher os ombros, seja por que motivo for?... E já que, por circunstâncias óbvias,  Portugal não pode sair à rua para respirar e segurar o troféu da Liberdade, então sejamos nós a exigir que os nossos representantes parlamentares (e a quem passámos solene procuração), à semelhança de outrora, a da Restauração em 1640 e  da República em 1910, levantem bem alto ou, ao menos não deixem tombar, “o esplendor de Portugal”, proclamando na Casa-Madre-Pátria, a Assembleia da República, o Dia em que de escravos da ditadura passámos a homens e mulheres livres. Mutatis mutandis, foi a nossa Páscoa gloriosa!
Eu sei que nem o espírito de Abril mata o ‘Covid-19’ nem o espírito celeste imuniza os corpos dos contados deputados que lá estarão. Mas então, inventem antídoto científico e ‘armadura’ pacífica para que, em respeito e gratidão aos heróis de Abril, ressoe outra vez na estrutura globo-circular do Parlamento este grito: ”Viva a Liberdade! Fascismo Nunca Mais”!
 Quanto folgaria eu, ainda que com muito esforço, por ver entre os opositores uma argumentação isenta e plausível, de modo a que fosse mais clara a oposição: se aos malefícios do vírus, se aos benefícios de Abril…
Finalmente, os nossos procuradores têm de dar um sinal de esperança aos seus constituintes, o Povo Português. E o sinal não suporta equívocos e é este: Sabendo-se, pela História, que é nos interstícios das crises e calamidades que proliferam os vírus de totalitarismos supervenientes, mostrem-nos – a nós e ao mundo - que  “A Ditadura não voltará e o Fascismo não passará”!!!
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 Embora sem ajuntamentos, Machico mostrará que foi, é e será sempre “Terra de Abril”. Estejam atentos.
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23/24.Abr.20
Martins Júnior   

terça-feira, 21 de abril de 2020

UNIVERSIDADE EM CASA NUMA ESCOLA GLOBAL


                                                            

           Não sei que outros nomes dar-se-iam a este nova-velha arquitectura da escola. Digo “velha” porque ela viveu tempos áureos há cerca de meio século – a então inovadora e, por isso, novíssima Telescola -  e agora reincarnou, trazida pela aragem do malfadado 'insecto' coronovírico.
         Ela aí está. E já navega, desde ontem, ancorando em cada minúsculo ilhéu habitado da nossa Região, fazendo de cada casa uma escola local dentro da grande escola global. À maneira dos sábios marinheiros, velhos lobos do mar, que têm o “engenho e a arte” de transformar os ventos contrários em força motriz para levar a nau a bom porto, assim também faremos a magia e o talento de captar este aparente retrocesso do modelo escolar e transformá-lo em reserva de ouro, ainda por explorar, no tocante a valores pedagógicos e civilizacionais.
         Em andamento breve, peço para nos acompanharmos neste percurso exploratório, tentando descobrir tesouros escondidos neste imprevisto ‘presente forçado’ do ensino à distância. Uma escola fora da escola! Não obstante todos os  constrangimentos (e são muitos) do novo modelo, há que olhar, com olhos-de-ver, para desfrutarmos daquilo que não se vê.
         Comecemos pelas respostas que os alunos têm dado aos jornalistas que os entrevistaram neste primeiro dia de aulas. A nota mais impressiva que lhes ouvimos, e sempre repetida foi, sem mais rodeios: “Sentimos que temos mais AUTONOMIA”!  Relevo-o em maiúsculas este vocábulo, porque  na boca de jovens e adolescentes, ele tem uma força maior, equiparável às outras autonomias constitucionais tão badaladas nos corredores do poder. Ganhar Autonomia no estudo e, sobremaneira, numa idade de crescimento, significa a assunção de valores e perspectivas conducentes à construção do futuro. Significa interiorizar a sede do “Saber, do Aprender, do Fazer, do Ser”, como afirmou um dia Jacques Delors, a propósito da actividade escolar. Daí nasce o auto-domínio, fruto de uma exigência pessoal, intrínseca. É como que um ‘estágio’ do que mais tarde será o modelo universitário, em que o aluno estará entregue a si mesmo. Parabéns, adolescentes e jovens, pela vossa Autonomia!
         Pego nas palavras daquele que foi o grande timoneiro da União Europeia – “Saber, Aprender, Fazer, enfim, Ser” – para descobrir uma outra jóia escondida no novo processo de aprendizagem, a qual consiste em proporcionar ao “aprendiz da vida” um ambiente ecológico em que ele cresça, natural e harmonicamente, munindo-se das ferramentas indispensáveis a uma boa entrada na grande sociedade.
Sem dar total crédito a Jean Jacques Rousseau – “O homem nasce bom, a sociedade é que o corrompe” – não restam dúvidas que é no seio familiar que se moldam originariamente o futuro homem e a futura mulher. Em síntese, refiro-me à necessária osmose entre educação e instrução, a omnipotente união entre Família e Escola. Suponho não ofender ninguém se trouxer aqui à colação uma das muitas causas do insucesso escolar: o divórcio entre Pais e Professores, entre Família e Escola. Tantas e muitas outras vezes, temos ouvido, em forma de labéu acusatório, que “a escola não pode ser vista como um depósito de crianças e jovens”. Horrível e nauseabunda expressão: Depósito!... De objectos, de embrulhos, de encomendas postais. E depois, os professores que se aguentem!...
Ora, é precisamente na conjuntura actual que eu vejo uma oportunidade de ouro, para que os pais em casa vejam, repito, “com olhos-de-ver”, a massa de que o seu filho e a sua filha se alimentam na quase totalidade do dia, desde que partem, manhã cedo,  para a escola. Mesmo que não consigam acompanhar os conteúdos e os programas escolares, a sua presença é a de um anjo tutelar (não um espião em riste), mas um polo aglutinador e inspirador da educação-instrução, o binómio galvanizador de um jovem, candidato ao mundo de amanhã.
É manifesto que a componente social fará parte integrante da personalidade do aluno e, daí, a convivialidade resultante da aprendizagem colectiva no meio escolar. Por isso que o ensino-à-distância será transitório. Mas enquanto durar, saibam os intervenientes recolher e estimar a “nata” destes dias que ficarão inesquecíveis na sua memória. Só se dá valor àquilo que se perde. Os alunos já terão certamente saudades da sua escola, da sua Professora. Esta tê-las-á dos seus alunos. Simultaneamente, a falta que faz uma mãe na sala de aulas ou um pai no pátio do recreio e nas horas livres…
Faço votos que este tempo novo se traduza numa verdadeira “Universitas”  do Saber, do Aprender, do Fazer e, sobretudo, do Seruma época histórica da Universidade da Vida!

21.Abr.20
Martins Júnior               

domingo, 19 de abril de 2020

PARADOXOS DE UMA ENCRUZILHADA: DOMINGO-19 e COVID-19


                                                       



Ao fim de um Dia de Domingo, dois hemisférios opostos envolvem e contraem o melhor de mim mesmo, num misto de mágoa e sublimação, de tristeza e alegria. Vagas de pessimismo e jactos ascendentes de optimismo fazem refluxo interminável dentro de mim. Sentindo embora os dolorosos batentes de uma desilusão não-anunciada, confortar-me-ei com o bálsamo perene da esperança que não morre. Porque aquela é transitória e esta é duradoura, libertadora, eternamente vitoriosa.
A primeira consiste no manto de dor que cobriu a  população de Câmara de Lobos, terra de pescadores, afagada pela maresia ribeirinha e que, por isso, chamo-lhe sempre freguesia-irmã gémea de Machico. Após tanto esforço  dos seus moradores para manter incólume o território, eis que “no mais fino pano cai a nódoa”  - a nódoa do corono-vírus. Tirânica coincidência esta: em Domingo-19 cai-lhes em cima o traiçoeiro ‘Covid19”.  Para toda a população câmara-lobense, uma palavra de esperança e uma mancheia de primaveras saudáveis nos dias do amanhã.
A outra metade de mim mesmo é precisamente a Esperança de um mundo outro, um mundo novo como aquele que hoje, pela manhã, foi reaberto na páginas do “Livro”, onde se narra a radical mudança dos homens e mulheres que aderiram ao sonho inacabado de Jesus de Nazaré, O Ressuscitado. Radical metamorfose, sublinho, das mentalidades e das atitudes comportamentais. Para não empanar o brilho-virgem dessa atmosfera sem par na história da Humanidade, transcrevo do original:
“Eles (os primeiros cristãos) viviam em união fraterna. Tinham tudo em comum. Chegavam a vender as suas propriedades e outros bens e distribuíam o dinheiro por todos, de acordo com as necessidades de cada um. Tinham uma só alma  e, por isso, tomavam o alimento com alegria e sinceridade de coração” (Actos, 2, 42,sgs).
Que nome dareis vós a este módulo sócio-económico ou a este patamar civilizacional? Certamente, chamareis “era solidária”… paz social … justiça distributiva igualitária… E porque “Eles tinham tudo em comum”,  haverá talvez quem (para o bem ou para o mal)  classifique o caso como de “ideologia comunista, marxista-leninista” e quejandos…
            Digam lá o que disserem, eu vejo nesse cenário novo um único lampejo e uma única definição: RESSURREIÇÃO! Poderia bem escrever-se em título e subtítulo dessa página apenas isto: “Jesus Ressuscitou, Aleluia”!  Esses homens e mulheres que beberam na nascente a mensagem do Nazareno, o  programa fundamentante, direi, constitucional, de toda a Sua vida – esses homens e mulheres, sem alardes publicitários nem protocolos litúrgicos, apenas “com alegria e sinceridade de coração”, proclamavam que Ele estava vivo,  porque o Seu programa salvífico estava a ser cumprido. Imagino que O Ressuscitado ter-se-á sentido mais feliz nas atitudes daquela comunidade do que por mil aleluias que lhe cantassem na mais requintada catedral do mundo. Já o disse e tenho gosto em reafirmá-lo: Creio que mais importante que a ressurreição física de Jesus é a vivência do Seu ideário e da Sua mensagem.
Mas há quem opte por outra definição, mais austera e radical: REVOLUÇÃO! É o eloquente dominicano Albert Nolan, nos seus escritos, entre os quais “JESUS HOJE”. Depois de definir que “uma revolução social é aquela que inverte as relações sociais existentes entre as pessoas de determinada sociedade”, afirma peremptoriamente que “Jesus pegou nos valores da sua época, em toda a sua variedade, e inverteu a sua ordem. A sua revolução social apelava a uma profunda conversão espiritual”. Teve mesmo Alvert Nolan a ousadia de dizer  que “o revolucionário Jesus virou o mundo do avesso”.
Com efeito, a revolução mais poderosa não é aquela que provém da força física ou do braço armado ou da lei prescrita, mas sim aquela que nasce do espírito. “Não há machado que a corte”. O agir social daqueles homens e mulheres não era ditado por qualquer legislação oficial, nem havia ministérios de Segurança do Estado. Brotava do mais íntimo de si próprios – da convicção que esse agir constituía o verdadeiro testemunho da Ressurreição do Mestre.
Termino o dia e encerro a minha reflexão, voltando-me para o drama dos que sofrem. Não só os de hoje, mas os de ontem e os de amanhã. Diante do agravamento da situação, olho para as vítimas e fixo-me nos cuidadores, os profissionais da saúde, do mais alto ao mais humilde: Coragem! Debruçados sobre os suplicantes da vida que tendes nas mãos, vós estais tornando Jesus Ressuscitado. E os que morreram vítimas da sua profissão ao serviço dessa Ressurreição, para esses há um lugar de privilégio entre os mártires no altar do Futuro. Bem hajam!

19.Abr.20
Martins Júnior

sexta-feira, 17 de abril de 2020

“SANCTA SANCTE” – Contra abusos e excessos


                                                                 

Não entra na composição nem na solução do Convid-19. Mas intromete-se nele, ou antes, as instituições intrometeram-no lá, via fragilidade formativa ou manifesta impotência das eventuais vítimas. Trata-se daquele estado de espírito, imenso e diferenciado, a que chamamos Fé e seus derivados, como milagre, devocionismo e crença, a qual, levada ao extremo, transforma-se em crendice, superstição e mito. Nalguns casos, como observámos no ‘blog’ anterior, chega a raiar autênticos atentados à saúde pública. Vimo-lo no aludido ‘beija-cruz’ dos utentes num determinado Lar da Terceira  Idade.
Considerada e até consentida a idiossincrasia dos idosos crentes no efeito supostamente curativo ou profilático do ‘beija-cruz’ (a mesma desculpa, presume-se, não merecem os seus promotores) cumpre agora analisar friamente (mas seriamente!) a contextura de toda uma liturgia paralela ao esforço denodado dos profissionais, cuidadores, operacionais da saúde. É útil e é saudável “ver” a relação entre ciência e religiosidade, não só no segmento Covid-19 mas em muitos outros contextos da vida em sociedade.
Entram neste exercício quatro elementos indissociáveis: Religião-Deus, Fé do utente, Logística ou Sinalética do agente e Conhecimento do cientista-analista. O veio motor desta quadratura costuma denominar-se pelo genérico “Milagre” e é nele e por ele que toma corpo toda a ansiedade do crente-milagrado.
No tocante à relação entre Deus e o Milagre, considerado este como alteração ao ritmo normal da Natura (as leis naturais) dizem os teólogos que “um deus que actuasse empiricamente no emaranhado tecido do mundo seria forçosamente classificado como mais uma entre as causas ‘mundanas’ e, portanto, colocar Deus no lugar de uma causalidade intramundana acabaria por negá-lo, porque então já não seria Deus, mas um ídolo” ((Andrés Torres Queiruga, Repensar o Mal). Na mesma linha, o Prof. Anselmo Borges : “Um Deus intervencionista implica ateísmo”.  Barry   Witney define, em síntese esclarecedora: “Esperar que Deus intervenha de maneira intermitente para curar algumas enfermidades em particular ou para prevenir alguns desastres parece ser uma questão de pura arbitrariedade”. Ao belíssimo axioma “Nada é milagre e tudo é milagre”, o famoso teólogo Herbert Haag acrescenta que, entre os hebreus, “todo o acontecimento no qual Iavé manifestava a sua força e poder, ainda que fosse ‘só’ o nascer ou  pôr do sol, era entendido pelas pessoas como sinal divino que exigia a fé”.
Numa linguagem relacional, se Deus é o emissor, o crente é o receptor. É neste que são recebidos e interpretados os “sinais” de que falam os hermeneutas bíblicos. E é aqui que reside a complexidade do chamado mundo da Fé. Em toda a história e em todo o planeta, há tantas “Fés” quantas as mentalidades, as aprendizagens, os ambientes, as catequeses, numa palavra, a educação. Acerca da Fé e do Crente pode adequar-se o princípio de Ortega Y Gasset - o Crente é aquilo que é, mais a sua circunstância. Daí o imenso e meticuloso respeito pela pessoa, seja qual for a sua Fé. Ela radica no mais íntimo do seu ser. Ainda que não se compagine com a minha, eu tenho de respeitar a sua Fé, ainda que me pareça errada. No entanto (já o escrevi neste mesmo lugar) o Líder e Mestre Jesus de Nazaré, mesmo quando fazia ‘milagres’, apelava para a consciência e para a força anímica do impetrante, exigia a sua colaboração activa. Neste âmbito, tem interesse consultar “A Psicanálise dos Evangelhos” de Françoise Dolto/Gérard Severin. Apraz-me também transcrever do livro “Fonte de Vida” de Henri Le Boursecaud o veredicto de um grande pensador, Jean Vannier: “O homem deve crer em si próprio, corresponder a esta fé de maneira positiva, acreditar numa evolução singular, única, do seu ser, tão misteriosa nas suas possibilidades como na sua singularidade”.
  É neste húmus resvaladiço que se desenha o meio ecológico perfeito para que os agentes promotores da Fé lancem a semente das suas mensagens e arvorem os símbolos mais convincentes, mas sempre em consonância com a “psico-sociologia das massas”  receptoras. Não resisto à judiciosa observação do historiador José Mattoso: “Elas, as religiões, traçam a geografia do invisível, constroem teorias, estabelecem hierarquias celestes e terrestres, criam dogmas e definem crenças, prescrevem regras morais e prevêem sanções, explicam o inexplicável… Inventam símbolos, formulários, orações, trajes, objectos sagrados,  espaços interditos. Comandam estilos, gostos, sons, diferenças. Condenam-se umas às outras, criam estratégias de combate, de expansão e reprodução”  (in “Levantar o Céu – Os labirintos da Sabedoria”).
Sábia e concreta análise, a que não falta um traço de fino  humor, por parte de quem conhece bem o terreno! Instintivamente sou levado a contemplar a paisagem com que, nesta conjuntura coronovírica, os agentes da Fé se esforçam por implantar em tudo quanto se move uma logística repleta de sinais, gestos, ademanes vistosos, cruzeiros, cadeirais, incensos orientais, enfim, uma superabundante  sinalética com uma meta definida: anatematizar o Covid-19 e atirá-lo para bem longe, se possível ao fundo dos infernos. Escrito embora em 2012, cabe aqui o pensamento crítico de Mattoso: “O Ocidente não pode olhar para tudo isto sem recomendar a crítica e o discernimento. É preciso combater a magia, a superstição… definir critérios estéticos para banir o mau gosto, afastar o naif ou o kitsch que afectam a dignidade do culto… É um combate melindroso”.
Faço minhas estas palavras, não para maldizer, mas para alertar. Não há necessidade de recorrer a tantas e especiosas mèzinhas pias. Acho excedentário o uso e abuso de rituais espectaculares, de bênçãos trifacetadas, rasgadas aos ventos que passam. Jamais esquecerei aquele Fevereiro de 1967, quando na igreja da Amadora, finda a missa,  três militares apresentaram-me o estandarte  do Batalhão de Caçadores 1899, mobilizado para Moçambique, afim de benzê-lo com água benta. Em pleno altar recusei. No final, fui chamado ao Comando. Respondi: “O meu Deus não é um deus da guerra”. Recordo também que no Funchal do pós-25 de Abril, um bispo residente procedeu à cerimónia de inauguração e  bênção   do Casino, a roleta inclusive… A prova por excesso é tão frágil e tão má como a prova por defeito.
Retomo o velho brocardo latino: “”SANCTA SANCTE” – O Sagrado deve tratar-se de forma sagrada. Não excessiva nem exploratória.
Para os doentes, uma palavra de apoio e de conforto. Para os cientistas, investigadores, prestadores directos do serviço aos pacientes, dedicação, louvor, persistência, numa palavra, fé verdadeira!

17.Abr.20
Martins Júnior
  


quarta-feira, 15 de abril de 2020

O BEIJO NA CRUZ E A CRUZ DO VÍRUS – INTRODUÇÃO


                                                         

Público e notório foi aquele espectáculo, para uns comovente, para outros degradante, em que a directora de um Lar de Idosos passeia o crucifixo pelo salão principal e ‘atira’ a imagem aos lábios dos velhotes previamente alinhados para o efeito. Objectivo: o beijo. O caso deu que falar nas redes sociais e, inclusive, cai sob a alçada das instâncias judiciais. Não podemos ignorá-lo. E, por isso, suscitou uma avalanche de comentários, desde os mais fanáticos pró-beijo aos mais cortantes, mas sensatos, contra-beijo.
Seja qual o ângulo de visibilidade dos opinantes, é manifesto o afrontamento às mais elementares regras de saúde pública, mais a mais perante os rigorosos normativos emanados por quem de direito nesta conjuntura do Covid-19. Correndo o risco do desagrado particular, exporei também o meu parecer, convicto como estou que é meu dever fazê-lo, apoiado numa análise serena e no testemunho de pensadores ilustrados na matéria.
A quem concorda e a quem discorda, começarei pela lógica dos factos. “O erro também tem a sua lógica”, é um dos princípios gerais da filosofia. Achais, como eu, chocante e, a muitos títulos, abusivo o gesto da bem-intencionada  directora do Lar?...  Partamos então do vértice para a base, de cima para baixo, porque a luz, o exemplo vêm do alto:
1.     O Papa de Roma lançou, desde a basílica de São Pedro – despida de fiéis – a bênção Urbi et Orbi e, em plena Praça – plena mas, contraditoriamente, vazia – traçou a todos os continentes e regiões o sinal da cruz com a majestosa custódia pontifícia. Um gesto apreciado por todo o mundo cristão e católico.
2.     Vai daí, um bispo em Portugal amplia e ‘emenda’ a liturgia papal: num rasgo de encendrado clamor patriótico, comparável ao sacro fervor das Cruzadas medievais, arranca a custódia do altar da Sé Catedral e salta como um arcanjo libertador para o alto da ponte que domina duas cidades e, daí, corta os ares com o sinal da cruz na custódia de raios dardejantes sobre o rio e sobre os telhados contra o vírus fulminante. O espectáculo não surtiu efeito.
3.     Se um bispo assim congeminou e assim cumpriu seu sonho de taumaturgo do século XXI, por que não hão-de imitá-lo e até ultrapassá-lo os pastores de aldeia?... Decidido e feito! Ei-los por caminhos e vielas, de cruzes prateadas, coloridas de flores e alecrim, outros lá vão, sobressaltando estradas e vizinhanças, bandeiras rubras esvoaçando garbosas, a custódia dourada no tejadilho da viatura e a voz do pastor retinindo pela encosta. E o povo gosta! Sorrisos felizes, lábios murmurando preces, lágrimas curtidas  nas rugosas faces daquela idosa que, mais tarde, exclama: “Ah, eu senti uma coisa cá dentro quando vi passar o Divino Espírito Santo”. Referia-se às bandeiras brilhantes, tremulantes ao sol e ao vento.
4.     Os pastores sabem o que fazem, dispõem de uma especial baixela instrumental, trazem-na para a rua e fazem sucesso. O povo, porém, receptor e consumidor do menu ‘exemplar’ que vem de cima, não tem outro espólio senão o básico, o que consegue captar e pôr no terreno, em versão espontânea. É a chamada “religiosidade popular” que tem tanto de ingénuo e puro, como tem de empírico e  desviante. Nesta lógica descendente, que começa na cúpula, o Papa, e depois vai devotamente  divergindo pelas hierarquias intercalares, bispos e padres, pergunta-se: Que espanto há nisso que o povo faz e interpreta à sua maneira, usando sinais, mitos, símbolos, conceitos e preconceitos, superstições, enfim, o que tem à mão?... Para os idosos daquele Lar que melhor podia oferecer pela Páscoa a senhora directora senão o beijo no pequeno cruzeiro guarnecido de flores campestres?... Será idolátrico, anti-higiénico, doentio, fará mal? Não importa, a bênção de Jesus cura tudo…
Eis, em escala vertical, o processamento de muitas percepções de índole devocional que as nossas gentes professam. É a sua fé. Assumida, intocável. Analisada no “aqui e agora”, à luz da ciência e das aquisições colhidas na actual hermenêutica teológica, teremos nós autoridade e pedagogia suficientes para anatematizar ou sequer entulhar à valeta as diversas crenças da religiosidade popular?...
É o que tentarei decifrar no próximo escrito. Entretanto, porque o caso é muito sério, deixo aqui os emotivos alexandrinos do insuspeito Guerra Junqueiro, na sua “Velhice do Padre Eterno”:
“Oh velhos aldeões exaustos de fadiga
Que andais de sol a sol na terra a mourejar
Roubar-vos da vossa alma a vossa crença antiga
Seria como quem roubasse a uma mendiga
As três achas que leva à noite para o lar”.
   
 15.Abr.20
Martins Júnior




segunda-feira, 13 de abril de 2020

A QUEM SERVE A PÁSCOA DO ANO 33 ?


                                                     

Tal como o ventre da terra espera, no tempo certo, as amendoeiras em flor e a flor das cerejeiras, o lourejar das eiras e o som metálico no corte das vindimas, assim o povo espera a Páscoa e canta, faz repique e dobre do mar à serra: “Aleluia, Jesus ressuscitou, Viva Cristo Ressuscitado, Aleluia, Aleluia”!!!
É a evocação do ano “33”. E é também uma quase inadiável, necessária explosão orgânica do colectivo social, sobretudo aquele marcado pela educação civilizacional cristã do ocidente. Ano sem Páscoa é vazio, como terra sem Natal é terra ardida. Não fora esse Domingo memorável,  não teríamos a apoteose ascensional do “Halleluiah” de Frederic Haendel!
Mas são tão diversas as traduções evocativas do fenómeno. Há uma diferença abissal, estrondosa, entre o facto e a memória dele. Da narrativa bíblica, pouco mais a registar do que um silêncio mítico, um sigilo de pesada contenção sobre o assunto. Mesmo entre os amigos e militantes colaboradores do Mestre, então Ressuscitado, nada de espectacular, ninguém o alevantou aos ombros, nem o transportou até às portas da cidade de Jerusalém. Comparada com a ruidosa manifestação do Domingo de Ramos, o Domingo de Páscoa foi um zero absoluto.
No entanto, a  memória do facto é um tremendo contraste com a realidade, digamos que a cópia contradiz o original. Actualmente, a festa é “brava”, no sentido de que um vulcão de pujança e alegria incontidas remexe terra e mar, doura e embandeira a paisagem, percorre os templos, as ruas e avenidas até galgar as montanhas, numa manifestação da mais avassaladora publicidade.
Não haverá nada a inferir desta notória contradição?...
Atenho-me ao original, ao facto. Para o Nazareno, conhecedor profundo da psico-sociologia humana, o mais determinante – e o único móbil da sua Ressurreição – não era a revivescência da estatura física, o seu corpo saído do túmulo. Era outro. Consistia exclusivamente na ressurreição e/ou continuidade do seu ideário, a realização do seu programa, do sonho que trouxe ao mundo, pelo qual deu a vida, mas não conseguiu realizá-lo. Transformar o mundo, “renovar a face da terra”, enfim, salvar a humanidade. Ele, durante três penosos anos indicou o caminho: dignificar o Homem, formado “à sua imagem e semelhança”,  e colocá-lo na centralidade da história. Restituir-lhe a dignidade perdida.
Será, porventura, a meta dos grandes líderes e reformadores da humanidade: perpetuar a sua obra. Dos mestres, dos próprios pais, a maior glória não está no mausoléu que lhes constroem. Está nas mentalidades, nos discípulos, nos filhos, na construção do mundo novo com que eles sonharam e por que lutaram.
Ao nosso Mestre ressuscitado cantam-lhe hossanas e aleluias, há mais de dois mil anos. Já estará aturdido com tantos coros,  panegíricos altissonantes, arraiais sem conto. Apetecer-lhe-á perguntar: E vós… estais vós vivos ou mortos? …  Quando é que removereis do vosso lugar, do vosso país, do vosso planeta, a pedra tumular onde jaz tanta gente minha, tanto homem, tanta mulher, tanta criança, que ainda não viram a luz de uma manhã de Páscoa?... É aí que Eu quero ver-me ressuscitado!
“Estou farto das vossas festas, dos vossos incensos e  holocaustos” (Isaías, 1,11-14). “Desprezo e detesto as vossas assembleias solenes, os vossos cânticos e as melodias dos vossos instrumentos” (Amós, 5, 21-23).
Estas duas páginas, escritas embora séculos antes do fenómeno pascal, merecem ser lidas, pois ilustram no seu contexto o conteúdo da mensagem do Ressuscitado – um verdadeiro Grito de Vitória à justiça e à verdade, pedras basilares na construção de um mundo habitável, saudável e salvável, no sentido holístico desta expressão.
De que teria servido a Ressurreição de Cristo se  não nos movesse a vivermos atentos, vigilantes, ressuscitados? Na hora presente, perante a morte iminente com que nos ameaça a pandemia - palmas, cânticos, homenagens e força a todos aqueles que promovem a verdadeira Páscoa no serviço às vítimas do Covid-19!  
Parafraseando Paulo Apóstolo – “Se Cristo não ressuscitou é vã a nossa fé” – ousarei acrescentar: Se cada um de nós e se a sociedade global não ressuscitar um pouco  em cada dia que passa, então foi vã a ressurreição de Cristo. Páscoa será o 25 de Abril! Páscoa será também o 1º de Maio!
Foi ainda nesta perspectiva que escrevi o poema do último ‘blog’ e foi no mesmo objectivo que encimámos no nosso templo o anúncio da primavera libertadora:

RESSUSCITOU
NÃO ESTÁ AQUI
ESTÁ EM TI

13.Abr.20
Martins Júnior

sábado, 11 de abril de 2020

PARA QUE NÃO SEJA VÃ MAIS UMA PÁSCOA…


                              

Porque hoje é sábado e noite dos regressos
tragam-me  pá e  enxada para exumar
quantos amei

E onde acharei
asas d’águia para agarrar
as cinzas várias que o fumo branco
levou em rolos de saudade mundo além?

Só sei que amanhã domingo
será sempre sábado
e por muito que espere e desespere
será sempre o mesmo sábado
e a mesma noite sem regressos

Mas sei também que enxada
e pá e asas d’águia estão dentro de mim
e dentro de mim moram os crânios, as veias, o lume novo
das cinzas devolutas e das valas
que em vão demando e chamo à vida

Dois mil e mais
Aleluias pascais
Cansas de ouvir cantar-te ó bravo Nazareno
Cantam-te os vivos-mortos e os mortos-vivos
Cantam-te já os longínquos  nascituros
No embalado seu berço sereno

Mas se em mim não houver
pá e enxada e asas
nunca haverá domingo redivivo
e será escura e vã
a tua apolínea manhã
de repetida Páscoa sem futuro

11.Abr.20
Martins Júnior