Não
entra na composição nem na solução do Convid-19.
Mas intromete-se nele, ou antes, as instituições intrometeram-no lá, via fragilidade
formativa ou manifesta impotência das eventuais vítimas. Trata-se daquele
estado de espírito, imenso e diferenciado, a que chamamos Fé e seus derivados,
como milagre, devocionismo e crença, a qual, levada ao extremo, transforma-se
em crendice, superstição e mito. Nalguns casos, como observámos no ‘blog’
anterior, chega a raiar autênticos atentados à saúde pública. Vimo-lo no
aludido ‘beija-cruz’ dos utentes num determinado Lar da Terceira Idade.
Considerada
e até consentida a idiossincrasia dos idosos crentes no efeito supostamente
curativo ou profilático do ‘beija-cruz’ (a mesma desculpa, presume-se, não
merecem os seus promotores) cumpre agora analisar friamente (mas seriamente!) a
contextura de toda uma liturgia paralela ao esforço denodado dos profissionais,
cuidadores, operacionais da saúde. É útil e é saudável “ver” a relação entre
ciência e religiosidade, não só no segmento Covid-19
mas em muitos outros contextos da vida em sociedade.
Entram
neste exercício quatro elementos indissociáveis: Religião-Deus, Fé do utente,
Logística ou Sinalética do agente e Conhecimento do cientista-analista. O veio
motor desta quadratura costuma denominar-se pelo genérico “Milagre” e é nele e
por ele que toma corpo toda a ansiedade do crente-milagrado.
No
tocante à relação entre Deus e o Milagre, considerado este como alteração ao
ritmo normal da Natura (as leis naturais) dizem os teólogos que “um deus que
actuasse empiricamente no emaranhado
tecido do mundo seria forçosamente classificado como mais uma entre as causas ‘mundanas’
e, portanto, colocar Deus no lugar de uma causalidade intramundana acabaria por
negá-lo, porque então já não seria Deus, mas um ídolo” ((Andrés Torres Queiruga,
Repensar o Mal). Na mesma linha, o
Prof. Anselmo Borges : “Um Deus intervencionista implica ateísmo”. Barry Witney define, em síntese esclarecedora: “Esperar
que Deus intervenha de maneira intermitente
para curar algumas enfermidades
em particular ou para prevenir alguns desastres
parece ser uma questão de pura arbitrariedade”. Ao belíssimo axioma “Nada é
milagre e tudo é milagre”, o famoso teólogo Herbert Haag acrescenta que, entre
os hebreus, “todo o acontecimento no qual Iavé manifestava a sua força e poder,
ainda que fosse ‘só’ o nascer ou pôr do
sol, era entendido pelas pessoas como sinal divino que exigia a fé”.
Numa
linguagem relacional, se Deus é o emissor, o crente é o receptor. É neste que
são recebidos e interpretados os “sinais” de que falam os hermeneutas bíblicos.
E é aqui que reside a complexidade do chamado mundo da Fé. Em toda a história e em
todo o planeta, há tantas “Fés” quantas as mentalidades, as aprendizagens, os
ambientes, as catequeses, numa palavra, a educação. Acerca da Fé e do Crente
pode adequar-se o princípio de Ortega Y Gasset - o Crente é aquilo que é, mais
a sua circunstância. Daí o imenso e meticuloso respeito pela pessoa, seja qual
for a sua Fé. Ela radica no mais íntimo do seu ser. Ainda que não se compagine
com a minha, eu tenho de respeitar a sua Fé, ainda que me pareça errada. No
entanto (já o escrevi neste mesmo lugar) o Líder e Mestre Jesus de Nazaré,
mesmo quando fazia ‘milagres’, apelava para a consciência e para a força
anímica do impetrante, exigia a sua colaboração activa. Neste âmbito, tem
interesse consultar “A Psicanálise dos Evangelhos” de Françoise Dolto/Gérard
Severin. Apraz-me também transcrever do livro “Fonte de Vida” de Henri Le
Boursecaud o veredicto de um grande pensador, Jean Vannier: “O homem deve crer
em si próprio, corresponder a esta fé de maneira positiva, acreditar numa
evolução singular, única, do seu ser, tão misteriosa nas suas possibilidades
como na sua singularidade”.
É neste
húmus resvaladiço que se desenha o meio ecológico perfeito para que os agentes
promotores da Fé lancem a semente das suas mensagens e arvorem os símbolos mais
convincentes, mas sempre em consonância com a “psico-sociologia das massas” receptoras. Não resisto à judiciosa observação
do historiador José Mattoso: “Elas, as religiões, traçam a geografia do
invisível, constroem teorias, estabelecem hierarquias celestes e terrestres,
criam dogmas e definem crenças, prescrevem regras morais e prevêem sanções,
explicam o inexplicável… Inventam símbolos, formulários, orações, trajes,
objectos sagrados, espaços interditos.
Comandam estilos, gostos, sons, diferenças. Condenam-se umas às outras, criam
estratégias de combate, de expansão e reprodução” (in “Levantar
o Céu – Os labirintos da Sabedoria”).
Sábia
e concreta análise, a que não falta um traço de fino humor, por parte de quem conhece bem o
terreno! Instintivamente sou levado a contemplar a paisagem com que, nesta
conjuntura coronovírica, os agentes da Fé se esforçam por implantar em tudo
quanto se move uma logística repleta de sinais, gestos, ademanes vistosos,
cruzeiros, cadeirais, incensos orientais, enfim, uma superabundante sinalética com uma meta definida:
anatematizar o Covid-19 e atirá-lo para
bem longe, se possível ao fundo dos infernos. Escrito embora em 2012, cabe aqui
o pensamento crítico de Mattoso: “O Ocidente não pode olhar para tudo isto sem
recomendar a crítica e o discernimento. É preciso combater a magia, a superstição…
definir critérios estéticos para banir o mau gosto, afastar o naif ou o kitsch que afectam a dignidade do culto… É um combate melindroso”.
Faço
minhas estas palavras, não para maldizer, mas para alertar. Não há necessidade
de recorrer a tantas e especiosas mèzinhas
pias. Acho excedentário o uso e abuso de rituais espectaculares, de bênçãos
trifacetadas, rasgadas aos ventos que passam. Jamais esquecerei aquele
Fevereiro de 1967, quando na igreja da Amadora, finda a missa, três militares apresentaram-me o estandarte do
Batalhão de Caçadores 1899, mobilizado para Moçambique, afim de benzê-lo com
água benta. Em pleno altar recusei. No final, fui chamado ao Comando. Respondi:
“O meu Deus não é um deus da guerra”. Recordo também que no Funchal do pós-25 de
Abril, um bispo residente procedeu à cerimónia de inauguração e bênção do
Casino, a roleta inclusive… A prova por excesso é tão frágil e tão má como a
prova por defeito.
Retomo
o velho brocardo latino: “”SANCTA SANCTE”
– O Sagrado deve tratar-se de forma sagrada. Não excessiva nem
exploratória.
Para
os doentes, uma palavra de apoio e de conforto. Para os cientistas, investigadores,
prestadores directos do serviço aos pacientes, dedicação, louvor, persistência,
numa palavra, fé verdadeira!
17.Abr.20
Martins Júnior
.....SÚPER CORRECTO.... O PADRE ABEL AUGUSTO DA SILVA JÁ ENSINAVA ISSO....E, MAIS! DIZIA QUE A GRANDE EPIDEMIA CHEGARIA E DEVERIA SER A FALTA DE ALIMENTOS....ACTUALMENTE SÓ EXISTEM 4 PAÍSES EXPORTADORES DE ALIMENTOS E, COM ESTA DESORGANIZAÇÃO QUE VAI POR AÍ, FALTA DE ÁGUA ETC.... COMO SERÁ O MUNDO PÓS-VIRUS? OU UMA FESTA DE ARROMBA COM BANDEIRAS E FOGUETES, REGADA A VINHO E CARNE DE ESPETADA IRÁ AFUGENTAR TODAS AS MALEITAS? (O QUE AS VACAS T~E A DIZER DESSE REGA-BOFE?)
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