Em
cinzas dorme a couraça do guerreiro.
Só
a couraça, porque o resto (e o resto é tudo!) não ficou nas cinzas, crepita e
canta no braseiro que nunca se extingue.
Amândio Silva – 82 anos. Toca-me, invade-me, projecta-me.
Sem nunca nos cruzarmos na vida, agora
reconheço que somos vidas cruzadas. Abria a década de 60 do século XX. E enquanto
eu subia os degraus da Sé do Funchal para começar a servir uma Igreja que subservia
o fascismo de Salazar (tão ingénuos que nós éramos) o jovem Amândio alçava-se aos céus da lusa
nação no famoso avião ‘Super-Constellation’ (desviado entre Casablanca e Lisboa)
para, com outros cinco corajosos patriotas, lançar um grito de alarme (mais
um!) contra o regime totalitário do
ditador que, não satisfeito em esmagar o “Bom Povo” na metrópole, enviava para
o matadouro da guerra colonial o sangue novo de Portugal.
Já antes, em 1959, Amândio da Conceição
Silva perfilara-se na histórica “Revolta da Sé Patriarcal de Lisboa”, solidário
com o movimento de sublevação anti-salazarista, convocado por católicos
inconformados com a situação do país e contra o manifesto colaboracionismo do
Cardial Cerejeira.
Sem nunca o ter encontrado na vida, os
nossos caminhos entrecruzaram-se nas rotas de um ideário libertador. Tentei seguir
as mesmas pegadas, ainda que não lhes conhecesse o autor, tal como se abraçam
no pleno da luta todos aqueles que, perto ou longe, sonham com um mundo melhor,
a “Casa Comum”, aberta a todos e por todos igualitariamente respirável.
E um dia chegou – 27 de Abril de 2019 –
uma multidão de ‘íntimos desconhecidos’ em frente dos fatídicos portões da cadeia de
Caxias! A festa não podia ser maior: toda aquela gente estava ali para
comemorar os 45 anos da Liberdade, aquela manhã memorável em que eles, os
mesmos ali presentes, tinham alcançado o Dia Novo pelo qual tanto haviam
sonhado, lutado, sofrido. Um deles: Amândio da Conceição Silva!
Inesquecível, avassalador, sublime foi ver
abrirem-se os portões verde-escuro e logo irromperem em alvoroço 45 crianças,
de cravos em punho, gritando “Liberdade, Liberdade”! Eram netos saindo dos
escombros onde os avós aprisionados ganharam essa mesma Liberdade.
Nunca exaltaremos suficientemente o
nome e a memória daqueles que expuseram o peito às balas da ditadura e
afrontaram os monstros da opressão. “Não viemos do nada – dizia-me hoje, de
longe, essoutro sonoro construtor de uma “Terra Prometida”, outra “Jerusalém” -
Francisco Fanhais. “Antes de nós, outros deitaram raízes e regaram-nas com
muito sofrimento e muita luta”.
Esquecê-los é anularmo-nos a nós
próprios. É com eles que libertamos os inocentes condenados pelo império da
força. Precisamos hoje e sempre dessa couraça
de heróis para arrancar de todas as cadeias todos os Navalny’s que ainda jazem
neste planeta.
Amândio Conceição Silva:
A
teu lado, em Caxias Libertada e na Vida que te chama a toda a hora!
03.Fev.21
Martins
Júnior
.....Como sempre, uma prosa incisiva, especial....mas, ao derrubar o Salazar havia algum plano consistente que desse dignidade ao povo? Foram delegados para isso ou não passava de basófia?
ResponderEliminar.....Como sempre, uma prosa incisiva, especial....mas, ao derrubar o Salazar havia algum plano consistente que desse dignidade ao povo? Foram delegados para isso ou não passava de basófia?
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