Vale
a pena voltar ao LIVRO, neste início da semana. O caso passou-se há quase três
milénios, século VIII a.C.. E o mais
incisivo e surpreendente é que parece ter acontecido ontem. Hoje. Amanhã,
enquanto houver mundo para andar.
Vem tudo descrito no testemunho de
Amós, pastor de gado, agricultor e profeta. Devo confessar que esta é, para
mim, uma das páginas mais eloquentes do LIVRO e muito me agradaria sublinhar a
narrativa bíblica com palavras minhas, ardentes, apaixonadas. Porque é aí, em
Amós, que radica e explode a contradição insanável entre a religião fabricada
pelos homens e a religião autêntica, irmã gémea da espiritualidade, abrangente,
totalizante, civilizacional.
No entanto, prescindo do meu comentário
e, para neutralizar eventuais remoques individuais, vou transcrever (com a
devida vénia e maior apreço) a interpretação do teólogo e biblista Fernando
Armellini, na sua obra “O Banquete da
Palavra”, Paulinas Editora, 7ª edição, 2017, págs. 409-411:
“Um
dia, um homem rude chega a Betel, local onde se encontra o mais importante dos
templos mandados construir pelo rei Jeroboão II. O homem tem o rosto queimado
pelo sol porque passa a vida ao ar livre, pastoreando rebanhos e cultivando os
campos. Chama-se Amós, o pastor de Técua, pequena cidade situada a quinze
quilómetros a sul de Belém.
Em
vez de se alegrar com a prosperidade reinante por todo o lado, ele começa a
invectivar o rei, ataca a prática religiosa, as classes dirigentes, os
proprietários de terras, senhorios, comerciantes. O bem-estar ficou limitado a
alguns privilegiados e é pago a caro preço pelos pobres do país. Os ricos
ostentam o luxo mais descarado, possuem “Residências de Inverno e Residências
de Verão” palácios de marfim, grandes casas, fazem banquetes, passam a vida de
festa em festa.
De
onde provém a riqueza que esbanjam em farras? … É fruto da opressão e da
exploração de assalariados e camponeses indefesos. Oprimem e maltratam,
recorrem a fraudes legalizadas, falsificam as balanças, estabelecem a seu bel-prazer os preços dos
produtos e compram o pobre por um par de sandálias.
Não
escapam às críticas as mulheres, as “grandes senhoras” que se abandonam à
devassidão, nem mesmo os juízes que convertem o direito em absinto e deitam por
terra a justiça e esmagam o pobre, obrigando-o a pagar impostos injustos sobre
a colheita do trigo.
E
a prática religiosa fervorosa?... É uma mentira, é apenas aparência, exterioridade,
espectáculo. A Deus e para Deus repugnam as orações, o culto, o incenso e os
holocaustos, se não se acaba com as desigualdades escandalosas, os roubos e as
violências.
Ora,
perante as denúncias de Amós, o Sumo Sacerdote judaico de Betel fica melindrado e preocupado. Ele teme a
reação de Jeroboão II. Para calar o pastor de Técua, o Sumo Sacerdote de Betel
começa por denunciá-lo ao rei e depois enfrenta-o directamente: ‘Vê como falas,
estás no santuário do soberano, este é o templo do reino. Vai pregar para a tua
terra, se queres evitar riscos.
Ofendido,
Amós rebate: ‘Eu não sou profeta de profissão, não pertença à categoria
daqueles “capelães da corte” que, como tu, são pagos pelo soberano. Não defendo
interesses pessoais e, para ganhar a vida, não preciso de agradar a alguém. Sou
pastor e cultivo os campos e sei ganhar o que preciso para viver. Quanto ao
rei, o principal responsável por esta sociedade corrupta, terá esta sorte: ‘Morrerá
pela espada, o reino de Israel será deportado para longe da sua terra e, assim,
terminará esse bando de voluptuosos”.
Foi
longa a citação, mas muito mais vastas são as conclusões, os paralelos, as
coincidências.
Jeroboão construía os templos e oferecia-os
aos dignitários religiosos, pagava o salário aos funcionários sacerdotes e
subvencionava a manutenção do culto. Por servir a religião… ou para servir-se
dela?!...
Onde é que já vimos isto?... Há 2800
anos?!... Há 1000?!... Há 500?!...Há 100, há 50, há 40 anos?!... Talvez ontem,
hoje, aqui e agora!
Sempre a armadilha dos poderosos: dar o
gancho à religião para, depois, controlá-la, comprá-la, manietá-la nos seus
servidores, caçando e expulsando os que, como o Profeta Amós, denunciam a real
situação das populações. Poderia aqui deixar uma mancheia de vítimas dos
poderosos, em todos os reinos, em todos os continentes e aqui mesmo na Ilha. Não
tenho a menor dúvida – já o provei no último blog – de que a ‘nossa’
(deles) autonomia é fruto incestuoso desta açambarcadora aliança entre poder
religioso e poder político.
Encosto o meu cérebro ao coração generoso
e aguerrido do Profeta Amós e concluo com aqueles que acharem por bem
acompanhar-me nesta evidência do quotidiano:
a Religião-Instituição destrói a religião-emanação do Espírito e da Vida. A
religião formal, artificial, destrói a
religião natural, inata na alma humana.
Grande incógnita e tremenda introspeção
para os líderes de todas as religiões!
11.Jul.21
Martins
Júnior
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