quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

62 ANOS DE SAUDADE E 36 QUARTOS PARA UM SÓ INQUILINO – A DESERTIFICAÇÃO NA IGREJA


                                                         

Tem aquele gostinho agridoce da saudade e, no mesmo travo, um fio de fel da desilusão escorrendo pelos 34 degraus das escadas do velho Hotel Bela Vista, à Rua do Jasmineiro, Funchal.
Será amanhã o último dia das Jornadas da Actualização do Clero realizadas no Seminário Maior do Funchal. Quanto aos conteúdos - em que participam elementos da Igreja e personalidades da vida social e política regional -  dispenso-me de comentá-los, por hoje. Fixo-me apenas na contemplação daquela velha casa, onde se formaram centenas, talvez milhares, de jovens madeirenses que hoje ocupam lugares de charneira no panorama regional, uns como padres diocesanos, outros nas mais diversas esferas  profissionais e institucionais.
O edifício amplo e de excelente implantação numa zona privilegiada da capital, servido pela envolvente de árvores seculares, desfrutando de uma soberba captação do corpo e da baía da cidade, foi adquirido pela Diocese nos finais da década de 50 do século passado. Até aí, tinha sido uma das mais cobiçadas unidades  hoteleiras da Madeira.
A partir de 1958, instalaram-se os programas e respectiva logística dos Cursos de Filosofia e Teologia do Seminário Maior do Funchal, fase imediatamente mais próxima da Ordenação Presbiteral,  Pertenci ao grupo instalador, isto é, aos alunos de Teologia, que “inauguraram” o prédio. Era uma casa senhorial, a um tempo recatada e buliçosa, amena e dinâmica, onde, além dos estudos clássicos, desenvolveram-se iniciativas culturais de meritória craveira, quer no desporto, na música, no teatro. Lembro-me de termos representado, entre outras, a céu aberto por entre as vetustas árvores de cânfora, as cenas do poema “Finis Patriae”, de Guerra Junqueiro. Memoráveis eram também os “Fogos de Conselho” encenados pelos Agrupamentos do Corpo Nacional de Escutas da Madeira. Em suma, uma mansão de gratas recordações!
Para curtir as saudades, subi os 34 degraus que levavam ao quarto nº 33, onde fui inquilino durante quatro anos. Lobriguei, ainda, as dependências contíguas: uma sala desafogada, um guarda-fato, uma mesa de trabalho, uma pequena estante, uma cama e um lavatório. Ocorreu-me à lembrança o poema “Colegial” de José Régio - “Esta mesa onde estudo e me estudo”… Tudo na mesma. Com uma diferença: Tudo vazio! Perguntei a um dos padres dirigentes o porquê daqueles “desertos” (que eram antigamente “oásis” vívidos) e a resposta saiu espontânea: “Sabe, é que só temos um aluno aqui no Seminário”!
Uma mágoa indescritível. Pese embora a circunstância de haver cerca de 8 a 10 jovens madeirenses candidatos ao sacerdócio na Universidade Católica de Lisboa, o certo é que pesa muito mais ver 35 quartos vazios e apenas 1, ao serviço do aluno único daquela casa. Proporcionalmente, o Seminário tem o dobro de reitores: dois reitores para um só aluno. Paradoxal!
                                                     

Tarefa ingente e não menos inquietante para o recente Prelado que recebeu das mãos dos seus três antecessores uma paupérrima herança, a que se junta um outro monumental edifício, o Seminário Menor, em Santa Luzia, hoje a desfazer-se irremediavelmente!  Quem, como eu,  ali viveu oito anos ininterruptos, não consegue ficar de olhos enxutos perante tamanha degradação. Para mim, considero que a subserviência dos bispos pós-25 de Abril/74 à política governativa regional (em troca de igrejas e casas paroquiais construídas pelo governo) arrastou a Dioceses para o desprezo daquilo que lhe pertencia. Não só o património construído, mas (pior!) o depauperamento da autêntica vivência cristã, espelhada agora na tremenda desertificação vocacional. Não será, sem dúvida, a única causa da presente situação, mas seríamos nós ingénuos se não a contássemos, entre outras.
…”Melhor fora que a mandassem pràs alminhas”… Não direi o mesmo que a Amália disse da “casa de penhores”.  Mas que é um caso – pesado, espinhoso, intrigante – para o bispo e para a Diocese (o Povo Católico da Madeira), lá isso é! Quem ajuda a resolvê-lo?

23.Jan.20
Martins Júnior


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