terça-feira, 7 de janeiro de 2020

A GLÓRIA E O DRAMA DE CADA “NOVO ANO JUDICIAL”


                                                    

É sempre de uma sumptuosidade quase esmagadora a abertura de um “Novo Ano Judicial”. A de ontem, porém, revestiu-se de uma magnitude singular por haver-se realizado no histórico e majestoso Palácio da Ajuda, sede oficial da ‘entronização’ do Supremo Magistrado da Nação. O cenário, com ser belo e sublimado na cor do meio e na aura dos ‘convivas’, nem por isso deixa de ser pesado e taciturno, de ‘cortar à faca’ (em linguagem plebeia), tanto no passo grave dos titulares da Justiça ao subir a escadaria como na negritude das togas forenses que cobriam por inteiro o salão, apenas salpicadas pelas alvíssimas cãs dos venerandos desembargadores e conselheiros.
         Não menos enfáticos e grandíloquos foram os discursos proferidos, desde os representativos do poder judicial aos do poder político, todos em uníssono proclamando a dignidade da magistratura, a premente disponibilidade dos funcionários, a urgente necessidade de recursos materiais e humanos, enfim, o prestígio e a defesa dos maiores pilares da sociedade, a Justiça e a Paz, sendo que aquela precede sempre a segunda. Não obstante a imponência do ritual, ficou à vista a denúncia da vasta criminalidade que, ao mesmo tempo que enche os tribunais, esvazia os valores que sustentam os povos e, no limite, os destroem. Momentos de tremenda carga social e psicológica aqueles que ontem se viveram naquele “salão dourado, de ambiente nobre e sério”, não nos Paços da Rainha, mas no Palácio da Ajuda. O discurso do Presidente da República espelhou, solene e veemente, a grandeza daquela hora e, em contra-luz, o deprimente cortejo das misérias sociais, percebendo-se nas entrelinhas que é ali “naquele salão dourado, de ambiente nobre e sério” e na barra dos tribunais que desaguam os detritos das sociedades, dos bairros insalubres, dos paióis dos traficantes do papel sonante, da carne humana e da mais elementar consciência cívica. Nobilíssima a missão dos juízes e profissionais da Justiça, mas ao mesmo tempo tarefa tão chocante e arrepiante como a do médico legista no laboratório de autópsias.
         De repente, naquelas paredes acolchoadas vi resíduos de favelas onde se acoitam crianças e jovens, potenciais criminosos e candidatos ao banco dos réus; vi lares desavindos manchados de sangue pelos machados da violência doméstica; sob a escuridão daquelas capas negras subentendi a noite má conselheira onde se praticam crimes inomináveis que vão cair depois às mãos dos julgadores.
                                                          

E concluí que não é por ali que começa a transformação da sociedade. Fica mais longe, muito longe daquele salão a chave que abre o grande portão da Justiça e da Paz… Entrando numa das salas do Centro Cívico-Cultural e Social da Ribeira Seca, vejo a psicóloga perante um grupo de crianças, todas entusiasmadas a desenhar uma mão aberta. A psicóloga pergunta: “Meninos, para que servem as mãos? Para bater? Não, respondem os petizes. Então para que servem?... Para ajudar, abraçar, escrever pintar, comer, trabalhar e fazer coisas boas. Não são para bater em ninguém. E as crianças pacientemente transcrevem com a mãozinha trémula a lição do dia.
No grande rio da história, a solene abertura dos “Anos Judiciais” fica a jusante da corrente. Antes dele, do Poder Judicial, muito a montante fica o Poder da Vontade, o berço rural ou urbano, a escola do bairro, a oficina, a educação do amor e do sexo, o respeito pelo vizinho ou companheiro e pelos seus haveres, a motivação para a partilha. Antes do juiz ficam o pai e a mãe, o professor, o colega, o ambiente, o salário justo, a saudável apetência de viver.
Saudando e desejando bons augúrios para o cerimonial ontem realizado no Palácio da Ajuda, sempre se há-de concluir por este Acórdão Global: Um só dia do programa a montante poderia suspender muito ritual a jusante. Em outra redacção: Muitos dias ou toda a vida de Educação  evitariam muitos ou todos os Anos Judiciais. Guerra Junqueiro, já no século XIX, propunha e sancionava como Supremo o “Tribunal da Consciência”!                                                                                                                        
07.Jan.20
Martins Júnior

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