É
sempre de uma sumptuosidade quase esmagadora a abertura de um “Novo Ano
Judicial”. A de ontem, porém, revestiu-se de uma magnitude singular por haver-se
realizado no histórico e majestoso Palácio da Ajuda, sede oficial da ‘entronização’
do Supremo Magistrado da Nação. O cenário, com ser belo e sublimado na cor do
meio e na aura dos ‘convivas’, nem por isso deixa de ser pesado e taciturno, de
‘cortar à faca’ (em linguagem plebeia), tanto no passo grave dos titulares da
Justiça ao subir a escadaria como na negritude das togas forenses que cobriam
por inteiro o salão, apenas salpicadas pelas alvíssimas cãs dos venerandos
desembargadores e conselheiros.
Não menos enfáticos e grandíloquos foram
os discursos proferidos, desde os representativos do poder judicial aos do poder
político, todos em uníssono proclamando a dignidade da magistratura, a premente
disponibilidade dos funcionários, a urgente necessidade de recursos materiais e
humanos, enfim, o prestígio e a defesa dos maiores pilares da sociedade, a Justiça
e a Paz, sendo que aquela precede sempre a segunda. Não obstante a imponência
do ritual, ficou à vista a denúncia da vasta criminalidade que, ao mesmo tempo
que enche os tribunais, esvazia os valores que sustentam os povos e, no limite,
os destroem. Momentos de tremenda carga social e psicológica aqueles que ontem
se viveram naquele “salão dourado, de ambiente nobre e sério”, não nos Paços da
Rainha, mas no Palácio da Ajuda. O discurso do Presidente da República espelhou,
solene e veemente, a grandeza daquela hora e, em contra-luz, o deprimente
cortejo das misérias sociais, percebendo-se nas entrelinhas que é ali “naquele
salão dourado, de ambiente nobre e sério” e na barra dos tribunais que desaguam
os detritos das sociedades, dos bairros insalubres, dos paióis dos traficantes
do papel sonante, da carne humana e da mais elementar consciência cívica. Nobilíssima
a missão dos juízes e profissionais da Justiça, mas ao mesmo tempo tarefa tão
chocante e arrepiante como a do médico legista no laboratório de autópsias.
De repente, naquelas paredes
acolchoadas vi resíduos de favelas onde se acoitam crianças e jovens,
potenciais criminosos e candidatos ao banco dos réus; vi lares desavindos
manchados de sangue pelos machados da violência doméstica; sob a escuridão
daquelas capas negras subentendi a noite má conselheira onde se praticam crimes
inomináveis que vão cair depois às mãos dos julgadores.
E
concluí que não é por ali que começa a transformação da sociedade. Fica mais
longe, muito longe daquele salão a chave que abre o grande portão da Justiça e
da Paz… Entrando numa das salas do Centro Cívico-Cultural e Social da Ribeira
Seca, vejo a psicóloga perante um grupo de crianças, todas entusiasmadas a
desenhar uma mão aberta. A psicóloga pergunta: “Meninos, para que servem as
mãos? Para bater? Não, respondem os petizes. Então para que servem?... Para
ajudar, abraçar, escrever pintar, comer, trabalhar e fazer coisas boas. Não são para bater em ninguém. E as
crianças pacientemente transcrevem com a mãozinha trémula a lição do dia.
No
grande rio da história, a solene abertura dos “Anos Judiciais” fica a jusante da
corrente. Antes dele, do Poder Judicial, muito a montante fica o Poder da
Vontade, o berço rural ou urbano, a escola do bairro, a oficina, a educação do
amor e do sexo, o respeito pelo vizinho ou companheiro e pelos seus haveres, a
motivação para a partilha. Antes do juiz ficam o pai e a mãe, o professor, o
colega, o ambiente, o salário justo, a saudável apetência de viver.
Saudando
e desejando bons augúrios para o cerimonial ontem realizado no Palácio da Ajuda,
sempre se há-de concluir por este Acórdão Global: Um só dia do programa a
montante poderia suspender muito ritual a jusante. Em outra redacção: Muitos
dias ou toda a vida de Educação evitariam muitos ou todos os Anos Judiciais.
Guerra Junqueiro, já no século XIX, propunha e sancionava como Supremo o “Tribunal
da Consciência”!
07.Jan.20
Martins Júnior
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