domingo, 5 de janeiro de 2020

UM OUTRO “CANTAR DOS REIS”


                                                      

Enquanto escrevo, ecoam pelos vales sombrios da noite as mais eufóricas loas aos Magos de outrora, repetindo em múltiplas variantes que  “Vós sabíeis e vós bem sabeis que é do dia cinco para o dia seis que se canta o Reis”. E consabido é também o perfume a incenso com que se venera a chegada sincronizada dos Três Magos do Oriente à gruta de Belém ou, com mais fidelidade histórica,  à “casa”  do Menino e sua Mãe, na cidade de Nazaré, tudo envolvido em crepes de misticismo profético, divinatório.
Ouso, porém, (e não serei o único, por certo) mergulhar em toda a literatura profética, sobretudo no grande taumaturgo das promessas futuras,  o eloquente Isaías, e aí lobrigar aquela vocação apoteótica, congénita a todos os povos marcados pelo nacionalismo patriótico exacerbado: a vocação expansionista, tendo por meta final a ascensão ao trono imperial, dominador de todas as outras nações e etnias.
Com efeito, o sonho imperialista atravessa os genes de todos os regimes tendencialmente hegemónicos, desde a mais remota antiguidade: Suméria, Caldeia, Atenas, a Roma Imperial, enfim, toda a Europa, com as alianças mais espúrias e oportunistas, o Sacro Império Romano-Germânico. Mais recentemente, o Império das URSS’s e o terror maquiavélico do hitlerianismo açambarcador do mundo civilizado, pela destruição da nomenclatura judaica. Actualmente, sob outras roupagens, a galopante ‘invasão’ da China, o poderio intercontinental de Moscovo e, acima de todos, o auto-proclamado Super-Império tump-americano, no sofreguidão paranóica de fazer tremer o Planeta sob as botas cardadas do “maior potencial militar do mundo” – em todos é o vírus da supremacia político-económica que os move.
E mais sintomático e paradoxal, ainda, é constatar que o vírus ataca de forma crua e cega os países pequenos quando lhes chega o cheiro catalisador dessa ambição. Portugal está na frente. Um país periférico, sem recursos, uma vez catapultado para a vanguarda dos Descobrimentos, assentou arraiais nos confins do Mundo e no topo geodésico da Terra arvorou trono e bandeira do Império Português. Luís Vaz de Camões bem pode figurar no galarim da aristocracia patriótica, ao lado de Isaías, mutatis mutandis, ao colocar no discurso de Vénus e Júpiter as façanhas futuras dos nautas lusos, com o Gama e seus heróis à proa da ‘rosa dos ventos’.
De volta aos “Reis do Dia Seis”, os termos em que os Anais do Povo Judaico se lhes referem em pouco ou nada se distanciam dos discursos proclamatórios  comuns à linguagem épica de outros povos e seus heróis. Abramos o seu maior intérprete, Isaías Profeta, cap.60-61:
Levanta-te, Jerusalém, resplandece. Chegou a tua luz. Olha em teu redor: a noite cobre a terra e a escuridão todos os outros povos, mas sobre ti brilha a luz. As nações caminharão no rasto da tua luz e os reis no esplendor da tua aurora. A ti afluirão as riquezas do mar longínquo  e a ti virão os tesouros das nações. Serás invadida por uma multidão de camelos e dromedários de Madiã e Efá. Os reis de Sabá virão trazer-te ouro e incenso…  Os reis da terra servir-te-ão. A nação ou o rei que recusar servir-te morrerá, o seu país será destruído…  Do menor nascerá uma tribo e do mais pequeno uma nação poderosa…
Extensas e numerosas são as citações bíblicas representativas de um povo montanhês, de gente nómada e quase sempre derrotada nas repetidas escaramuças em que se envolvia com os territórios fronteiriços. Um anseio profundo, veemente pulsava no sangue das sucessivas gerações, um apelo genético à libertação e, daí, ao domínio sobre os outros povos. As referências a um Messias libertador vinham sempre consubstanciadas com a aparição de um líder poderoso, capaz de arrancar da opressão um povo sofrido que, ao longo de séculos, fizera um percurso entre espinhos e abrolhos. Era aos profetas entregue pela população o nobre estatuto de semear luz na escuridão e alavancar no coração deprimido de cada geração a chama da esperança, mesmo que ilusória, num mundo melhor, num País Novo, “onde corressem o leite e o mel”.
Em conclusão: fazer assentar nos textos vetero-testamentários  acerca da visita dos (impropriamente) Reis, apenas e só, um misticismo potenciador do fenómeno divino-messiânico, poderá configurar uma interpretação duvidosamente extensiva do acontecimento, visto que o animus inspirador desses mesmos textos não se confina a uma exclusiva e pura espiritualidade, mas vem misturado com propósitos colhidos nas aras da emancipação social e do mais radical patriotismo.
À consideração superior – dos biblistas e dos investigadores sérios.

05-06.Jan.20
Martins Júnior   
                                       

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