Enquanto
escrevo, ecoam pelos vales sombrios da noite as mais eufóricas loas aos Magos
de outrora, repetindo em múltiplas variantes que “Vós sabíeis e vós bem sabeis que é do dia
cinco para o dia seis que se canta o
Reis”. E consabido é também o perfume a incenso com que se venera a chegada
sincronizada dos Três Magos do Oriente à gruta de Belém ou, com mais fidelidade
histórica, à “casa” do Menino e sua Mãe, na cidade de Nazaré, tudo
envolvido em crepes de misticismo profético, divinatório.
Ouso,
porém, (e não serei o único, por certo) mergulhar em toda a literatura
profética, sobretudo no grande taumaturgo das promessas futuras, o eloquente Isaías, e aí lobrigar aquela
vocação apoteótica, congénita a todos os povos marcados pelo nacionalismo
patriótico exacerbado: a vocação expansionista, tendo por meta final a ascensão
ao trono imperial, dominador de todas as outras nações e etnias.
Com
efeito, o sonho imperialista atravessa os genes de todos os regimes
tendencialmente hegemónicos, desde a mais remota antiguidade: Suméria, Caldeia,
Atenas, a Roma Imperial, enfim, toda a Europa, com as alianças mais espúrias e
oportunistas, o Sacro Império Romano-Germânico. Mais recentemente, o Império
das URSS’s e o terror maquiavélico do hitlerianismo açambarcador do mundo
civilizado, pela destruição da nomenclatura judaica. Actualmente, sob outras
roupagens, a galopante ‘invasão’ da China, o poderio intercontinental de
Moscovo e, acima de todos, o auto-proclamado Super-Império tump-americano, no
sofreguidão paranóica de fazer tremer o Planeta sob as botas cardadas do “maior
potencial militar do mundo” – em todos é o vírus da supremacia político-económica
que os move.
E
mais sintomático e paradoxal, ainda, é constatar que o vírus ataca de forma
crua e cega os países pequenos quando lhes chega o cheiro catalisador dessa
ambição. Portugal está na frente. Um país periférico, sem recursos, uma vez
catapultado para a vanguarda dos Descobrimentos, assentou arraiais nos confins
do Mundo e no topo geodésico da Terra arvorou trono e bandeira do Império
Português. Luís Vaz de Camões bem pode figurar no galarim da aristocracia
patriótica, ao lado de Isaías, mutatis
mutandis, ao colocar no discurso de Vénus e Júpiter as façanhas futuras dos
nautas lusos, com o Gama e seus heróis à proa da ‘rosa dos ventos’.
De
volta aos “Reis do Dia Seis”, os termos em que os Anais do Povo Judaico se lhes
referem em pouco ou nada se distanciam dos discursos proclamatórios comuns à linguagem épica de outros povos e
seus heróis. Abramos o seu maior intérprete, Isaías Profeta, cap.60-61:
Levanta-te, Jerusalém, resplandece.
Chegou a tua luz. Olha em teu redor: a noite cobre a terra e a escuridão todos
os outros povos, mas sobre ti brilha a luz. As nações caminharão no rasto da
tua luz e os reis no esplendor da tua aurora. A ti afluirão as riquezas do mar
longínquo e a ti virão os tesouros das nações.
Serás invadida por uma multidão de camelos e dromedários de Madiã e Efá. Os
reis de Sabá virão trazer-te ouro e incenso… Os reis da terra servir-te-ão. A nação ou o
rei que recusar servir-te morrerá, o seu país será destruído… Do menor nascerá uma tribo e do mais pequeno
uma nação poderosa…
Extensas
e numerosas são as citações bíblicas representativas de um povo montanhês, de
gente nómada e quase sempre derrotada nas repetidas escaramuças em que se
envolvia com os territórios fronteiriços. Um anseio profundo, veemente pulsava
no sangue das sucessivas gerações, um apelo genético à libertação e, daí, ao
domínio sobre os outros povos. As referências a um Messias libertador vinham
sempre consubstanciadas com a aparição de um líder poderoso, capaz de arrancar
da opressão um povo sofrido que, ao longo de séculos, fizera um percurso entre
espinhos e abrolhos. Era aos profetas entregue pela população o nobre estatuto
de semear luz na escuridão e alavancar no coração deprimido de cada geração a chama
da esperança, mesmo que ilusória, num mundo melhor, num País Novo, “onde
corressem o leite e o mel”.
Em
conclusão: fazer assentar nos textos vetero-testamentários acerca da visita dos (impropriamente) Reis,
apenas e só, um misticismo potenciador do fenómeno divino-messiânico, poderá
configurar uma interpretação duvidosamente extensiva do acontecimento, visto
que o animus inspirador desses mesmos
textos não se confina a uma exclusiva e pura espiritualidade, mas vem misturado
com propósitos colhidos nas aras da emancipação social e do mais radical
patriotismo.
À
consideração superior – dos biblistas e dos investigadores sérios.
05-06.Jan.20
Martins Júnior
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