segunda-feira, 13 de abril de 2020

A QUEM SERVE A PÁSCOA DO ANO 33 ?


                                                     

Tal como o ventre da terra espera, no tempo certo, as amendoeiras em flor e a flor das cerejeiras, o lourejar das eiras e o som metálico no corte das vindimas, assim o povo espera a Páscoa e canta, faz repique e dobre do mar à serra: “Aleluia, Jesus ressuscitou, Viva Cristo Ressuscitado, Aleluia, Aleluia”!!!
É a evocação do ano “33”. E é também uma quase inadiável, necessária explosão orgânica do colectivo social, sobretudo aquele marcado pela educação civilizacional cristã do ocidente. Ano sem Páscoa é vazio, como terra sem Natal é terra ardida. Não fora esse Domingo memorável,  não teríamos a apoteose ascensional do “Halleluiah” de Frederic Haendel!
Mas são tão diversas as traduções evocativas do fenómeno. Há uma diferença abissal, estrondosa, entre o facto e a memória dele. Da narrativa bíblica, pouco mais a registar do que um silêncio mítico, um sigilo de pesada contenção sobre o assunto. Mesmo entre os amigos e militantes colaboradores do Mestre, então Ressuscitado, nada de espectacular, ninguém o alevantou aos ombros, nem o transportou até às portas da cidade de Jerusalém. Comparada com a ruidosa manifestação do Domingo de Ramos, o Domingo de Páscoa foi um zero absoluto.
No entanto, a  memória do facto é um tremendo contraste com a realidade, digamos que a cópia contradiz o original. Actualmente, a festa é “brava”, no sentido de que um vulcão de pujança e alegria incontidas remexe terra e mar, doura e embandeira a paisagem, percorre os templos, as ruas e avenidas até galgar as montanhas, numa manifestação da mais avassaladora publicidade.
Não haverá nada a inferir desta notória contradição?...
Atenho-me ao original, ao facto. Para o Nazareno, conhecedor profundo da psico-sociologia humana, o mais determinante – e o único móbil da sua Ressurreição – não era a revivescência da estatura física, o seu corpo saído do túmulo. Era outro. Consistia exclusivamente na ressurreição e/ou continuidade do seu ideário, a realização do seu programa, do sonho que trouxe ao mundo, pelo qual deu a vida, mas não conseguiu realizá-lo. Transformar o mundo, “renovar a face da terra”, enfim, salvar a humanidade. Ele, durante três penosos anos indicou o caminho: dignificar o Homem, formado “à sua imagem e semelhança”,  e colocá-lo na centralidade da história. Restituir-lhe a dignidade perdida.
Será, porventura, a meta dos grandes líderes e reformadores da humanidade: perpetuar a sua obra. Dos mestres, dos próprios pais, a maior glória não está no mausoléu que lhes constroem. Está nas mentalidades, nos discípulos, nos filhos, na construção do mundo novo com que eles sonharam e por que lutaram.
Ao nosso Mestre ressuscitado cantam-lhe hossanas e aleluias, há mais de dois mil anos. Já estará aturdido com tantos coros,  panegíricos altissonantes, arraiais sem conto. Apetecer-lhe-á perguntar: E vós… estais vós vivos ou mortos? …  Quando é que removereis do vosso lugar, do vosso país, do vosso planeta, a pedra tumular onde jaz tanta gente minha, tanto homem, tanta mulher, tanta criança, que ainda não viram a luz de uma manhã de Páscoa?... É aí que Eu quero ver-me ressuscitado!
“Estou farto das vossas festas, dos vossos incensos e  holocaustos” (Isaías, 1,11-14). “Desprezo e detesto as vossas assembleias solenes, os vossos cânticos e as melodias dos vossos instrumentos” (Amós, 5, 21-23).
Estas duas páginas, escritas embora séculos antes do fenómeno pascal, merecem ser lidas, pois ilustram no seu contexto o conteúdo da mensagem do Ressuscitado – um verdadeiro Grito de Vitória à justiça e à verdade, pedras basilares na construção de um mundo habitável, saudável e salvável, no sentido holístico desta expressão.
De que teria servido a Ressurreição de Cristo se  não nos movesse a vivermos atentos, vigilantes, ressuscitados? Na hora presente, perante a morte iminente com que nos ameaça a pandemia - palmas, cânticos, homenagens e força a todos aqueles que promovem a verdadeira Páscoa no serviço às vítimas do Covid-19!  
Parafraseando Paulo Apóstolo – “Se Cristo não ressuscitou é vã a nossa fé” – ousarei acrescentar: Se cada um de nós e se a sociedade global não ressuscitar um pouco  em cada dia que passa, então foi vã a ressurreição de Cristo. Páscoa será o 25 de Abril! Páscoa será também o 1º de Maio!
Foi ainda nesta perspectiva que escrevi o poema do último ‘blog’ e foi no mesmo objectivo que encimámos no nosso templo o anúncio da primavera libertadora:

RESSUSCITOU
NÃO ESTÁ AQUI
ESTÁ EM TI

13.Abr.20
Martins Júnior

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