Público
e notório foi aquele espectáculo, para uns comovente, para outros degradante, em
que a directora de um Lar de Idosos passeia o crucifixo pelo salão principal e ‘atira’
a imagem aos lábios dos velhotes previamente alinhados para o efeito.
Objectivo: o beijo. O caso deu que falar nas redes sociais e, inclusive, cai
sob a alçada das instâncias judiciais. Não podemos ignorá-lo. E, por isso,
suscitou uma avalanche de comentários, desde os mais fanáticos pró-beijo aos
mais cortantes, mas sensatos, contra-beijo.
Seja
qual o ângulo de visibilidade dos opinantes, é manifesto o afrontamento às mais
elementares regras de saúde pública, mais a mais perante os rigorosos normativos
emanados por quem de direito nesta conjuntura do Covid-19. Correndo o risco do
desagrado particular, exporei também o meu parecer, convicto como estou que é meu
dever fazê-lo, apoiado numa análise serena e no testemunho de pensadores
ilustrados na matéria.
A
quem concorda e a quem discorda, começarei pela lógica dos factos. “O erro
também tem a sua lógica”, é um dos princípios gerais da filosofia. Achais, como
eu, chocante e, a muitos títulos, abusivo o gesto da bem-intencionada directora do Lar?... Partamos então do vértice para a base, de cima
para baixo, porque a luz, o exemplo vêm do alto:
1. O
Papa de Roma lançou, desde a basílica de São Pedro – despida de fiéis – a bênção
Urbi et Orbi e, em plena Praça –
plena mas, contraditoriamente, vazia – traçou a todos os continentes e regiões
o sinal da cruz com a majestosa custódia pontifícia. Um gesto apreciado por
todo o mundo cristão e católico.
2. Vai
daí, um bispo em Portugal amplia e ‘emenda’ a liturgia papal: num rasgo de
encendrado clamor patriótico, comparável ao sacro fervor das Cruzadas medievais,
arranca a custódia do altar da Sé Catedral e salta como um arcanjo libertador
para o alto da ponte que domina duas cidades e, daí, corta os ares com o sinal
da cruz na custódia de raios dardejantes sobre o rio e sobre os telhados contra
o vírus fulminante. O espectáculo não surtiu efeito.
3. Se
um bispo assim congeminou e assim cumpriu seu sonho de taumaturgo do século
XXI, por que não hão-de imitá-lo e até ultrapassá-lo os pastores de aldeia?...
Decidido e feito! Ei-los por caminhos e vielas, de cruzes prateadas, coloridas
de flores e alecrim, outros lá vão, sobressaltando estradas e vizinhanças, bandeiras
rubras esvoaçando garbosas, a custódia dourada no tejadilho da viatura e a voz
do pastor retinindo pela encosta. E o povo gosta! Sorrisos felizes, lábios
murmurando preces, lágrimas curtidas nas
rugosas faces daquela idosa que, mais tarde, exclama: “Ah, eu senti uma coisa
cá dentro quando vi passar o Divino Espírito Santo”. Referia-se às bandeiras brilhantes,
tremulantes ao sol e ao vento.
4. Os
pastores sabem o que fazem, dispõem de uma especial baixela instrumental,
trazem-na para a rua e fazem sucesso. O povo, porém, receptor e consumidor do
menu ‘exemplar’ que vem de cima, não tem outro espólio senão o básico, o que
consegue captar e pôr no terreno, em versão espontânea. É a chamada “religiosidade
popular” que tem tanto de ingénuo e puro, como tem de empírico e desviante. Nesta lógica descendente, que
começa na cúpula, o Papa, e depois vai devotamente divergindo pelas hierarquias intercalares,
bispos e padres, pergunta-se: Que espanto há nisso que o povo faz e interpreta
à sua maneira, usando sinais, mitos, símbolos, conceitos e preconceitos, superstições,
enfim, o que tem à mão?... Para os idosos daquele Lar que melhor podia oferecer
pela Páscoa a senhora directora senão o beijo no pequeno cruzeiro guarnecido de
flores campestres?... Será idolátrico, anti-higiénico, doentio, fará mal? Não
importa, a bênção de Jesus cura tudo…
Eis,
em escala vertical, o processamento de muitas percepções de índole devocional
que as nossas gentes professam. É a sua fé. Assumida, intocável. Analisada no “aqui
e agora”, à luz da ciência e das aquisições colhidas na actual hermenêutica
teológica, teremos nós autoridade e pedagogia suficientes para anatematizar ou
sequer entulhar à valeta as diversas crenças da religiosidade popular?...
É
o que tentarei decifrar no próximo escrito. Entretanto, porque o caso é muito
sério, deixo aqui os emotivos alexandrinos do insuspeito Guerra Junqueiro, na
sua “Velhice do Padre Eterno”:
“Oh velhos aldeões
exaustos de fadiga
Que andais de sol a sol
na terra a mourejar
Roubar-vos da vossa
alma a vossa crença antiga
Seria como quem
roubasse a uma mendiga
As três achas que leva
à noite para o lar”.
15.Abr.20
Martins Júnior
BEM AO GOSTO DO POLÉMICO PADRE MARTINS!...PARABÉNS..... MAS QUAIS OS FRUTOS ESPIRITUAIS DA SUA PARÓQUIA DE HÁ TANTOS ANOS? OU TAMBÉM FEZ FESTA DA BOA E VISTA GROSSA A TANTOS FESTEIROS QUE GASTARAM O DINHEIRO EM FOGUETES E TANTAS COISAS BANAIS COMO RESTAN
ResponderEliminarTE DA ILHA?