O
Velho Continente – A Europa Unida – faz hoje
70 anos. E o João faz 50. Por muito alta e nobre que seja a
rainha e madre Europa – e por
muito humilde e rasteiro se afigure o operário João – hoje vou colocá-lo no
vértice do Dia Ímpar, Os dois filhos, bandolim e violão da nossa Tuna, brindaram o
pai com sonoros parabéns.
Telefonei-lhe,
manifestei-lhe amistosas congratulações e não me contive: “João, eu vi-te nascer”.
Ele
entendeu a mensagem e, comigo, sentiu-a no mais íntimo de si mesmo. Porque, anos depois, é que lhe contaram a noite em que veio ao mundo
Passava
das 23 horas, quando bateram-me à porta “Venha depressa, sr. padre, que a
Rosa está morrendo”. Lanterna na mão dos mensageiros, aos tombos por veredas
e ribeiros, chegámos lá acima ao alto da Nóia. Já à distância os gritos de dor
e pranto prenunciavam o pior. Entrei. Estarreci. Nem queria acreditar. Uma
jovem mãe estendida, já morta, a cama esvaída em sangue e duas crianças
renascidas, uma de cada lado: o João e a Rosinha.
Estava
consumada a tragédia. O baque do coração lembrava-me o mesmo que senti quando
no norte de Moçambique levantei do chão da picada onze jovens militares do meu batalhão, vítimas
de mina anti-carro.
A
Rosa Perestrelo Nóia morrera. Por não haver assistência médica, nem estrada por
onde circulasse uma ambulância…
Voltando
a casa pelos mesmos cabocos, com o sentimento irreprimível de um derrotado, o pavio da lanterna de rega incendiou dentro
de mim um montão de chamas onde se misturavam lágrimas, desespero e gritos de
revolta. “Porquê, Senhor? Não por Vós, mas pela incúria dos homens, pela desumanidade
dos governantes”! Só sei que, ao abrir
da manhã, sem conseguir fechar os olhos da noite, decidi: “É aqui que devo
ficar. Não posso voltar as costas a um povo que sofre, sem água potável, sem estrada
e sem luz”. No ar da Europa Unida, ainda vogavam os acordes do Hino da Alegria,
concebido por Beethoven. Aqui, porém, na Ribeira Seca, saíam da terra e dos corações as mágoas
inconsoláveis de uma pesada marcha fúnebre…
No
entanto, a história fez a sua marcha. Os irmãos gémeos cresceram, lutaram pela
vida, construíram a felicidade dos seus lares, o João na Madeira, a Rosinha no estrangeiro. A Europa fez seu rumo entre
expectativas e percalços.
E
a Ribeira Seca também. Não foi fácil. E não será exagerado subscrever aqui o
velho adágio: “O que o povo conseguiu foi a poder de sangue, suor e lágrimas”.
Antes da alvorada de Abril e depois dela.
É
esta também uma “Nau Catrineta” que tem muito que contar”…
Por
mais incrível que pareça, a Igreja hierárquica diocesana proibiu a venda de
hóstias à paróquia da Ribeira Seca, desde 1974. Onze anos depois, em 1985, o “Coronavirato”
composto pelo Paço Episcopal-Quinta Vigia mandou 70 polícias fecharem a igreja,
construída exclusivamente com os
sacrifícios desta comunidade. E – fez ontem dez anos! – o mesmo “Coronavirato”
conluiado impediu que a Imagem Peregrina (em visita a todas as paróquias da
Madeira) entrasse no adro e igreja da Ribeira Seca.
E
muito mais teria de contar a “Nau Catrineta” desta gente que ainda hoje sobre
os estigmas da marginalização e da unilateralidade acintosa dos poderes civil e
religioso que até há pouco tempo minaram a ilha de notória e intolerável
autocracia. Tudo isto, enquanto na Europa se construíam pontes, connosco
armavam velhos muros da vergonha.
Felizmente,
o Povo venceu! E continua a sua marcha. Transformou em música e coreografia as
suas mágoas que, com a força do tempo e o garante da razão, desabrocharam em
flores de esperança no futuro.
Como
os 50 anos do João!
Como
os 60 anos da Ribeira Seca!
Comos
os 70 anos da Europa!
09.Mai.20 - Dia da Europa
Martins Júnior
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