A
“circunstância” é o corpo que dá forma ao sonho. Sem ela, o ser resvala para o
não-ser e o sonho definha num sono
hibernal, como flor sem fruto. Por isso, à “circunstância”
chamar-lhe-ei sol de primavera, estrela da manhã, chão firme e reprodutivo, horizonte
irresistível, barca de bandeira esvoaçante e bússola segura dentro dela.
Todas as metáforas de vanguarda iluminante cabem na “circunstância” orteguiana.
Hoje, trago à luz do dia a “minha
circunstância”. Marcou-me em 22 de Junho de 1969. E por ter completado ontem 51
anos de permanência sem quebra, exponho-a aqui, sucintamente embora, mas com o
mesmo brilho de há meio-século, na convicção que a sua força anímica, que moveu
montanhas seculares, continuará viva como seiva sempre renovada e talismã de um mundo ideal, reino habitável,
paraíso terreal.
É de Paulo de Tarso em carta dirigida
aos crentes da cidade de Corinto, aplaudindo a campanha social por eles realizada em prol dos crentes
de Roma, os quais atravessavam uma crise aguda de sobrevivência, em tempos de fome e repressão sob o jugo cruel do regime imperialista.
O pensamento é este, imperativo
de consciência e ordem de comando: “O
que entre nós deve vigorar como o mais importante é o seguinte princípio: a
IGUALDADE”. (II aos Coríntios, 8,13).
A “circunstância” é esta,
permanentemente acesa no meu subconsciente: o citado texto paulino foi o
primeiro que se me abriu diante dos olhos, no primeiro acto litúrgico celebrado
na comunidade da Ribeira Seca, aldeia
marcada pelos mesmos estigmas de esclavagismo da comunidade cristã na Roma
imperial: reprimida pelo regime da colonia e carente dos mais elementares
direitos sociais: habitação, água, luz, subsistência alimentar.
Estava traçada a minha “sina”! Como
poderia eu cerrar os olhos ou fechar os ouvidos às angústias que emergiam da
terra, aos gritos abafados dos camponeses reduzidos à mísera condição de “servos
da gleba”, ao cortar de asas às crianças desprovidas de escola e de
esperança?... Diante de mim, a desigualdade mais aberrante, os abismos mais
ululantes entre a superabundância dos urbanos e a miséria dos rurais, enfim, a
contradição aberta entre a Carta de Paulo
e os códigos dos homens! Silenciar, erguer uma torre sineira e lá adormecer no sono angélico dos puritanos
fideístas, dos mercenários canónicos?... Impossível. Melhor seria voltar as costas
e fugir, logo na mesma hora!
Vale
a pena reler a Carta, para descobrir o alcance intemporal de Paulo de Tarso, a
sua análise cirúrgica da justiça distributiva: “Não se trata, ó irmãos coríntios, de vos reduzir à miséria para
aliviar os outros. Eis o que é necessário: a Igualdade. Nesta altura o vosso
supérfluo preenche o que escasseia aos outros. É preciso que triunfe a
Igualdade, como vem descrita no Livro Sagrado: Aquele que muito colheu não
ficou com excessos e aquele que colheu pouco não sentiu falta de nada”.
Ideal
Supremo da paz e da felicidade no planeta dos homens: IGUALDADE de direitos e
oportunidades, IGUALDADE de deveres e contributos. Não foi preciso que a
Revolução Francesa proclamasse ao mundo os caminhos da “Liberdade, IGUALDADE,
Fraternidade”, porque, 1789 anos antes, já os tinha proposto Paulo de Tarso!
À livre e generosa inspiração de quem
lê estas considerações deixo o manancial inesgotável da análise crítica perante
o desconcerto dos nossos dias, onde os altos cumes da finança, do poder e do
saber coabitam escandalosamente com os antros mais fundos da pobreza global. Depois
da análise, a acção! É o que continuarei a fazer, na linha daquela “circunstância”
epistolar de há 51 anos!
23.jun.24
Martins
Júnior
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