Reitero
a minha declaração de interesses: em cada domingo tenho o meu lugar marcado.
Prescindo das questões circunstanciais, sejam os vírus, sejam as guerras
eleitorais, desde a Grande América até às ilhas mais ocidentais da Europa,
sejam os traumas do Orçamento. Prendo-me
ao Livro, com especial incidência no Visionário do Oriente, o Mestre da
Galileia e Pedagogo da Humanidade. É a sua personalidade, a sua identidade que
importa recuperar, após vinte séculos de desvirtuamentos sucessivos. É o clarão
matinal de cada domingo que me projecta luz para a semana inteira.
Quem leu neste domingo o texto proposto
por Mateus, capítulo 22, demorar-se-á na resposta que Ele deu aos refinados
espiões da sua Palavra. À capciosa questão, envolta em punhos de renda macia – “Qual
é o primeiro e o maior mandamento?” – respondeu o Nazareno de uma forma tal
que, diz o texto, os detractores, seus arqui-inimigos, nunca mais arriscaram a fazer-lhe
perguntas. O conteúdo da resposta já Ele o dissera e repetira durante três anos
de vida pública. Então, por que estranho
intento vieram importuná-lo os doutores
da Lei e os pontífices do Templo?
É no contexto que está o ganho, ou
seja, a interpretação semântica do enunciado no texto. Se alguém tem seguido
esta sequência semanal, já descobriu que um dos traços mais impressivos da vida
do Nazareno consistiu em defender-se dos ataques da dita classe soberana,
sediada em Jerusalém. Não podendo sequestrá-lo, nem sequer atingi-lo com um
dedo, por medo dessa fortaleza inquebrável, o Povo que O acompanhava, para onde
quer que fosse, recorreram à baixa diplomacia urbana e pidesca, afim de surpreendê-lo
em crime de delito de opinião e, acto contínuo, julgá-lo e condená-lo.
Desarmadilhada a tentativa dos impostos
pagos ao erário romano de César Augusto, procuraram desesperadamente outro tropeço.
E foi neste domingo a narrativa. Se aquele doloso estratagema da fiscalidade configurava
um crime de lesa-majestade, estoutro constituía um crime de lesa-divindade. “Qual
é o maior mandamento da Lei?”.
Toda o percurso de Jesus de Nazaré foi
uma epopeia de serviço à dignidade do ser humano. Pela palavra e pela acção:
Reacender na mentalidade dos seus conterrâneos aquela chama que o poder
religioso, aliado ao poder político, tinha abafado num montão de cinzas. Era
imperioso recuperar o sentido da fraternidade, da igualdade, da liberdade. “A
Verdade tornar-vos-á livres”… “Todos vós sois irmãos e quem entre vós pretender
ser o maior seja o vosso servo”… “O
Filho do Homem não tem sequer uma pedra onde reclinar a cabeça”… só para poder estar
ininterruptamente ao serviço do outro.
O que aos olhos de qualquer mortal se
impunha como protótipo de benfeitoria universal, (“Ele não fazia acepção de
pessoas”), de doação heroica – aos olhos da classe dominante, ‘exemplarmente
religiosa’, assumia proporções de heresia, laicismo, subversão de valores: ‘esse
sujeito, afinal, dá mais atenção à terra que ao céu, cultua mais o homem do que
a Deus. É herege, é blasfemo. É réu em tribunal canónico’… E aqui surgiu a armadilha: “Qual será, para ti,
o maior mandamento?... Deus ou o homem?”.
A resposta foi fulminante: “O segundo
mandamento, “amar e servir ao próximo” , é semelhante ao primeiro, “amar e servir a
Deus”. Já o sabíamos. E eles também sabiam. Daí que a leitura da resposta só é
apreensível pelo contexto. A perseguição de víboras contra o Pregoeiro da
Verdade e da Dignidade Humana repete-se em todos os tempos e lugares. Aqueles
que fazem profissão e compromisso de servir o outro – seja qual o seu posto ou
organização – serão sempre acoimados de revolucionários, ateus, agnósticos e
quejandos. Sobretudo se estiverem associados a regimes eclesiásticos. A história
assim tem demonstrado. Em todo o Mundo, em Portugal, nas Ilhas.
Só as classes populares, o “Povo que
trabalha e faz o mundo novo”, só ele pode opor-se como barreira intransponível
aos ataques dos que se julgam dominadores, “Donos de Tudo”, ditadores das leis
e dos costumes. Só o Povo trabalhador,
de boa-fé, verdadeiramente crente, será capaz de pô-los na ordem e apeá-los dos
tronos e dos altares que usurparam à custa das fragilidades alheias.
Enquanto
houver caminho, a marcha não pára. Mesmo em tempo de contingência, calamidade
ou confinamento, estamos vigilantes, esclarecidos, combatentes ao serviço do
Outro.
Porque
“O Segundo mandamento é semelhante ao Primeiro”!
25.Out.20
Martins Júnior
Sem comentários:
Enviar um comentário