domingo, 25 de outubro de 2020

QUANDO A AMADILHA DO CONTEXTO ULTRAPASSA O PRÓPRIO TEXTO – O INTERMINÁVEL CONFRONTO DA HISTÓRIA

                                                                 


Reitero a minha declaração de interesses: em cada domingo tenho o meu lugar marcado. Prescindo das questões circunstanciais, sejam os vírus, sejam as guerras eleitorais, desde a Grande América até às ilhas mais ocidentais da Europa, sejam os traumas do  Orçamento. Prendo-me ao Livro, com especial incidência no Visionário do Oriente, o Mestre da Galileia e Pedagogo da Humanidade. É a sua personalidade, a sua identidade que importa recuperar, após vinte séculos de desvirtuamentos sucessivos. É o clarão matinal de cada domingo que me projecta luz para a semana inteira.

         Quem leu neste domingo o texto proposto por Mateus, capítulo 22, demorar-se-á na resposta que Ele deu aos refinados espiões da sua Palavra. À capciosa questão, envolta em punhos de renda macia – “Qual é o primeiro e o maior mandamento?” – respondeu o Nazareno de uma forma tal que, diz o texto, os detractores, seus arqui-inimigos, nunca mais arriscaram a fazer-lhe perguntas. O conteúdo da resposta já Ele o dissera e repetira durante três anos de vida pública.  Então, por que estranho intento vieram importuná-lo  os doutores da Lei e os pontífices do Templo?

         É no contexto que está o ganho, ou seja, a interpretação semântica do enunciado no texto. Se alguém tem seguido esta sequência semanal, já descobriu que um dos traços mais impressivos da vida do Nazareno consistiu em defender-se dos ataques da dita classe soberana, sediada em Jerusalém. Não podendo sequestrá-lo, nem sequer atingi-lo com um dedo, por medo dessa fortaleza inquebrável, o Povo que O acompanhava, para onde quer que fosse, recorreram à baixa diplomacia urbana e pidesca, afim de surpreendê-lo em crime de delito de opinião e, acto contínuo, julgá-lo e condená-lo.

         Desarmadilhada a tentativa dos impostos pagos ao erário romano de César Augusto, procuraram desesperadamente outro tropeço. E foi neste domingo a narrativa. Se aquele doloso estratagema da fiscalidade configurava um crime de lesa-majestade, estoutro constituía um crime de lesa-divindade. “Qual é o maior mandamento da Lei?”.

         Toda o percurso de Jesus de Nazaré foi uma epopeia de serviço à dignidade do ser humano. Pela palavra e pela acção: Reacender na mentalidade dos seus conterrâneos aquela chama que o poder religioso, aliado ao poder político, tinha abafado num montão de cinzas. Era imperioso recuperar o sentido da fraternidade, da igualdade, da liberdade. “A Verdade tornar-vos-á livres”… “Todos vós sois irmãos e quem entre vós pretender ser o maior seja o vosso servo”…  “O Filho do Homem não tem sequer uma pedra onde reclinar a cabeça”… só para poder estar ininterruptamente  ao serviço do outro.

         O que aos olhos de qualquer mortal se impunha como protótipo de benfeitoria universal, (“Ele não fazia acepção de pessoas”), de doação heroica – aos olhos da classe dominante, ‘exemplarmente religiosa’, assumia proporções de heresia, laicismo, subversão de valores: ‘esse sujeito, afinal, dá mais atenção à terra que ao céu, cultua mais o homem do que a Deus. É herege, é blasfemo. É réu em tribunal canónico’…  E aqui surgiu a armadilha: “Qual será, para ti, o maior mandamento?... Deus ou o homem?”.

         A resposta foi fulminante: “O segundo mandamento, “amar e servir ao próximo” ,  é semelhante ao primeiro, “amar e servir a Deus”. Já o sabíamos. E eles também sabiam. Daí que a leitura da resposta só é apreensível pelo contexto. A perseguição de víboras contra o Pregoeiro da Verdade e da Dignidade Humana repete-se em todos os tempos e lugares. Aqueles que fazem profissão e compromisso de servir o outro – seja qual o seu posto ou organização – serão sempre acoimados de revolucionários, ateus, agnósticos e quejandos. Sobretudo se estiverem associados a regimes eclesiásticos. A história assim tem demonstrado. Em todo o Mundo, em Portugal, nas Ilhas.

         Só as classes populares, o “Povo que trabalha e faz o mundo novo”, só ele pode opor-se como barreira intransponível aos ataques dos que se julgam dominadores, “Donos de Tudo”, ditadores das leis e dos costumes. Só o Povo  trabalhador, de boa-fé, verdadeiramente crente, será capaz de pô-los na ordem e apeá-los dos tronos e dos altares que usurparam à custa das fragilidades alheias.

Enquanto houver caminho, a marcha não pára. Mesmo em tempo de contingência, calamidade ou confinamento, estamos vigilantes, esclarecidos, combatentes ao serviço do Outro.

Porque “O Segundo mandamento é semelhante ao Primeiro”!

 

25.Out.20

Martins Júnior     

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